Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 63
Após a abertura do festival, Pedro foi encontrar Rebecca para um encontro. Todavia, a garota estava muito ocupada ajudando nas barraquinhas e por isso não pôde ir.
Sem coisa melhor para fazer, o rapaz foi até a praça ver a apresentação teatral.
Foi bem cauteloso e se escondeu na multidão. Possivelmente para não desviar o foco da apresentação e também para ver os atores se apresentando com tranquilidade, sem a pressão de serem assistidos por ele, lorde da vila.
— Ô, Mörnan, poderosa irmã! Que temos a fazer, senão o embate pesado contra tais criaturas de Venöt — recitou um deles, fantasiado com uma roupa verde estranha, muito parecida com um quimono indiano. O cabelo estava pintado de azul e usava um coque.
A pessoa a seu lado agiu em seguida. Era uma mulher fantasiada de igual modo, só que com uma cor azul ainda mais intensa e um corte pintado no rosto.
Ela se posicionou em cima do teatro improvisado e disse:
— Se os ventos trouxeram a guerra, Manzan, recebê-la-emos! Pelo bem da deusa, emos de vencer — Em seguida se virou para os figurantes. — Venham, ô terríveis soldados da tempestade!
Eles a obedeceram e partiram para cima. Suas vestes brancas e as máscaras sem rosto contrastavam com a vivacidade que os guardiões transmitiam.
Pedro foi surpreendido pelo que veio a seguir. As coisas não aconteceram conforme se pensou. Esperando uma luta, tudo o que viu foi uma dança.
Um baile entre os soldados de branco e os guardiões da deusa. Eles balançavam entre si, gingando e desviando dos movimentos um do outro. Ninguém negava que uma batalha legítima estava acontecendo ali.
— Incrível! — O jovem baronete deixou escapar.
E as coisas continuaram nesse sentido, Manzan avançava, os ventos recuavam. Enquanto, do outro lado, os inimigos investiam e Mörnan se afastava. A luta foi intensa. E Pedro estava totalmente imerso nela.
Pelo que entendeu, Venöt era o deus dos ventos, enquanto os outros dois eram os guardiões da hidrografia. Sua mestra, Namoa, era a deusa dos rios e lagos, bem como senhora de todas as águas do Oeste.
Exatamente no momento em que chegou a essa conclusão, o rapaz sentiu uma mão tocando-lhe o ombro.
— Então é aí que estás, jovem lorde — disse a voz.
— Eae, Mark — cumprimentou.
Curioso sobre algumas coisas da peça, o rapaz aproveitou-se do velho.
— Esse tal de Venöt aí, quem ele é? E porque até hoje nunca ouvi falar dele? — questionou.
— Oh! O jovem lorde não sabe?
Ele indicou que não.
— Venöt é o senhor dos ventos, da surpresa, das tempestade e, às vezes, da calamidade — respondeu-lhe o velho.
Pedro, entretanto, permaneceu confuso.
— Como assim?
O velho indicou que continuasse a ver a apresentação. Ele assentiu, e não demorou muito até que uma explicação sobrevivesse.
No ato seguinte, um personagem grande entrou em cena. Mas ele não tinha nem corpo e nem forma, tornando muito difícil para que Manzan ou Mörnan o enfrentassem. Os dois eram levantados pelo vazio e em suas danças foram arrastados até a beirada do palco.
— Não, Manzan! Não caia! — gritou a multidão.
— Chamem a deusa para salvá-los! — pediu uma moça aleatória, como se combinado de antemão. Provavelmente foi.
Na mesma hora uma mulher muito bonita entrou por detrás do cenário, com uma túnica azul que combinava com seus olhos. Tinha cabelos azuis claros, mas Pedro sabia que era apenas uma peruca, afinal, conhecia a atriz. Era Celine, que proclamou para o vazio:
— Ô, Venöt, que queres ao vagar por meus domínios?
Atrás das cortinas, uma voz rouca respondeu com outra pergunta:
— E o que quer o vento, senão vagar livremente?
A deusa fez uma pose heróica de inconformismo. Levantou as mãos para o alto e interpelou:
— Se apenas este és o teu desejo, por quê fazes tu tanta calamidade?
Os instrumentos musicais ao fundo pararam para a resposta da voz.
— E que culpa têm os ventos pelas tempestades que geram ao vagar livremente? Ora, quem é aquele cruel ou insano o suficiente para culpar a mãe pelas destruições causadas pelo filho?
Depois do diálogo ocorreu uma nova batalha, para alegria dos presentes. Os alaúdes e tambores de canto intensificaram seus batuques.
Aquilo, contudo, pareceu ter aberto a mente de Pedro.
— Incrível! — exclamou novamente o lorde. — Que mito incrível sobre a formação das chuvas! E que apresentação formidável. Eu não sabia que apresentações teatrais pudessem transmitir com tanto vigor a mitologia.
Mark o encarou de canto. Seus olhos transmitiam um ar de entendimento e o mesmo nível de encanto pela peça.
— Bem, não é todo dia que podemos ver uma apresentação dirigida pela própria Martha WoodGreen — comentou com encanto. — Mesmo em minha juventude na corte, foram raras as vezes que tive a chance de vê-la.
— Ah é? — O rapaz ficou um pouco espantado com aquilo. — Não sabia que ela era tão famosa assim…
— Pois ela é. Ou melhor, era — Mark se corrigiu. — Ela se aposentou já faz um tempo. Acho que mesmo Edward tinha uns sete ou oito anos na época.
— Nossa, e o que ela fez durante esse tempo todo?
A nova descoberta atiçou a curiosidade do baronete.
— Uns dizem que viajou pelo mundo, outros que encontrou um amor. Mas ninguém sabe das coisas que ocorrem em Mea, a não ser Urzad, não é mesmo? — O companheiro idoso respondeu com um ar de charada.
— Urzad? — questionou.
— O deus do destino.
— Ah…
A informação até então desconhecida fez a mente do rapaz entrar em um estado reflexivo. Ele apoiou o queixo com o braço.
“Então quer dizer que Martha simplesmente sumiu por um tempo e só depois disso resolveu voltar pra cá?! Que doideira”, pensou. “Bom… ela tem uma neta, então é possível que a história de achar seu amor seja mesmo verdade”.
Ele ainda mantinha dúvidas em seu coração, mas decidiu não investigar mais. Não seria apropriado invadir a intimidade dos outros assim. A idosa era apenas uma dançarina aposentada com saudades da terra natal, é isso e apenas isso.
— Vou explorar mais o conhecimento dela então — disse.
Mark concordou.
— Enfim, jovem lorde, o assunto que tenho que tratar com o senhor é que já estou de partida — explicou, para a surpresa do amigo.
— Como assim, Mark? Cê não vai mesmo ficar até o final? — questionou-lhe o baronete. — Vamos lá, pô! Se diverte com a gente. Vamos… Vou pegar um pouco da sua cachaça favorita! Tu prefere conhaque, né?
O velho, contudo, balançou a cabeça em negação.
— Isso é tentador, jovem lorde. Mas tenho mesmo que ir. Já atrasei em meio mês a minha estadia e lorde Edward precisa de apoio com as preparações para o banquete de Sua-Graça — explicou.
O banquete de aniversário do Príncipe. Pedro foi informado disso há alguns dias pelo velho conselheiro.
— Sendo sincero, só esperei até agora por conta de meus ex-alunos. Queria ver com meus próprios olhos suas reconduções ao cargo de protetores da vila, agora com os cargos de polícias municipais — Mark falou com afeição.
— Louvável, velho — comentou o jovem amigo, espreguiçando-se com os braços. — Bom, não vou tentar te convencer então. Quanto a esse tal banquete, vai ser no final do verão mesmo?
— Sim — Ele confirmou. — Lorde Edward enviará os detalhes depois, mas precisaremos de sua presença na comitiva. Embora vossa aparência ainda não seja tão conhecida, as coisas que fizestes durante a Rebelião de Gloomer andaram se espalhando com muita força pela boca dos bardos ultimamente, jovem lorde. Sua-Graça em pessoa solicitou sua presença.
— O Príncipe mandou me chamar? — perguntou.
O velho assentiu.
— Nós fizemos o que podíamos para barrar, mas sabe como é a boca do povo… Não é possível guardar segredos onde há expectadores vendo.
— Isso é verdade — O lorde concordou, antes de entrar em estado reflexivo.
“Hum… parece que minha viagem tem data pré definida então. Felizmente ainda estamos na primeira metade da primavera, então tenho uns meses”.
Ao sentir o amigo ir embora, Pedro o segurou pelos braços.
— Espera um só um pouquinho, vou mandar o Tício e o Mévio acompanharem você até Jamor — falou, sem dar chance de uma recusa da parte do velho. — Aproveita essa cachaça até lá.
Ele pegou um copo cheio das mãos de um aldeão e o entregou a Mark. O pobre homem até queria protestar, mas não estava sóbrio os suficiente para isso.
— V-viva.. ao lordi! Glub! — tentou dizer, antes de cair.
— Fica aí! Volto rápido. — O rapaz saiu correndo, deixando o velho sozinho com o seu embaraço no local.
“Esse jovem lorde… Faz tempo desde que encontrei um governante com tanta audácia e que se preocupasse tanto com os seus quanto ele”, pensou, se lembrando de alguém. Mas logo fez uma correção: “Não, ele é único. A intensidade e a atitude explosiva são o que o tornam assim. Quando decide algo, se entrega completamente e de coração aberto”.
E a conclusão de Mark fazia sentido. Até agora, Pedro de fato fez tudo o que pôde para o bem dos seus, sendo isso de acordo com as regras ou não. Ele era cruel com os inimigos, é verdade, mas amava em igual profundidade as pessoas que lhe eram próximas e fazia tudo por elas. De fato, muito intenso.
Talvez fosse apenas natural, ou pode ser que isso tenha alguma relação com as modificações que sofreu. Quem sabe…
Dois minutos depois, ele voltou com os remulus. Mas não apenas com eles. Também trouxe todos os policiais municipais que conseguiu encontrar e, juntos, entregaram um presente a Mark.
— Esses palermas tavam guardando pra te dar só daqui uns dias e por isso não embrulharam direito, mas fizeram com o coração, isso eu garanto — disse, se virando ao líder deles.
— Lorde Pedro tem razão, foi com muito carinho que fizemos essas cartas para o senhor, professor Mark — falou o capitão.
— Nós descemos as letras com intensidade e subimos com pouca intensidade, também treinamos muito, igual o senhor mandou — adicionou o ex-aluno.
Todos estavam empolgados com a demonstração do que aprenderam, embora chorosos com a ida de Mark.
— Vamos sentir sua falta, professor — disseram.
Mark se encheu de carinho ao ouvir aquelas palavras. Ele recebeu todas as cartinhas, uma por uma, e as guardou bem no suporte improvisado que o lorde lhe deu.
— Bom, cê sabe que caligrafia não é minha praia, né não velho? — Pedro sorriu. Em seguida retirou seu presente — Então fiz esse desenho.
Mark olhou atônito para o pedaço de papel. Nele estavam o conselheiro calvo, com um círculo mal desenhado e uns fiapinhos. Aquilo era sua cabeça?
Também estavam os recrutas, os policiais municipais, ele próprio e Rebecca — a mais bem desenhada, por sinal. Todos eles estavam no vilarejo, comemorando com o restante dos habitantes em uma grande festa.
O velho riu, mas se sentiu extremamente alegre em seu coração.
Parecia algo que receberia de seus netos, caso tivesse algum. Talvez fosse por isso, ou talvez ele realmente gostou do que recebeu. Fato é: o velho conselheiro adorou.
E seu peito já sentia o remorso de ter que deixá-los, a saudade antecipada da ida. Entretanto, o conselheiro tinha uma missão a cumprir ao lado de Edward, outro rapaz brilhante — não tão forte, poderoso ou malicioso quanto Pedro, de fato, mas um que ele jurou proteger e guiar pelo futuro da nação.
— Vá com Namoa, Mark. Te encontro daqui uns meses, antes do banquete — disse Pedro, observando o velho partir.
— Fique bem, jovem lorde — O velho respondeu de longe, segurando-se em seu cavalo e sendo acompanhado pelos dois protetores remulus.
Era tarde, mas o sol ainda estava alto. Por isso, eles decidiram voltar para a festa.
— Agora vem a disputa de artes-marciais dos recrutas — disse. — Vamos! Vamos ver uma coisa interessante hoje: porrada! Hahaha!
Os agentes de segurança acompanharam a gargalhada do rapaz, se apoderando de alguns copos e seguindo o mestre até o espetáculo.
— Aeee! Porrada! Hahaha!