Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 66
A festa foi agradável aos novos membros. Eles descansaram e se divertiram bastante ao se misturar com o povo local. O nórdico e o loiro principalmente.
O primeiro decidiu ensinar aos policiais o que chamou de a força do punho. Já o segundo passou o tempo se enturmando com as membros femininas da corporação. Ambos fracassaram.
No dia seguinte o grupo foi até o escritório do lorde.
O espadachim abriu a porta e entrou, se recusando a sentar-se durante a entrevista.
— Venho de Erula e pertenço a uma das grandes famílias. Sai em uma jornada de conhecimento, em busca do verdadeiro caminho da espada — foram coisas que ele disse. Rápido e lacônico.
Aparentemente, Beto o desafiou para um combate nesse meio tempo. Ele perdeu e concordou em segui-lo por alguns anos. Um verdadeiro ronin em busca do bushido, se estivéssemos falando do Japão feudal.
A seguir vieram os já citados bárbaro peludo e arqueiro mulherengo. Tanto um quanto outro estavam num estado que só poderia ser descrito como triste. Suas caras estavam amargas. Parece até que foram pegos no flagra depois de mordiscar a caça de um tigre.
— Ressaca? — Pedro se perguntou, se lembrando com amargura de suas próprias aventuras.
Ao contrário do colega, estes não foram nada céleres. Apesar de sua cólica alcoólica, contaram toda a aventura que tiveram. Harold veio do norte do continente, de uma cultura diferente.
Ele era um Viki e por isso metade de sua vida era batalhar. A outra metade era plantar batatas.
A história do arqueiro era mais interessante, mas Pedro não gostou muito do final. Ele passou mais ou menos duas horas no definiu como “a coisa mais lasciva que ouvi na vida”.
— Eu vou construir o maior harém do mundo! — afirmou o loiro pervertido, antes que o lorde o enxotasse dali.
A última a se apresentar foi a garota. Ela era normal em tudo. Rosto, cabelo, aparência, físico, estatura. Tudo no padrão, fazendo Pedro crer que talvez Beto tivesse se enganado ao trazê-la para lá, exceto por uma coisa.
— O que o mestre disse é mesmo verdade?
Pedro não entendeu a pergunta. Com “mestre” se referia a Beto, mas o que raios ele disse a ela?
— Vocês dragonark pretendem mesmo erradicar a santa Igreja?! Pretendem mesmo destruir Solis Solaris? — Seu tom era claro como o dia, enfático como o fogo. Entretanto, em suas notas escondia algo. Uma espécie de chaga, uma do tipo venenoso.
A reação de Pedro foi pular pra trás. Ela sabia quem eles eram e de onde vieram? Como? Quem era essa adolescente apática à sua frente?
Ele chegou a tocar sua cintura num ato reflexo, procurando a Sanguinolenta. O objetivo era silenciá-la antes que colocasse suas identidades em xeque.
Felizmente Beto também estava na sala e o impediu. O subordinado balançou a cabeça em um gesto de “tudo certo”. Foi então que o parou o punho e o colocou sobre a mesa.
— Quem é você e como sabe sobre nós? — perguntou, arqueando a sobrancelha.
Ela se manteve calma, mesmo diante da pressão causada pela aura liberta de Pedro. Respirou fundo e olhou para Beto de um modo hesitante, antes de começar.
— Você perguntou como eu sei sobre os dragonark. Foi algo que ouvi do mestre — explicou a garota. — Quanto ao resto, me desculpe, entretanto só falarei se tiver certeza que vocês estão contra a Igreja.
Suspeito. Essa era a única palavra encontrada por Pedro para descrever aquilo. Afinal, por que ela queria tanto essa confirmação? Seria essa menina uma agente de Solaris? Se fosse o caso…
— Eu destruirei todos que ameacem o que é importante pra mim, não importa quem seja.
Aquilo não era o suficiente para uma resposta, mas talvez por pensar que era o máximo que receberia, a garota acabou concordando. Pelo tom que o lorde usou, mais o que ouviu do assassino de cabelos cacheados, ela imaginou que tivessem uma rixa com a Igreja.
— Escute-a, meu senhor. Ela tem minha confiança — Beto interviu, o que deixou o aliado espantado.
— Muito bem, continue então — ordenou. — Como seu mestre obteve essa informação?
A garota parou por alguns segundos, formulando a resposta que daria para aquele homem com a aura imponente à sua frente. Ela estava na corda bamba agora, o objetivo era ir até o final sem errar. Se conseguisse impressionar a plateia de dragões, ficaria mais perto do objetivo.
E foi com essa crença em mente que ela começou, sentando-se de frente para o lorde.
— Meu mestre tinha um certo talento — disse, olhando para a cara de seu entrevistador. — Ele podia curar qualquer doença, independente do que fosse.
Aquilo atordoou um pouco o aristocrata dragonark. Curar todas as doenças? Qualquer um que soubesse o significado de variabilidade genética sabia que isso era impossível, independente de qualquer tecnologia que houvesse. Sempre haveria um patógeno imune aos tratamentos.
Pedro não acreditou. Todavia, sabia que a menina era jovem e vivia em meio à uma lapa tecnológica medieval, talvez até pior.
— Ele era um médico habilidoso então — disse, ratificando o que ouviu com o ar mais sincero que pôde.
A garota concordou. Mas após aquilo sua expressão ficou baixa, seus ombros caídos se projetavam para frente. Foi da apatia fria para a melancolia glacial.
— Bom, se você tá aqui e não com ele, alguma coisa aconteceu. O que foi? — perguntou.
— Ele… foi assassinado…
As sobrancelhas de Pedro se arquearam novamente.
Em síntese, o que o homem tinha de habilidade também tinha de bondade. Curava a todos, independente de pagamento. Por causa disso ele foi tomado pelo povo como santo.
Entretanto a fama nunca o abalou e ele sempre continuou como o andarilho que era, sem riquezas ou luxo. E a única companhia que tinha além de seu grande coração era a garota órfã que salvou. Um exemplo, em todos os sentidos possíveis da palavra.
Infelizmente, o preço que pagou por isso foi alto. O homem não cultuava nenhum deus, apenas o amor. Isso fez com que se desentendesse com a Igreja, que o perseguiu até os confins do mundo e o assassinou. Isso foi há alguns anos.
— Entendo — murmurou o lorde, pensativo. Por causa de sua genética modificada ele não se abalou por tamanho desalento que é o infortúnio da garota. Mas sabia que, não fosse isso, ficaria.
Apesar da hesitação, a garota foi sincera com ele. Não escondeu suas verdadeiras intenções mesmo não o conhecendo. Consequentemente isso fez com que Pedro a admirasse.
“Ela tem a ousadia necessária, vou ajudá-la no que puder”, convenceu-se.
— Muito bem, se esse é o seu desejo então serei teu aliado — disse. — Qual o seu nome, menina?
— Eu me chamo Lerina, Vossa Excelência — respondeu, dobrando o joelho para ele.
— Lerina… — murmurou. — Muito bem, Lerina. Seja bem vinda à Associação.
Em seguida ele a pediu que fizesse um resumo de suas habilidades. Ela era uma curandeira, obviamente. Isso acabou deixando Pedro feliz. Um profissional do tipo era justamente o que faltava na vila.
…
Enquanto isso, em um lugar afastado de Mea, um movimento político importante acontecia.
— Senhores ilustres, orgulhosos colegas da Assembleia. Antes de iniciarmos o debate de hoje eu gostaria de fazer uma breve observação — disse um homem na casa dos vinte ou trinta. Ele vestia roupas nobres e uma faixa colorida, muito similar às que os políticos da Terra usam.
Qualquer um que estivesse em seu corpo se sentiria afogado pelo mar de mármore à frente. Veria pilastras nas laterais e sentiria a fineza provocada pelas cátedras concêntricas espalhadas pelo chão. Uma delas estava vazia, pois seu dono discursava em pé no centro do salão.
— Por favor, continue, senhor Lilus — referendou um indivíduo mais velho, sentado na cátedra mais próxima do centro.
— Agradeço, ilustríssimo mediador — disse, se virando para a plateia de iguais. — Caríssimos, creio que à esta altura os senhores já sabem das notícias que vieram do Leste.
— Sim, senhor Lilus, todos os presentes sabem das ousadias desenfreadas que os asseclas de Eburove. Tsc! Já fazem anos que aquela realeza torpe trama contra nós. Tudo o que os mequetrefes fizeram agora foi deixar escancarado o seu ardil! — disse um homem corpulento ao canto.
Ele até chegou a se levantar por alguns momentos, tomado pela cólera, mas logo se abaixou.
— Obrigado, senhor Lucelius. Creio que nenhum resumo de minha parte seja melhor que o seu. — Ele sorriu para o homem, que ficou altivo após ter o ego levantado. Em seguida passou os olhos por todos no salão.
Das cátedras da parte direita, reparou que anuíram seu gesto com olhares de confirmação. De esquerda, contudo, notou que muitos retraíram a cara e que alguns poucos faziam caretas feias.
— Como o ditador Lucelius lembrou, Eburove ameaça nossas fronteiras — continuou. — E mesmo assim, tudo o que fazemos é emitir uma nota de repúdio a seu rei? Tudo o que sabemos é ameaçar com a liquidação do comércio? Não, senhores, isso não pode continuar! Por isso, antes de votarmos à disposição das tropas, preciso lembrar-lhes desse fato.
— Falácia! — interpolou um membro da esquerda. — O reino de Eburove foi o primeiro país a nos reconhecer depois da revolução. Mesmo com Erula e Wex relutantes, eles iniciaram as comunicações. Por isso não permitirei que o senhor Lilus Willblood, por questões claramente pessoais, inicie sua campanha fraudulenta contra nossos aliados!
A oposição foi firme e os fatos contundentes, era inegável. Lilus, porém, não se deixou vencer facilmente.
— Ora, senhor Orneus, é verdade que o Príncipe da Velha Mea é meu parente. E também é verdade que nossos dois vizinhos não têm uma história amigável — disse calmamente, gesticulando. — Entretanto, há algo que o senhor se esquece…
O homem cruzou os braços, bufando levemente para que ele continuasse.
— Foi meu finado pai, Wolfang Willblood, quem nos liderou para a liberdade. E que Urzard o tenha em suas fileiras no grande rio — disse, louvando o ancestral. — O amigo de ontem não necessariamente será o de amanhã, meus caros. Muito menos o de hoje. E se simplesmente cortarmos o comércio, como sugere nosso ilustre colega, esse disparate nunca terá fim!
Ele fez uma pausa dramática, fingindo recuperar o fôlego, e piscou para o colega robusto.
Recebendo sua deixa, ele se levantou e disse: — Lutaremos contra os pervidos de Eburove! Pela nossa liberdade!
— Pela nossa liberdade! — gritaram. O ato foi recebido com gritos exultantes pela ala destra.
— Pela nossa liberdade!
A esquerda contudo não compartilhou do júbilo e ao invés disso os recebeu com vaias.
— Radicais! Esse reacionarismo afundará essa República! — exclamou um ditador.
— Por suas intrigas pessoais os Willblood querem afundar nossa nação!
Como matilhas opostas de lobos, eles se enfrentavam com tudo. E estavam dispostos a continuar, não fosse a exigência do idoso no centro e do pedido de silêncio dos dois líderes.
— Silêncio! — disse o velho.
— Acalmem-se! — pediu Lilus.
Orneus apenas ergueu o punho, o que foi o suficiente para pacificar seus partidários.
— Tudo será decidido com a votação. Não estou certo, senhor Orneus, ilustre mediador? — disse Linus, sorrindo para eles.
O velho assentiu timidamente. Já Orneus fechou a cara e respondeu com a mesma jocosidade.
— Pois então o que fazemos parados? Iniciem a votação! — ordenou.
E assim foi feito. Depois de um processo caloroso e de discursos fortes, tanto para um lado como para o outro, a votação foi encerrada com uma vitória para a reunião de mais tropas.
De início a ala pacifista obteve certa vantagem, mas logo foram superados pelos destros, que colheram mais prosélitos da ala neutra para sua causa justa. As fronteiras seriam fortificadas