Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 68
Enquanto intrigas políticas faziam crescer a temperatura na República, no Principado a brisa afável dos primeiros meses escondia as emoções desvairadas de um certo ex-prefeito.
— Aqui, senhor administrador. Trouxe os documentos que pediu — dizia um jovem na casa dos vinte.
O homem a quem se referiu estava assentado em uma cadeira. O móvel era de madeira cara e tinha uma amplitude lateral bem maior que as proporções do ocupante.
— Deixe-os lá em cima, Raul. E me ajude, por favor. Precisamos entregar o maldito relatório para o esquentadinho ainda hoje.
— Falas do oficial do Novo Exército, senhor? Sabe, aquele que Sua Alteza enviou?
— Sim, exatamente. Falo do maldito cabelo de laranja!
Antes, quando dissolveu as prefeituras, Edward confiscou boa parte das tropas inimigas e as incorporou ao seu próprio exército. Ele também substituiu os prefeitos por administradores nomeados por si próprio, não com base no título ou na terra que possuía, mas sim o talento.
E acontece que um certo nobre da cidade em questão atendia a tais condições, apesar de já ter ocupado um cargo de chefia municipal por seu título, como a maioria dos lordes em Mea.
— Tsc! Então pelo visto sua covardia não foi junto com o peso, não é, Visconde Armellius?!
Como se atacado subitamente por uma cobra, um arrepio veio à nuca do homem atrás da escrivaninha. Foi surpreendido pelo oficial de estatura mediana e armadura leve.
— Coronel! Este humilde não havia notado vossa ilustre presença. Por favor, me desculpe!
O ajudante no canto sentiu o medo arrancar-lhe os cabelos, mas o militar apenas virou a cara em desaprovação.
— Estava prestes a enviar-lhe o relatório e…
— Demorou demais! — interrompeu o oficial. — Então vim aqui por mim mesmo ouvir o que essa boca gorda tem a dizer a respeito da missão que Sua Alteza nos confiou. E acho bom ser prático!
— S-sim, praticidade é meu nome do meio, coronel — enrolou o ex-gordo, usando de toda experiência pregressa que tinha em ser afável a pessoas com poder maior que o seu.
— Acho bom mesmo — disse. — O comandan… ehr… quer dizer, lorde Pedro vem nos visitar em breve e eu realmente espero que ele não se aborreça com o estado precário de Gloomer, ou então…
A encarada firme mais a careta animalesca fez com que Collins se lembrasse mais uma vez de onde estava na atual cadeia alimentar.
Para a agonia de suas noites de sono, tigres agora andavam soltos, de modo que ter todo cuidado ainda se tornava pouco para uma gazela frágil como ele.
— Com licença, coronel, mas com lorde Pedro o senhor está se referindo à…
— Ãn?! Por acaso não entendeu direito? É claro que estou me referindo a meu ex-comandante, o herói que ajudou Sua Alteza a reprimir a rebelião. Falo do “Carrasco de Traidores” e “Terror dos Eunucos”, do ex-Conselheiro Militar de Sua Alteza— confirmou Fire, com nostalgia transbordando de seu coração.
Mais uma vez, Collins sentiu um arrepio súbito vindo do âmago. Memórias do conflito vieram à tona e ele se lembrou perfeitamente de como o lorde em questão manipulou toda a alta-nobreza para que iniciassem o conflito e então perdessem suas posses para ele.
Uma estratégia tão suja e tão descarada quanto era arriscada. Apenas um louco tentaria algo assim, um louco poderoso e perverso. No caso, Pedro atendia perfeitamente a essas condições, e de um modo que só ele conseguia.
Collins travou onde estava, forçando instintivamente a bunda na cadeira por autoproteção.
— Precisamos aumentar nossa carga de trabalho! P-p-por favor, coronel, ouça atentamente o relatório!
Fire arqueou os lábios em desdém, mas confirmou com um aceno. Afinal, ele também estava interessado em impressionar o ex-chefe durante sua estadia temporária em Gloomer.
E assim, os dias do agora administrador Collins Armellius ficaram muito mais estressantes, à medida que as noites se tornavam cada vez mais curtas. Isso durou até a chegada do convidado, mais ou menos uma semana após receberem a notícia.
…
Enquanto em terra firme certos políticos sofriam com a pressão, em um navio na costa, dois cavalheiros apreciavam a paisagem.
— Veja, velho Mark… não é incrível?!
— De fato, jovem mestre, Wardland em si só já é um local agradável. O porto que estamos construindo só a deixará ainda mais bela.
O conselheiro olhava do casco do navio para o povoado na costa. Muitas pessoas se aglomeravam ali, carregando consigo as ferramentas e os materiais de construção.
Antes de sair de Vilazinha, ele recebeu uma carta de Edward dizendo que deveria fazer um desvio para o sudoeste quando estivesse na estrada para Jamor.
Wardland era relativamente pequena, mas suportava bem as três fragatas da armada.
— Então, caro amigo, qual era o assunto urgente que você não podia relatar nas cartas? — perguntou o jovem barbado, apoiando-se sobre a proa.
Mark suspirou fundo, aproveitando para formular sinteticamente os fatos e resumir a situação.
E assim, durante o tempo que se leva para queimar um incenso, ele atualizou o lorde sobre todos os acontecimentos recentes, indo bem além do que ele já sabia pelas cartas.
Ou seja, deu detalhes acerca da epidemia, relatou o que Pedro lhe disse sobre o ataque gaudério e sobre o símbolo estranho encontrado no acampamento. Além disso, falou do grupo suspeito e do contrabandista que se escondia nos becos de Vilazinha.
Edward ficou surpreso, todavia mal sabia ele que o velho ainda não adentrara a parte principal.
E ele quase caiu do navio quando ouviu o que Mark lhe disse sobre a calamidade. Uma aberração aleatória destruiu a cidade?! Aquilo era mesmo possível? Um culto dissidente da Igreja estava envolvido?
— Que Namoa me repreenda pelo que direi, mas ainda bem que lorde Pedro estava por perto. Ou então…
— E o que mais Pedro falou sobre essa aberração em Oss? — perguntou Edward cautelosamente.
Mark pensou um pouco para responder. Queria se lembrar de mais alguma coisa, mas…
— Nada. Ele não disse mais nada.
A tez de Edward se acirrou. As rugas em sua testa se contorceram e isso claramente era um sinal de desconfiança. Não de Mark, contudo, mas sim de Pedro.
Entretanto, ouvindo com atenção o restante da história ele descobriu que era mesmo possível que o aliado não soubesse de nada e descartou parcialmente suas descrenças.
Em seguida então o Grão-Duque contou sobre os acontecimentos em sua parte do território. Foi assim que Mark obteve maiores detalhes sobre o incidente na Floresta das Colinas, ou melhor, sobre a atual Cratera de Jamor.
— “Se a terra podia abrir a boca e gritar, então aquela era a prova” — diziam os menestréis e bardos que andaram por aquelas bandas ultimamente.
Contudo aquele nem era o evento principal. No final aquilo foi apenas tido como um evento natural e que uma hora seria completamente esquecido pelas pessoas.
A principal informação na verdade veio dos espiões plantados nos domínios de seus irmãos.
Do Leste, descobriu-se que também houvera uma epidemia alarmante de gripe, da qual um certo grupo político se aproveitou para iniciar uma rebelião. Todavia foram todos massacrados sem piedade pelo exército do Grão-Duque. O episódio ficou conhecido como “Gripe de Liberdade” por parte dos inimigos de Simel e “Epidemia da Loucura” por seus aliados.
Já do Norte, por sua vez, descobriu-se que recentemente uma delegação de Eburove foi enviada para “facilitar relações diplomáticas na fronteira”. Ruffos os recebeu bem e os boatos eram que eles estavam combinando o casamento do Grão-Duque com uma princesa de Eburove.
O velho achou aquilo tudo muito suspeito e assim decidiu se aproveitar da situação para tratar de um assunto delicado.
— Jovem mestre, não achas muito suspeito que essa epidemia só tenha atingido o Leste, o Sul e o Oeste, mas não o Norte ou o Centro.
As três primeiras regiões eram as designadas para Simel e Edward, respectivamente. Enquanto que as outras duas referiam-se aos domínios do herdeiro mais velho e do próprio Príncipe, que delimitou uma área neutra no centro do país.
Observa-se, assim, que o velho tinha razão e que não havia como aquilo não ser suspeito.
— Então o que você está insinuando é…
— Não sei — disse interrompendo. — Mas tenho certeza que lorde Pedro nós diria que seu irmão mais velho provavelmente está envolvido nisso. Ou ele, ou alguém da alta-cúpula da Capital.
Edward pensou um pouco, mas acabou deixando aquilo para lá. Mesmo que seu irmão mais velho estivesse usando da influência de alguma seita dissidente da Igreja ou até mesmo de Eburove, o que raios ele poderia fazer para impedir? Não tinha provas e nem a graça de seu pai.
Por isso, apenas suspirou em voz alta, pensando em como empregaria suas próprias cartas para o contra-ataque. Ele teria de ser atento como um gavião se quisesse fazer isso dar certo.
— Se eles tentarem algo então eu realocarei Pedro como comandante de minhas forças e juntos iremos para a guerra! — vociferou com firmeza.
O nobre estrangeiro já demonstrou inúmeras vezes antes o seu poder individual, bem como sua capacidade de treinamento e suas táticas inteligentes de guerrilha. Com ele, a vitória era certa.
Ou era isso que ele queria acreditar no momento, apesar de saber que um ataque direto muito provavelmente não aconteceria por parte de seus adversários consanguíneos.
Mark encarou a água por alguns instantes, mas ainda prestando atenção no jovem grão-duque ao lado.
— Jovem mestre, sobre as terras que confiou a lorde Pedro…
— Já até sei o que vai dizer agora, Mark. Estás pensando que eu só as entreguei para mantê-lo ocupado, longe das linhas de batalha mas perto o bastante se precisássemos dele. Não estou correto?
O velho ficou impressionado, mas não pela franqueza. Esta já era típica do personagem em questão. O que o transtornou foi a malícia em perceber que esta era uma estratégia viável.
— Talvez… — admitiu — mas admito que não foi a principal intenção. No início eu só queria recompensá-lo por tudo.
As palavras que saíram foram eivadas com o substrato da ternura, cobertas com diminutas doses de nostalgia. Edward aprendeu muito nos meses que passou ao lado de Pedro, sendo ensinado por ele que a única maneira efetiva de se lidar com a maldade humana era com mais maldade.
Ora, se homens são lobos de homens, então basta se tornar um tigre e afugentar os canídeos. Eis a filosofia aprendida por Edward desde que assumiu como suserano.
Cerca de um ano atrás ele foi mandado a Gloomer para comandar o Oeste. E como bom jovem que era ele não sabia nada sobre governança, isto é, sobre as qualidades necessárias de um líder.
Todavia, observando atentamente aquele estrangeiro poderoso, ele foi capaz de assumir o controle completo da aristocracia e do exército. Fortaleceu suas forças e até estabeleceu sua posição oficial como herdeiro da coroa, reprimindo a debandada dos lordes fronteiriços para a jurisdição de seus irmãos e estabelecendo de vez o seu imperium.
— De onde exatamente ele veio? E como sabe tanto sobre esses assuntos…? — murmurou.
Mark ouviu atentamente no fundo, contudo também não soube responder. Os mistérios que rondavam aquele convidado ilustre eram tão enigmáticos quanto as origens desse mundo.
“Será que veio mesmo do Leste?”, perguntavam-se internamente os dois, embora sem admitir.
Questão trivial. De qualquer forma, uma hora ele iria embora. Edward estava esperançoso de que o apego a Vilazinha o faria retornar definitivamente para Mea. Mark pensava o mesmo.
Nesse sentido, a estratégia de afastá-lo da política e das questões de Estado para fazê-lo se concentrar no povo e na cultura locais foi genuinamente digna de nota.
Mesmo que fosse algo inicialmente feito sem essa pretensão, os resultados foram ótimos.
— Quando ele voltar, espero já ter conseguido convencer meu pai-real sobre minha superioridade. Eu então o nomearei duque e nós três juntos poderemos ajudar o povo de Mea…
— Faremos o possível para isso, jovem mestre. O possível e o impossível…