Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 62
— Me perdoe, meu lorde! Agi por reflexo, não foi essa minha intenção.
— Relaxa, Celine. Sou eu quem peço desculpas, acabei espiando você. Não foi intencional — respondeu o rapaz. Ele esfregou inconscientemente o queixo, lembrando-se do infortúnio feliz.
Os dois já estavam com suas roupas e conversavam ao lado da margem da pequena lagoa. Pedro até mesmo acendeu uma fogueira.
— Mas então você nada aqui sempre? — perguntou.
A garota acenou, para a surpresa de Pedro.
— Sério mesmo? — questionou. — Não prefere uma banheira?
— Não é isso, meu lorde. Mas é muito trabalhoso encher uma banheira, principalmente se tiver que esquentar a água antes.
Aquilo acabou fazendo-o se lembrar que estava em um feudo medieval e que a maioria das pessoas não eram tão ricas ou conhecedoras quanto ele. Com força bruta, dinheiro e ciência, Pedro desenvolveu o próprio sistema interno de aquecimento e água corrente. Não era perfeito, mas funcionava.
“Hum… Ela tem razão. Fora as bicas que escavamos por aí no outono, não tem nenhuma outra fonte de água pra eles. Acho que vou ter que dar um jeito de adiantar o sistema de aquedutos e banhos públicos já pra próxima fase do Plano de Metas”, refletiu o lorde.
— Ah! Mas eu não estou insinuando nada — explicou-se, erguendo as mãos em um gesto apressado. — Não estou de forma alguma insatisfeita ou algo do tipo. Pelo contrário, vovó contou sobre as reformas que o senhor fez. Muito obrigado! Nossas vidas aqui estão muito melhores do que a média das outras pessoas.
Pedro achou engraçado ver a rígida instrutora de hipismo assim, toda desconcertada tentando corrigir um possível mal-entendido.
— Fico grato — disse ela. — Mas ainda tenho que ralar muuuiiiito se quiser dar uma vida realmente digna pra vocês. E apenas colocar umas pedrinhas na estrada e tapar uns buracos não é nem de longe o mínimo necessário pra uma vida digna.
A convicção na voz do jovem em sua frente chamou a atenção da garota. Fitando-o de relance ela viu novamente aqueles olhos, eivados com um brilho místico, o qual ela não conseguia não se perder.
“Ele tem algo diferente dos outros nobres, algo que só vi uma ou duas vezes durante todos esses anos”, pensou, rapidamente se corrigindo: “Não, os dele são bem mais intensos, ainda mais profundos…”
— Ora, ora… mas se você continuar me olhando assim, vou acabar achando que tá apaixonada por mim — disse ele em um tom de brincadeira, despertando a garota das divagações.
Ela ficou ruborizada na hora.
— Oh! M-me desculpe, lorde Pedro! — corrigiu-se.
Pedro então fez um gesto, indicando que estava tudo bem.
— Relaxa, foi só uma brincadeira — disse, levantando-se da grama e entregando a mão à garota: — Vamos voltar?
— Sim… v-vamos voltar…
“Rebecca já deve tar em casa a essa hora. Provavelmente os filhos do senhor Hatt ainda estão lá. Tsc! Vai ser um saco entretê-los”, pensou, enquanto ajudava a garota a se levantar.
— Ehr… lorde Pedro — Celine o chamou.
— Diga.
— Acho que você mencionou que tinha que pegar alguns peixes para minha avó e…
— Droga… Nosso papo foi tão bom que acabei me esquecendo completamente disso — disse ele em resposta.
A garota corou um pouco ao escutar que o rapaz também gostou de conversar com ela.
— Espera só um pouquinho, tá bom? Já, já eu volto com os peixes — disse ele, movendo-se rumo ao lago.
— Meu lorde, o que o senhor est…! — A garota tapou os olhos rapidamente, ao ver que o rapaz começou a se despir em sua frente.
Aparentemente, Pedro não se importava muito em ser visto sem roupas. Embora no caso ele estava apenas seminu.
Ainda assim, a garota ficou vermelha de vergonha, mas abriu a frestinha dos dedos para observá-lo. Mesmo ela, tão inexperiente no assunto, ainda tinha que admitir, aquele era de fato um corpo muito bonito de se ver.
“Não! Não posso olhar, se leide Rebecca descobrir…”, pensou. “Mas… só um pouquinho, não tem ninguém aqui e… ele também me espiou antes. Isso mesmo!”
Se lembrando daquilo, todos os conflitos internos da garota dissolveram-se no ar.
“Não é uma questão de desejo, mas sim de justiça”, ela concluiu e complementou: “Ele também não parece muito se importar. Talvez esteja até… me retribuindo! É isso… isso mesmo! Só mais um pouquinho…”
E assim, entre desejos insinceros e uma lógica reprimida, teve fim a noite que marcou o primeiro pré-feriado da história de Vilazinha.
…
Era início de manhã e o céu reinava radiante no céu de Vilazinha. Foi a contribuição divina para o sucesso do festival.
Ao menos foi essa a explicação que Pedro aceitou em seu coração, enquanto abria as cortinas de seu quarto e apreciava, do segundo andar, o esplendor daquela vista magnífica.
O jovem baronete decidiu que aquele seria o marco principal do desenvolvimento local. O feriado que separa o passado do futuro, a desgraça da esperança. Decidiu também que as gerações posteriores gravariam profundamente aquela data em seus corações.
“Este dia será como o sete de setembro no Brasil, a ‘aurora de Vilazinha‘”, pensou.
— Você acordou animado hoje, Amor. Ansioso pro festival? — perguntou Rebecca, surpreendendo-o com um agarro por trás.
— Eu só quero que dê tudo certo. São boas pessoas e espero poder retribuir a confiança delas em mim. Esse será o primeiro passo para isso — disse, apertando as mãozinhas sobre sua cintura.
Rebecca assentiu, aninhando a cabeça nas costas dele.
Mas enquanto o casal trocava suas carícias matinais e se preparava para os acontecimentos do dia, no outro lado da vila, os recrutas se reuniam para iniciar suas atividades.
— … Ah, e não se esqueçam do hino! — Instruiu uma garota com franja no olho. Ela estava na frente da antiga base da guarda, atual base temporária da polícia, até Pedro construir-lhes um novo centro de operações.
— Sim, senhorita Janet! — responderam os mais de quarenta recrutas, a maioria mulheres.
Eles vestiram pela primeira vez seus uniformes oficiais. Roupas escuras e de tom acinzentado, peitoral de couro negro e, o mais importante, o símbolo da polícia tatuado na lateral superior do peitoral.
Nas cinturas portavam um cassetete, mas escondiam adagas curtas mais abaixo, anexas a suas coxas. Mas isso tudo era só uma precaução, afinal, suas armas mais mortais continuavam sendo os punhos.
Como não eram uma tropa militar, não usavam capacetes e nem equipamentos pesados. O objetivo de Pedro ao recriar a polícia nesse mundo foi cuidar da segurança pública, única e exclusivamente. Ele deixaria as guerras futuras para os remulus, caso precisasse.
— Erica, como o pessoal da outra polícia está? Todos em posição?
— Sim, senhorita Janet! — respondeu a baixinha, em um tom firme que escondia seu nervosismo.
— Ótimo — assentiu a aparentemente eleita líder dos recrutas. Em seguida se virou a Poodle — Jonson, o que você acha, já podemos ir agora?
O garoto ajeitou a postura, apalpando o uniforme, antes de dizer:
— Sim. O lorde já deve estar se preparando, precisamos já estar apostos quando ele chegar.
A garota assentiu, em seguida distribuindo as ordens.
— Pois bem. Senhoras e senhores… à caça!
— Sim, senhorita Janet! Wolf! Wolf! — Àquela altura, este possivelmente já se tornou o brado oficial dos futuros oficiais da vila.
…
Cerca de meia hora depois…
— Habitantes de Vilazinha, meus caros amigos. Com a autoridade a mim confiada, é com orgulho que anuncio aqui a abertura do Festival Cultural de Primavera!
— AEEEEE! VIVAS AO LORDE! VIVA À VILAZINHA!
— VIVA!
Pedro estava em cima de um palanque no momento, todo animado encarando seu povo e acenando para pequena multidão. Duas mil cabeças, mais ou menos a quantidade total de habitantes do lugar.
As pessoas até saíram dos campos adjacentes para participar do tão prometido festejo.
Ao redor deles estavam diversas iguarias e decorações festivas. Como Vilazinha estava bem próxima de um dos afluentes do rio Namoa, a maioria das pessoas cultuavam as divindades relacionadas àquelas águas.
Por causa disso, havia peixe em abundância, preparados das mais diversas formas possíveis. Uma senhora até mesmo fez doces com eles.
Além disso, vários varalzinhos festivos foram estendidos, junto com lonas e barraquinhas. As flores realçavam a já alegre decoração.
— Antes, contudo — continuou —, eu peço a licença de vocês para apresentar os integrantes do novo sistema de segurança da vila. Podem vir, oficiais!
Quando Pedro deu o aval, uma grande comoção veio por de trás do palanque.
— O QUE VOCÊS SÃO? — gritou firme uma voz feminina.
— “CÃES, CÃES! SOMOS MALDITOS CÃES DE CAÇA” — responderam os homens.
— “O FARO QUE NUNCA FALHA! O DENTE QUE AMORDAÇA!” — bradaram as mulheres.
Em seguida, vários agentes com uniformes escuros correram em fila para frente do lorde. A multidão os deu espaço.
Enquanto se colocavam em forma, um deles subiu no palanque e entregou uma bandeira a Pedro, que a estendeu na frente da população. Um cão louco em um fundo preto.
— Obrigado, Pastor — disse.
As pessoas fitaram o grupo com curiosidade e admiração.
— Mamãe, olha! Tem muitas mulheres ali — reparou uma menininha. — Mulheres também podem ser guardas?
— Não são guardas, filha. Você não ouviu o lorde? São polícias. E sim, acho que você também pode ser uma quando crescer — respondeu a mulher, tentando esconder sua empolgação.
Mulheres participando do monopólio da força? Essa não era a regra que vigorava até então. Ao menos não era o que viam antes.
Todavia, a intenção de Pedro era inovar. Ora, por que raios ele deveria desperdiçar metade dos talentos que dispunha? Em prol de um preconceito bobo?! Aquilo não fazia sentido para ele.
Além da necessidade que se impunha na época, o nobre teve visão. Com artes-marciais, mulheres são tão fortes quanto homens.
E no início algumas pessoas até discordaram, pensando erroneamente que mulheres não eram fortes ou inteligentes o suficiente para o trabalho. Pobres tolos! A realidade logo mostrou o contrário, sobretudo após o surto de gripe e a invasão dos gaudérios.
Mas é claro, Pedro também fez o seu papel ao não esconder do povo seus futuros protetores. Quando achou que estavam prontos, fez questão de colocá-los nas ruas para fazer a segurança diária da população. De modo que, com o tempo, eles acabaram não apenas sendo aceitos como reconhecidos por eles.
— Bravo! Que Namoa abençoe nossos cães de guarda! — bradou um aldeão. O homem fazia parte do grupo conservador, até ter seu bar saqueado por alguns meliantes e precisar da ajuda dos recrutas.
— Um bravo aos cães de guarda!
— Bravo!
Em seguida Pedro os reapresentou aos policiais municipais da antiga guarda, agora com seus novos uniformes e equipamentos.
Eles adotaram um bastão e um escudo como símbolo, pois eram a vanguarda de proteção da vila. Basicamente, cuidavam das muralhas e policiamento ostensivo, enquanto os colegas da outra polícia cuidavam das investigações, denúncias e faziam tarefas de inteligência para o lorde.
Feitas as apresentações iniciais, o festival de fato começou.
— Poodle e Pastor, orientem os remulus com os barris! HOJE A CACHAÇA E O PEIXE SÃO POR MINHA CONTA!
— AEEEEE! VIVAS AO LORDE! — comemoraram os foliões.