Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 64
Pah! Poft!
Dois jovens trocavam socos em um tatame improvisado. Mas não apenas socos. Também haviam chutes, cotovelas e pontapés. Todos eles executados de uma forma, digamos… peculiar.
— Não fuja, seu covarde de merda! — xingou a baixinha de cabelo arrepiado.
— Isso não é fuga, Chihuahua, é estratégia — respondeu o garoto de cabelos acinzentados.
No momento, a garota usava os pés para farejar a costela do adversário.
Por sorte, ele abaixou na hora e viu a voadora passar por um ângulo privilegiado.
Ziip!
— Pois a sua estratégia é covarde, seu boçal! — reclamou a policial.
Poodle não deu a mínima, apenas pensando em como faria para sobreviver ao próximo round. Seu esforço não adiantou muito, contudo.
Pah! Chihuahua fingiu uma investida, desestabilizando o planejamento do adversário.
Há dois palmos de seu alvo, ela parou, pulou e desceu o pé. O alvo? A cara dele.
Poft!
— Foi uma luta curta — Pedro comentou, olhando para o palco e vendo o juiz interromper a luta por nocaute.
E ele não estava sozinho na arquibancada improvisada. Outras pessoas o acompanhavam, intrigadas pelo que presenciaram.
Essas pessoas vestiam vestes de linho e tinham visuais limpos. Suas aparências divergiam muito das que os plebeus normalmente tinham.
— Lorde Pedro, existe a possibilidade de enviar alguns de seus oficiais para treinar a guarda de Hatton. Peço isso em nome de meu pai, o senhor da casa Hatt — disse o jovem. Ele tinha um rosto quadrado e era um pouco mais alto que Pedro.
— Lorde Pedro, peço o mesmo em nome de meu avô, o Barão de Camring — falou em seguida o outro rapaz, este bem mais baixo e de rosto comum.
O lorde em questão achou curioso o fato de ambos os presentes serem parecidos com seus genitores, aqueles que ele conheceu antes em Oss.
A propósito, as outras pessoas perto dele eram todos representantes de famílias senhoriais da região. E no momento encaravam o senhor de Vilazinha com expressões expectantes.
Ele acenou de volta, fazendo mistério.
— Infelizmente meu contingente ainda é pequeno. Se os mandar sofrerei com a falta de pessoal.
E a aparente recusa desanimou um pouco os enviados, mas isso só até que o anfitrião terminasse a explicação.
— Entretanto, não vejo mal algum caso vocês mandem alguns alunos intercambistas pra cá no próximo outono, que é quando abrirei uma nova turma.
Receptando a oportunidade, eles se animaram novamente.
— Com uma pequena ajusta de custo, é claro — completou.
— Claro! — responderam em uníssono, sorridentes e sem questionar.
Essa proposta era ainda melhor do que receber instrutores visitantes em seus domínios, pois ali seus enviados poderiam ver na prática o funcionamento das forças de segurança de Vilazinha, ao invés de só terem aulas teóricas com eles.
Obviamente que Pedro se aproveitaria da tal “ajuda de custo” para explorá-los, mas isso é história para outro dia.
Voltando ao palco, a luta chegou em um momento decisivo. Quartas de finais, Pastor contra Nathalia.
A garota tímida havia enfrentado a amiga no round anterior e seus movimentos rápidos encantaram todos os presentes. Foi uma vitória de pirro, árdua e difícil, todavia lhe rendeu uma disputa com o maior adversário até então — literalmente.
— Comecem! — ordenou o juiz.
Os dois se encararam e fizeram a saudação tradicional antes de iniciar.
Segundos passaram enquanto Nathalia se preparava para defender. Pelo que observou das outras rodadas, o primeiro golpe seria aterrador e ela tinha que firmar os pés se quisesse continuar no palco.
O rapaz grande, contudo, não se moveu. Seu semblante esbanjava uma expressão complicada. Cara de quem comeu mosca.
— Você tem certeza que…
Ele estava hesitante em lutar. Por causa disso, foi a garota a iniciar o embate.
Zuuop!
Ela correu muito celeremente. Pastor quase não a viu chegar, quase…
Pah! Ela se agachou e desceu um chute sobre as articulações do joelho dele, que teve que pular para não cair.
Nathalia não demonstrou piedade, se aproveitando do momento de instabilidade para atingir um gancho no queixo do oponente.
Poft! Pastor ficou zonzo. Ela se aproveitou novamente.
Pah! Pah! Pah!
Golpes e mais golpes, rápidos e precisos. Todos em articulações ou áreas frágeis. O gigante se meteu em uma completa enrascada agora.
Os convidados na plateia ficaram perplexos quando Nathalia empurrou a montanha de carne para fora do tatame. A luta durou 30 segundos!!
— O combate terminou! Vencedora: Nathalia! — anunciou o juiz, levantando a mão da garota.
“Quem ensinou essa caralha pra ela?”, Pedro pensou, completando após um breve raciocínio: “Certo, fui eu quem ensinou essa caralha pra ela, mas nunca lhe disse para ser tão maliciosa assim…”
— Ela só mira em áreas frágeis e abre totalmente mão da defesa pra acertar. Isso é suicida… — murmurou em voz alta.
E apesar do tom, seus olhos mostravam aprovação.
Durante a luta, algumas coisas ficaram claras. A primeira era que Pastor hesitou e por isso perdeu. Se desse o primeiro golpe como antes, as coisas poderiam ser diferentes.
Mas não o fez. Ao invés disso foi pego de surpresa e só descobriu o que aconteceu quando caiu do tatame.
— Brown! Você está bem? — perguntou a garota, largando a mão do árbitro e correndo até o amigo caído.
— Wow! Isso foi incrível! Não sabia que você era tão rápida. Nos treinamentos você não fazia assim. Quase nem lutava, pra falar a verdade. Hahaha!
Ela enrubesceu.
— Isso é porque eu… queria guardar segredo pra hoje… e-e…
— Ah, é? — Ele a encarou. — Por quê?
Mas mesmo antes de receber uma resposta ele já soube. No momento em que viu Pedro sorrindo da arquibancada e a amiga acenando de volta animadamente ele soube.
O rosto dela estava vermelho e as ações um tanto rígidas. Sintomas de uma doença terrível chamada paixão.
— Por que não vai lá e fala com ele? — perguntou.
— Isso… é… b-bem…
Naquela mesma hora, entretanto, eles foram interrompidos por uma silhueta ao fundo. Estatura média e feições suaves.
— Parabéns, Nathalia! Você foi muito bem. Rápida como um gatinho, igual ensinei. Hehe…
— Leide Rebecca! — exclamou Pastor, curvando-se.
Virando-se de frente ele viu a amiga fitar a senhoria de cabelos roxos com uma expressão complicada. Um misto de admiração, agradecimento e inveja. Este último bem escondido, por óbvio, mas ele conseguia ver.
Quando se conhecia alguém há tempos, começava-se a notar essas coisas. De modo que apenas um simples gesto ou omissão bastava para saber o que a outra parte sentia.
— O-obrigado, minha leide! — exclamou, se curvando levemente em respeito.
Observador que era, Pastor logo entendeu o que estava acontecendo.
Nathalia nutria sentimentos pelo Lorde, mas tinha uma dívida com a Leide. Provavelmente a admirava. E portanto não queria traí-la. Mas será que deveria sacrificar o próprio coração para tanto? Rebecca valia tanto assim pra ela?
Certamente que não. Ou foi isso que Pastor concluiu. Todavia, como a faria superar a timidez e se declarar para seu amado? Parecia uma tarefa impossível!
Ele suspirou internamente.
“Será que eu devo contar isso para o Lorde?”, pensou, todavia descartou a ideia. “Não. É melhor não me envolver. Lorde Pedro deve estar muito apaixonado pela Leide. Afinal, não tomou nenhuma amante até agora.”
O cadete encarou um pouco as arquibancadas, só para ver Pedro com Rebecca nos braços. Parece que ela foi para lá depois de ajudar nas barraquinhas e só passou ali para parabenizar Nathalia.
“Nesse sentido ele é igual papai”, refletiu. “Admirável, mas isso só se torna mais complicado ainda pra Nathalia…”
— Ei, Brown! — chamou a garota. — Tem certeza que está tudo bem com você?
— Ah! Sim, sim! Tudo bem aqui, só pensando na próxima luta. Haha! — concertou-se, complementando: — Trate de dar uma surra naquela Erica pirralha por mim.
A amiga deixou escapar um sorrisinho.
— Vou tentar.
…
No final, Nathalia não venceu a oponente. Mas também não se importou muito com isso. Foi uma luta difícil e a adversária venceu de forma justa.
Além disso, o prêmio pelo primeiro lugar nem foi tão atraente assim. Uma coroa de flores entregues pelas mãos da Leide, junto com algumas pratinhas.
O seu foi muito melhor em consideração: um elogio do Lorde, uma peça esculpida por ele e, o mais importante, um abraço apertado.
Tá certo, mesmo ela teve que admitir que a espadinha de ferro carecia de beleza. Mesmo assim, aquele agora era o seu tesouro, pois foi algo que ganhou de uma pessoa importante. Algo feito manualmente por essa pessoa.
Mas, enquanto a garota se esfregava em seu travesseiro de emoção, do outro lado da vila uma discussão relevante acontecia.
De sua mansão, Pedro discutia com Rebecca sobre os boatos que descobriu ao conversar com os representantes da nobreza local.
— Tenho certeza, meu amor. Essa cratera não foi algo que uma pessoa normal é capaz de fazer. Tenho certeza que o único aqui além de mim ou Beto com poder o suficiente pra isso foi aquele safado do Giulliano!
De sua poltrona na sala, o rapaz de cabelos castanhos explicava à sua amada sobre as conclusões a que chegou. Parece que ele já havia contado a ela sobre os detalhes de sua incursão a Oss.
— Mas, Amor, nós ainda nem sabemos se foi ele mesmo quem atacou a cidade — apontou sabiamente a garota.
Ela estava no sofá do lado de Pedro, mas com o corpo virado para ele. Próximos o suficiente para tocarem as mãos, como de fato o fizeram.
— Mesmo assim fico preocupado — disse o rapaz, esfregando os dedinhos da namorada. — Aquele bastardo não pode simplesmente sair por aí infectando as pessoas não! Olha o estado em que deixou Oss… Tsc! Cinquenta quilômetros pra cá e Vilazinha seria a atingida…
Rebecca sentiu as mãos dele suarem. O aperto aumentou.
Por isso, tratou da massageá-las bem, enquanto dizia:
— Sim, mas não foi isso o que aconteceu, não é? Já enterramos as pessoas e lorde Jin até mesmo assumiu o lugar do tio. Vai ficar tudo bem agora, igual as formiguinhas quando entram em suas colmeias, né?
Falando assim, nem parecia que há poucos meses o rapaz estava planejando um acidente para o seu desafeto.
Pedro riu com o comentário da namorada.
— Formigas não vivem em colmeias, minha jamantinha. Elas preferem fazer colônias na terra — explicou.
— Hum?
— Mas agora, que o sistema de suserania daqui é uma bagunça, isso é inegável! — disse, mudando de assunto.
A garota pareceu concordar, afinal não disse nada.
— Sabe… Esse tal de Rolirik veio me explicar hoje que seu pai foi chamado pra Jamor, por ser vassalo de um barão “sei lá de onde”. Disse que por isso não ajudaram no cerco — Pedro explicou isso com um pouco de desconfiança. — Eu não quero nem saber quem é vassalo de quem, espero que o Ed concerte essa bagunça quando for nomeado príncipe.
Rebecca assentiu novamente.
— Ele vai…
Todavia, uma dúvida dela foi desperta também. Ela veio com a citação da sucessão, que a fez se lembrar do motivo de Pedro ter ficado em Mea durante todo esse tempo. De modo que ela olhou para seu amado e perguntou:
— Você pretende ir mesmo pra Confederação no final do ano, meu amor?
Aquilo o pegou de surpresa.
— É… sim — disse, rapidamente se corrigindo: — Se estiver tudo bem pra você, claro. Quero dizer… Nós vamos à pé e serão centenas de quilômetros de viagem e…
— Oi?! — interrompeu a garota. — Eu ouvi direito? Você disse nós, Amor? Tipo, nós dois?
Os olhos dela brilhavam, claramente não esperava por aquela proposta súbita.
— Eu ia guardar isso pra uma ocasião especial mas… — disse, apertando novamente as mãos da garota e dizendo: — Acho que essa já é uma ocasião especial o suficiente.
Em seguida, ele desprendeu suas mãos do agarro da garota e as moveu para os ombros dela, dizendo:
— Rebecca, que tal ir comigo pra Confederação? Podemos esperar até a próxima primavera, as estradas tariam mais secas e…
— Sim! — disse, pulando em cima dele. — Claro que sim!
Os dois caíram na gargalhada. Rolando pelo sofá em meio a abraços e afagos um no outro. Rebecca adorava quando o rapaz desarrumava sua franja. Idem para Pedro e as massagens que recebia em seus ombros fortes.
O que se seguiu daí foram algumas carícias adultas e… algumas outras coisas.
…
No dia seguinte, o festival continuou.
O primeiro dia foi reservado à colação de grau dos recrutas, à apresentação teatral e ao torneio de artes-marciais. Tudo regrado a muita bebida e petiscos peixe, é claro.
No segundo dia, contudo, as coisas foram um pouco mais intensas. As pessoas saíram fantasiadas pelas ruas, imitando a batalha do jovem Grão-Duque contra os mercenários invasores. Isso foi há quase um ano, no verão. Mesmo assim, Martha achou oportuno usar o carnaval para estimular o imaginário popular.
A fantasia mais comum era a do “Nobre Estrangeiro”, aliás. Esse era o apelido pelo qual ele era conhecido na época.
Pedro achou graça disso. Não só disso, como da maioria das coisas que viu naquele dia. Em parte era devido à noite anterior, em parte à bebida e em parte ao clima festivo.
— Venha, vou mostrar pro cês o que um apreciador de bebidas habilidoso é capaz de fazer — Ele dizia, enquanto arrastava alguns ex-recrutas para os barris de cachaça.
Todavia, tiveram seus ímpetos interrompidos no meio do caminho.
— Ei, lorde Pedro! Olha quem está aqui? — informou o subordinado.
— Grace?
— Saudações, lorde Pedro — disse a nobre, levantando a saia em uma saudação.
Ele sorriu, levando a mão ao peito como foi ensinado.
— Onde é que tá o Jin? Tenho que mostrar pra ele a cachaça que inventei. Ele vai adorar! Hehehe…
Pedro estava animado. A expressão da garota, contudo, traiu suas emoções.
— Meu noivo pede desculpas. Ele ainda está muito abalado pela morte do tio Giron e anda muito ocupado desde que assumiu a suserania. — O tom reprimido dela revelava um pouco de sua tristeza.
E isso era razoável. Pelo que ele soube, mais de três mil pessoas morreram durante a Calamidade de Oss e a população daquela cidade agora era quase igual à de Vilazinha, como o nome diz: uma vila.
Pedro entendia. Jin já lhe mostrou muita face ao enviar sua noiva em pessoa para representá-lo.
Para tentar animá-la um pouco, ele botou sua melhor poker face, a levando para conhecer a adega que improvisou para as bebidas.
Naquela hora, entretanto, sentiu um calafrio súbito em suas costas.
Perigo.
Shiiiiiin! Pah!
O olhar de Pedro se acirrou. Por pouco ele não foi atingido de surpresa.
— Quem foi?