Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 61
— Muito bem, Pedrinho. O que achou da nossa nova casa? — perguntou-lhe o velho.
O garoto olhava do alto da janela. Eles estavam na cobertura de um dos maiores prédios da cidade.
— Então essa é a China… — murmurou apático, ignorando completamente a pergunta anterior.
Vendo-o imerso no próprio mundo, o velho foi até a lateral e se apoiou também.
Da beirada da sacada a vista era linda. Edifícios de primeiro mundo, com os mais diversos formatos e cores. Estava anoitecendo e as luzes começaram a tomar conta daquele ambiente futurístico.
— Xangai é uma cidade maravilhosa, não é mesmo? — insinuou.
— Sim…
Apesar da anuência, o semblante de Pedrinho estava tão distante quanto o céu. A paisagem com certeza o fez pensar em algo, mas isso não envolvia beleza citadina ou arquitetura moderna.
— Vovô!
— Que foi, Pedrinho?
— Às vezes você não sente que a vida já acabou? Digo, que já cumpriu todos os objetivos importantes e que dali em diante não tem nada mais pra fazer? — disse num só fôlego.
Clark continuou encarando o horizonte por uns instantes, sereno, antes de dar uma resposta que o menino achou difícil de acreditar.
— Já, garoto, muitas e muitas vezes…
Ele acirrou as sobrancelhas, cético e com razão. Ora, eles estavam falando de um multibilionário. Na concepção do garoto, o homem ao lado era do tipo ocupado, cheio de metas e objetivos importantes.
— Sério?
O senhor grisalho acenou, confirmando o que disse.
— Muitas vezes — ressaltou. — Quando herdei o conglomerado de seu bisavô, por exemplo. Naquela época, as nossas empresas estavam tão cheias de dívidas que o governo começou a nos ameaçar de falência.
— É mesmo? — perguntou serelepe o netinho.
— Sim. Mas demos um jeito nas coisas e, dois anos depois, éramos nós quem emprestamos dinheiro ao governo… Ironia, não? — perguntou retoricamente, sem esconder o deboche. — Me senti incrível. Quando assumi, pensei que aquela seria a missão da minha vida, mas não foi.
Ele tirou um charuto do bolso e o tragou, antes de continuar.
— Lembro que essa foi a primeira vez que algo do tipo aconteceu comigo. A segunda foi quando conheci sua avó.
Os olhos de Pedrinho começaram a ficar menos frios. Na verdade, era certo dizer que um brilho ressabiado emanava deles. Sua apatia anterior foi substituída por interesse. Só a curiosidade superava sua ataraxia interior.
Pressentindo a admiração com o faro, como um cão treinado, Clark encheu-se de orgulho fraternal. Se aproveitando disso para ajustar a coluna e proclamar com altivez:
— Quando isso acontecer, você sempre deve se perguntar: “o que eu quero? Quais são meus reais desejos no momento?”. Depois que encontrar é só perseguir.
— “O que eu quero”… em…? — repetiu o neto. O tom era baixo, muito baixo. Quase inaudivel.
— Mas não se preocupe — O velho interpelou. — Isso não vai acontecer tão cedo com você, Pedrinho. Aliás, seu novo objetivo começa amanhã de manhã na escola.
O rapaz não entendeu. Como assim, novo objetivo?
— Mas vovô, desde que comecei a ler aqueles livros a escola anda tão fácil que eu não acho que isso possa ser considerado um desafio…
Clark sorriu.
— Essa escola é… um pouco diferente.
— Hum?
Vendo-o sem entender novamente, o velho simplesmente passou afagou-lhe a cabeça, continuando:
— Não precisa sofrer antes da hora. Amanhã você vai descobrir.
Sem saber por quê, o jovem Pedro sentiu um arrepio súbito na espinha. Aquele sem dúvidas era um mal pressentimento.
…
Três semanas depois da calamidade…
Hum?! Outro sonho com vovô? Venho pensando muito nele ultimamente…
— Uharrr… — Inconscientemente deixei o bocejo sair, mas o interrompi ao perceber a bela figura deitada ao meu lado.
Seus cabelos longos estavam espalhados pela cama, parte deles na minha cara. Seu corpo delgado e macio agarrado junto ao meu.
Era Rebecca, minha namorada e, quem sabe, futura esposa. Ao menos é o que tenho pensado ultimamente…
Voltar pra cá e me casar com ela depois de ver o que o tal “Elementarista” quer. Isso não seria nada ruim…
Ela tem muitos segredos, é verdade, mas seu amor por mim com certeza não é um deles. E a amo também. Assim sendo, por que não deveríamos ficar juntos?
Acho que vou falar sobre isso com ela durante nossa viagem…
Ahr… O que será que o vovô diria? Tenho certeza que ficaria surpreso.
— Amor?
— Ora… te acordei, meu bem? Desculpa — disse para ela.
Rebecca balançou a cabeça em negação. Fofa como sempre.
— Não se preocupe, Amor. Amanhã é o dia, precisamos levantar cedo e ajudar Marta com os preparativos que faltam.
— Sim — concordei com ela.
Rebecca então se arrastou timidamente para a lateral da cama, usando os lençóis para disfarçar a nudez. Até mesmo nisso ela era linda. De modo que, obviamente, eu fui obrigado a fitá-la e dar uma boa olhada.
— Ei! Não espie! — exclamou meu amor.
— Ora, qual o problema em desfrutar do que por direito já é meu? — argumentei.
Ela corou.
— Não, não pode! — disse.
Vendo-a com aqueles olhos tímidos fazendo beicinho, eu não fui capaz de resistir. Acabei provocando de novo.
Movi-me rápido pela lateral da cama até o alvo e, suavemente, toquei seus ombros delicados.
Ela deu uma tremidinha, mas eu continuei a massagem.
— Amor… é sério — Ela disse. — Assim nós vamos nos atrasar…
Não falei nada, apenas apalpei com as mãos. Com a direita subi até sua nuca e com a esquerda intensifiquei a massagem.
— Eu sei — falei. — Não estou tentando nada demais, só dando um alívio pros ombros tensos do meu amor.
Percebendo que ela ficou ainda mais vermelha eu cessei os movimentos.
— Ontem conversei com Mark sobre o salvo-conduto, ele vai nos ajudar — expliquei, apoiando meu queixo sobre a lateral de seu pescoço airoso.
— O quê?! Sério? — Ela ficou surpresa. Percebi uma alegria velada em sua voz.
— Sim — reafirmei e ela então se virou pra mim.
— Mas… isso não pode gerar problemas pra ele? — perguntou, receosa.
— Nha... o véio é safo demais. Se ele disse, tá falado — expliquei. — E de qualquer forma nós conseguiríamos dar um jeito de entrar. Fiquei pouco tempo a serviço de Ed, lembra? Duvido que aquelas pessoas me conheçam, e a você menos ainda.
Afastando, vi-a deixando a tensão cair junto com os lençóis. Que visão maravilhosa.
— Uhum… era exatamente disso que eu tava falando. É na simetria que se encontra o belo…
Ela deu um pulo, vermelha como um pimentão, e me socou com seu olhar feérico.
— Seu bobo! — rugiu.
Depois disso saiu correndo até o closet. Levou consigo os lençóis.
Todavia, encarando de longe eu consegui ver o sorrisinho que ela soltou. Podia até não admitir, mas sei que aquela garota adora as minhas provocações matinais.
Enfim, acho que eu também deveria me levantar. Amanhã já é o festival, o que significa que o dia de hoje vai ser cheio…
…
— Gyaar… Trabalhar duro é muito bom, né não, recrutas?
— Sim, senhor — responderam os quatro.
O lorde os convocou para ajudar os remulus com o deslocamento dos barris. Foi um trabalho árduo e que exigia extremo cuidado. Se os recipientes balançassem a bebida poderia estragar.
O curioso foi que Pedro mesmo não fez nada. Segundo ele, teria que “supervisionar toda a obra” e estava muito ocupado. Como esperado de um ex-advogado.
Enquanto isso, os subordinados traziam coisas pra lá e pra cá. Pastor levava consigo dois barris em cada ombro e mais um na cabeça.
Esse feito foi algo que deixou Pedro abismado ao ponto de fazer algumas contas matemáticas para averiguar. A conclusão foi…
— É… Isso de fato é fisicamente impossível pras capacidades de um ser humano normal. Acho que o grande Brown tem uma genética privilegiada. Curioso…
Ele acabou referindo-se ao rapaz pelo nome verdadeiro, como tem feito com os recrutas desde a cerimônia não oficial na clareira.
Dez minutos depois e todo o trabalho já estava feito. E agora, Poodle estava estirado na grama, com Pastor a seu lado. Nathalia e Janet continuaram normais.
— Ei, Poodle — Pedro chamou. Aparentemente, aquela regra não servia para o pobre garoto. — Tu sabe onde que o Mark tá?
Antes, o velho conselheiro falou que iria apenas terminar de receber os representantes e viria para ajudar.
“Erh! Eu aposto que só queria dar um golo na bebida antes de todo mundo. Hehe… Aquele sapo cachaceiro!“, pensou Pedro.
— Vou averiguar, lorde Pedro — disse o recruta
— Fala pra ele que eu marquei um xis no barril com a pinga preferida dele — gritou, antes que o garoto saísse de vez.
“Agora o velho vem voando. Hehe…”, pensou.
Dez minutos depois, o garoto voltou. Todavia não trouxe Mark.
— E aí? — perguntou-lhe o lorde.
Poodle ainda estava ofegante, mas relatou:
— Lorde Mark ainda está ocupado com as visitas e inclusive pediu para informar ao senhor que os filhos de lorde Hatt estão aqui. Eles solicitam vê-lo.
Pedro estalou a língua.
— Que problemático, parece que vou ter que trabalhar mais um pouco — disse.
“Mas ele nem fez nada ainda!”, pensaram os recrutas.
— Tudo bem, vocês já fizeram muito aqui, podem ir se divertir agora — falou para os recrutas, continuando antes de ir: — Ah, só não vão encher a cara demais, em!? Lembrem-se que a bebida foi pensada para o festival. Além disso, seus pais vão amolar o meu saco caso vocês apareçam bêbos em casa de novo…
Eles retraíram um pouco a cara em timidez, mas ainda se animaram. A cachaça tava liberada.
— Muito bem… — dizia o baronete, antes de ser interrompido por uma voz ao longe.
— Lorde Pedro…! — gritou a moça.
O rapaz parou no meio da estrada, virando-se para ver a origem da voz.
— Ah… é você, Erica. O que houve? — disse Pedro para a recruta da polícia civil.
— Dona Martha pediu ajuda. Parece que precisamos de mais peixes para amanhã, mas já está prestes a escurecer e ninguém quer ir pescar no escuro, dizem que é inútil.
Pedro achou aquilo extremamente suspeito.
— Ora, mas esses peixes são tão necessários assim? — perguntou.
— Ela disse que faz parte do ritual de primavera — informou a garota, coçando os cabelos arrepiados.
Ouvindo aquilo, o rapaz suspirou. Ele realmente não queria se envolver com nada que envolvesse trabalho manual hoje.
— Tá, seja mais específica, o que exatamente ela quer de mim?
— Meu lorde, falei para ela que o senhor tem boa visão e ela então me pediu para pedir que o senhor ajudasse na pesca.
Pedro teve que raciocinar. Entre uma pescaria noturna num lago relaxante e uma noite de vinho com os filhos da nobreza local, qual lhe seria mais agradável?
— Okay… Avisa pra dona Martha que eu tô indo lá resolver isso — falou, optando pelo nado lucífugo.
— Obrigado, meu lorde! — agradeceu a garota. Seu tom era neutro, mas Pedro percebeu uma animação tácita.
“Peixes em um ritual… Essa eu vou ter que pagar pra ver”, pensou. Em seguida se virou para a direção do lago mais próximo e correu.
Zoooom!
Ele foi veloz, chegando rapidamente ao local.
Depois, arregaçou as mangas e iniciou o ofício. Mas antes decidiu retirar as roupas, elas poderiam estragar se molhassem e ele gostaria de evitar isso. Ao menos essa era a desculpa que daria caso fosse pego. O verdadeiro motivo era bem mais simplório: só queria dar uma nadada no lago.
Assim, quando enfim ficou seminu, o rapaz adentrou a água. Ele o fez de forma bem lenta para não assustar as presas.
Sentir a água fria afundando-o até a cintura fazia a espinha de qualquer pessoa tremer, mas ele parecia gostar. Como a primavera estava apenas no início, a maioria das águas ainda estavam frias do inverno. Aquele lago certamente não era exceção.
— Nossa, depois de um dia intenso de labor, relaxar nessa banheira natural é a maior benção que um trabalhador como eu poderia receber da natureza — comentou, jogando o corpo na água.
No momento o rapaz esqueceu completamente do principal objetivo e apenas se deixou levar pela correnteza. A sensação relaxante da água fria o dominou.
Aquilo era ótimo. Ele até fechou os olhos para aproveitar melhor o sentimento.
Todavia, enquanto ainda estava cego, algo bateu em sua cabeça.
Paf… Não era uma pedra, tronco nem nada do tipo. Na verdade, nem duro aquilo era.
— Que coisa macia — comentou enquanto esfregava a cabeça no objeto. — Parecem como… como… dois travesseiros em formato de melão…
— Aaah!
— Oi? Que merda é essa? Travesseiros não falam.. Ah, caramba! — disse, se virando para trás. — É, não são travesseiros mesmo.
Sem querer, ele deu de cara com uma imagem magnífica. Seus olhos eram vívidos e tinham um azul penetrante. O rosto bonito era decorado por pequenas sardas, em realce a seu charme adulto. Os cabelos esverdeados também se mostraram encantadores quando banhados sob a luz do luar.
Contudo, o que mais chamou a atenção do rapaz foram… outras características.
“Mas que busto volumoso!”, pensou, abaixando os olhos.
— Aaah! Um tarado! — gritou a garota, antes de fazer seu movimento.
Paft!
Foi por pouco, mas o rapaz desviou. Ele sentiu o ventinho do tapa, antes de se pôr novamente de pé.
— N-não pode ser… Lorde Pedro!?
— Yo! Celine. Parece que não fui o único a ter a ideia de passear por aqui — disse ele na maior tranquilidade do mundo, complementando: — Meus parabéns, seu namorado deve ser um homem de sorte.
— Eu… não tenho um namorado… — murmurou por reflexo a garota.
— Oh… que pena — Ele disse, gesticulando. — Mas não fica triste não, tenho certeza que com esses atributos, vai arranjar alguém logo, logo…
— Aaaah!
Pah!
Dessa vez ela acertou o golpe.