Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 69
Manhã de sol. A cidade estava um caos.
Muitos citadinos corriam desorientados pelas praças e edifícios em construção. O objetivo era o mural da prefeitura. As informações importantes ficavam ali, a imprensa desse mundo medieval.
E essa comoção devia-se justamente ao último cartaz, posto pelo administrador umas horas atrás. A questão era tão importante que até nos becos se ouvia falar dela.
— Ocê também ficou sabendo, chefe?
— Oxi, Juca! Sabendo do quê, seu lôco?
O amigo de roupas esfarrapadas o cutucou e sussurrou algo em seus ouvidos em seguida.
— O quê??!!! E-ele tá vindo pra cá??? — O pobre rufião quase pulou de susto.
Reparando o pescoço do colega se mexer, Juca não pôde deixar de engolir à seco. O coitado até largou a maçã. Perdeu o apetite.
— Chama os cara… nós vamu dá o fora daqui!!! Rápido! — comandou. O colega não tardou em sumir.
Aqueles dois de aparência comum e roupas em frangalhos na verdade faziam parte de um grupo de criminosos locais. Gente pequena. Não tinham a expressão de organizações famosas como os gaudérios que recentemente saquearam vilarejos inteiros.
Contudo, não importava o lugar, criminosos continuavam sendo criminosos. E, com o caos recente provocado pelas chamas da rebelião, alguns distritos anda continuavam sem lei.
Havia apenas uma coisa que os infratores dessa estirpe temiam de verdade. E acontece que essa “coisa” estava se aproximando da cidade.
— Ei, rapaziada! Pega as coisa e vambora! Ordem do chefe!! — gritou para os três compadres.
Vendo o ladino na porta, eufórico e suado, os rufiões demoraram a entender o que estava acontecendo. Ir embora? Será que ouviram bem?
— Quê qui pega, Juca? O chefe já tá chapado, é? — perguntou o mais velho deles.
— N-não! É sério!! Vão bora. Eu ajudo ocês.
Eles ainda não acreditaram naquilo. Talvez fosse apenas mais uma das piadas inconvenientes do companheiro. Contudo… espera! Ele não era daqueles que faziam trocadilhos.
— Hum? Isso é sério mesmo? — perguntaram.
Juca assentiu.
— Por quê?
— Não ficaram sabendo? “Ele” tá voltando pra cá…
Os três se encararam sem saber o que fazer. Por acaso esse “ele” era aquele “ele”?!
— Sim, o “Castrador de Bandidos” tá vindo! Precisamos partir de Gloomer agora, ou vai ser tarde demais — avisou. O medo transbordava de seu olhar.
Aquilo sanou completamente as dúvidas dos demais, que se apressaram para pegar suas coisas. Eles deram uma olhada instintiva para suas partes inferiores antes de sair.
— Vamô lá, seus puto! Vamu dá o fora daqui!!!
Naquela mesma noite, metade dos criminosos da cidade partiram. A outra metade foi nos dias seguintes.
Seu medo era real, bem como a possibilidade de terem tomados de si seu bem mais importante. No caso não se tratava da vida. Ficava um pouco mais embaixo que isso…
E foi assim que Gloomer passou de um coliseu de crimes para uma das localidades mais seguras do Oeste.
Mas o “herói” em questão não fazia a menor ideia de seu ato de bravura indireto. No momento ele apenas se sentava ao lado da companheira, calmo e sereno, enquanto guiavam juntos o palafrém e a égua mansa. Os animais puxavam com leveza a carruagem de acabamento simples.
Apesar da aparência simplória, todos que a viam tremiam ou de medo ou de ternura. O símbolo dos dragões dourados se tornou muito famoso por ali.
— É ele, lorde Pedro! — exclamou um indivíduo com espinafre nas mãos.
— Oh, lorde Pedro! Vivas ao lorde! — ovacionaram outros comerciantes e transeuntes.
O nobre em questão acenou de volta, para a alegria das damas em idade marital. Infelizmente, a encarada feérica da leide ao lado as impedia de se perderem em suas fantasias conjugais.
Contudo, Pedro sequer notava isso. Na verdade sua atenção foi completamente capturada pelas construções recentes que tomavam a paisagem.
Aquelas casinhas ficavam na frente das grandes cidades e normalmente eram habitadas por pequenos comerciantes e aldeões que queriam vender suas peças.
— O que foi, amor? Nunca viu um burgo antes? — questionou a garota.
— Não é isso — disse. — É só que não imaginava que alguém se atreveria a trazer seus negócios pra cá depois da rebelião. Essa cidade não ficou com fama de maldita?
— Hum? Mas essa não é a melhor coisa para um comerciante? — perguntou, não entendendo o deslumbre do companheiro.
Pedro ergueu uma das sobrancelhas. Rebecca achou aquilo divertido, mas pensou não ser prudente deixá-lo assim, perdido no escuro.
Ela então explicou. O que acontecia era que os nobres de Gloomer reprimiam o comércio fora dos muros. Diziam que a prática estimulava a vadiagem, prejudicava a paz pública e era contra os bons costumes, mas na verdade só não os queriam ali.
Isso só mudou quando Edward usou seu imperium e passou por cima deles.
— Ah… Agora eu lembro, pô! Foi eu quem o estimulou a fazer isso — disse.
Rebecca o fitou em silêncio, esperando-o continuar.
— Só que o malandro não explicou o que “tirar o sal da boca dos safados” significava — comentou. — Agora vejo… o miserável é mesmo um gênio! Hahaha!
O clima na entrada se tornava cada vez mais festivo à medida que o jovem nobre e sua esbelta companhia adentravam.
Guardas e soldados do Novo Exército cercavam os arredores, garantindo uma passagem livre ao ilustre convidado, bem como segurança aos transeuntes que se amontoavam para vê-lo.
— Ora, ora... mas que recepção mais espalhafatosa que vocês me arrumaram, em?
— Comandante!
— Lorde Pedro!
Os dois de mais alta hierarquia na cidade bradaram ao mesmo tempo.
Enquanto isso o baronete descia, ajudando Rebecca a fazer o mesmo, enquanto os subordinados descarregavam as bagagens e se preparavam para guiar os cavalos até os estábulos.
— Tenente Fire, fiquei sabendo que você foi promovido. Meu parabéns! Eu disse pro Ed antes, sabia que não demoraria a acontecer.
— Obrigado, senhor! Lorde Edward honra-me com tamanha confiança — respondeu, forçando para manter uma pose séria após ter sido elogiado pelo ex-comandante.
De canto, o outro homem encarava atônito. Ele escondia sua presença enquanto tentava não fazer barulho. Talvez o algoz à sua frente o ignorasse se fizesse assim.
Não deu certo, evidentemente.
— Senhor Collins, que cara é essa? Você tá pálido. Parece até que deu de cara com um carrasco. — Pedro riu.
O administrador ficou sem fala. Não sabia qual a reação adequada para escapar das garras da besta.
— B-bem-vindo a Gloomer, lorde Pedro!
Ele estava sem jeito, provocando o lado jocoso que havia no convidado. Mas este não faria suas habituais provocações, o olhar caído e rosto abatido do ex-gordo o fizeram sentir que já tinha sofrido demais.
Ele já foi devidamente punido e até ajudou na estabilização política após o conflito. Merecia um pouco de consideração.
— Levem-nos até os aposentos, por favor — disse, esticando os braços para se alongar. — Ah, e não se esqueçam de juntar os representantes dos comerciantes que pedi, okay? Tragam leite com açúcar e canja de galinha para a reunião, tem como?
Os pedidos eram incomuns, mas os subordinados assentiram sem questionar. Aquilo possivelmente tinha haver com a decisão de Pedro de passar pela cidade ao invés de só seguir reto até a residência dos Barcellos.
— Você gosta mesmo de leitinho com açúcar, né Amor? — brincou a garota.
Ele sentiu um toque brando alisando-lhe os ombros. Era suave como um soquinho amoroso que as namoradas dão nos namorados. Aliás, era exatamente isso o que acontecia.
— Ah, para né!? Falando assim até parece que cê não gosta do meu leite, Rebecca…
A garota corou.
Pedro riu e lançou um olhar sugestivo, enquanto Collins ia na frente, ainda se esforçando para passar despercebido. Fire os acompanhava de perto, mas não pareceu entender do que se tratava a discussão.
“Será que o leite do comandante é tão bom assim? A leide ficou ruborizada só de lembrar… Yep! Talvez eu deva pedir um pouco mais tarde”, pensou, completando: “Acho que o comandante não negaria”.
Havia um ditado que dizia que quanto mais ignorante era alguém, mais feliz se sentia e mais levemente se levava a vida. Fire era esse tipo de personagem.
…
República Mea.
O céu amanheceu nublado, enquanto a água lamacenta escorria pelas ruas da capital. Eram as lágrimas insalubres dos deuses, que choravam a morte do herói.
E não só os deuses. A multidão também fazia o mesmo, reunindo-se nas adjacências da Ágora para o funeral.
Estavam parados ali, estáticos, sem dar a mínima para os chuviscos que caíam ou para a sensação desagradável que vinha a seus narizes toda vez que lufavam o ar.
Não queriam perder o funeral do protetor da República.
O homem já havia sido cremado mais cedo, embarcado em um grande navio que havia atracado no porto de Solarwest, mas a parte mais importante apenas começou.
Toda a cidade veio, pois precisavam ouvir o que o jovem ilustre tinha a dizer.
— Lucelius Rock, ditador honrado, Marechal valente dessa ilustre república e, mais importante ainda, meu amigo amado… — Aquele que discursava limpou os olhos com a manga, antes de voltar: — Seus feitos em vida enchem-me de orgulho, mas sua morte precoce só me causa asco!
Os presentes se surpreenderam com aquilo. Em todos esses anos, eles jamais ouviram dizer uma palavra tão forte. O jovem estava com o rosto abatido e também não fazia questão de esconder isso.
Pah! Ele bateu o punho na tribuna, engrossando a voz.
— Lucelis Rock, aquele que aos quinze anos foi aclamado general, aquele que aos vinte liderou a invasão de Wex, aquele que resistiu às invasões nórdicas… meu irmão de juramento… foi assassinado cruelmente durante uma festa. Em minha própria casa!
Aquelas palavras que escapavam da boca de Lilus iam direto para os corações da multidão.
As pessoas que ouviam sentiam algo fugir de seus peitos. Era como se aquilo que lhes fora dito fosse algo horrível, a mais abominável humilhação. Mas não parou por aí.
— Antes eu me calava, pois pensava que aqui se respeitavam as leis, por mais injustas que fossem… — Fez uma pausa dramática. — Mas não! O direito à vida, algo tão básico… nem isso foi respeitado!
Aquilo sim foi uma surpresa. Direitos? Por que motivo o jovem oligarca invocou essa palavra mística? Eles logo descobririam.
Indiscretamente, Lilus apontou para o grupo de homens que se sentava nas cadeiras a leste. Lá estava a parte mais elevada do porto, construída estrategicamente para abrigar a oligarquia. Plebeus não eram permitidos ali.
O fato de o rapaz ter feito isso de sua tribuna improvisada, na parte de baixo do porto, fez alguns ilustres virarem as caras. Eles faziam caretas estranhas, sussurrando coisas entre si.
— O que deu no ditador Lilus? — perguntavam-se alguns.
— Tsc! Esse moleque odioso escolheu o pior dia possível para mostrar a verdadeira face!
O responsável pelo ataque foi um homem mais velho, de aparência impecável e expressão arrogante. Pela maneira que os membros daquela ala olhavam para ele, ficou óbvio que o respeitavam. Eles até pararam para que ele pudesse falar.
— Chamem os guardas! Agora temos um bom motivo para acabar com ele. Tsc! Esse maldito agitador!
Os colegas acenaram e alguns deles foram correndo em busca de ajuda. Os guardas chegaram bem rápido, contudo as coisas não aconteceram da forma que os brancos pensavam.
— Escutem, Lilus Willblood acabou de fazer uma acusação infundada a todos os ditadores brancos da república! A lei diz que ele deve ser legado a julgamento de imediato! — ordenou o velho.
Contrário senso, os homens de armadura se olharam com expressões jocosas e riram. Foi o suficiente para que eles entendessem o que estava acontecendo.
— Não podem fazer isso! V-vocês também serão depostos se isso for levado adiante… Espera! Onde estão os colorados? E os neutros?
Orneus encarou com preocupação o lado direito do setor, mas tudo o que viu foram cadeiras vazias.
— Eles não estão aqui! — concluiu. — Mas então… onde?! N-não me diga que…
Olhando para baixo, ele teve sua resposta. Todas as figuras importantes da ala progressista estavam lá!
Eles se misturavam entre os plebeus e os estimulavam a aplaudir e a ovacionar.
— Meus amigos, ou melhor, caríssimos irmãos! Nós vivemos em uma república injusta! Essa é a verdade! — Ele parou teatralmente. — Você! Vejo que tem roupas humildes, mas mesmo assim aqui está o senhor, honrando com seu dever cívico. Mas me diga, senhor, você pode votar? Pode escolher as leis que controlarão sua vida?
— Não…
— Pois é, este bravo cidadão não pode, meus irmãos. Mesmo doando tanto, ele não pode falar, sua opinião é insignificante! Meu povo, é por isso que neste dia eu, Lilus Willblood, estou aqui. Por justiça!
Os brancos da Assembleia encaravam-se em desespero. Vários guardas haviam chegado e se posicionado estrategicamente atrás deles. Orneus sentiu a mão pesada do capitão tocar-lhe o ombro.
“Estranho, o rosto desse homem não me é estranho”, pensou.
— Espera! Você não era o capitão da guarda antes. Onde está o oficial Morris, responsável pelas defesas da capital? — perguntou ao soldado.
— Ora, ditador, o senhor não se lembra de mim? Meu nome é Paul, sou o substituto do oficial Morris que, infelizmente, se “acidentou” hoje cedo.
Orneus não acreditou no que escutou. Então eles realmente estavam se aproveitando do assassinato de Lucelius para tomar o poder?
“O que diabos aqueles crentes estão pensando? Em?! Não só fizeram o trabalho pela metade e fugiram, como também permitiram que esse maldito Willblood armasse por detrás dos panos contra mim!”, refletiu.
Espuma saía de sua boca e o vermelho começava a tomar conta de seu olhar. Ele estava furioso. Mal sabia ele, mas Paul não tinha acabado de falar.
— E o senhor tem dado muito trabalho para meu pai ultimamente. Taxando todas as mercadorias do leste, onde já se viu?! Nem Näark é tão cruel!
— V-vocês I-isso não vai ficar assim!
Paul o fitou e riu.
— Senhor Orneus, você está vermelho como um pimentão. Aliás, todos aqui estão. Não me digam que… ah! Os senhores aprovaram leis erradas e agora estão com medo da ira da plebe? É isso, não é? Eu acertei?
As gargalhadas do rapaz fez com que algumas damas oligarcas chorassem de medo. Seus cabelos jogados para trás e olhos fundos se juntavam com a gargalhada lunática para lhe dar um ar sociopata.
— Ora, não seja por isso! — continuou, com as mãos sobre os quadris. — A guarda de Solarwest fornecerá proteção de agora em diante. Eu pessoalmente designarei uma certa quantidade de homens para vigiar suas casas, dia e noite, caros ditadores.
Orneus rangeu os dentes, bem como os demais patriarcas oligarcas. Infelizmente, seus descontentamentos de nada adiantavam. Todos os truques que armaram nas sombras falharam. Até mesmo o assassinato encomendado foi revertido por Lilus.
Enquanto era escoltado de volta para sua residência, Orneus encarou o palanque uma última vez, escutando seu rival inflamar a multidão.
— Meu povo, a causa pela qual advogo não é apenas uma questão pessoal, mas sim de justiça! Justiça por Lucelius, justiça contra todos os desmandos da Assembleia! Justiça por vocês! Quem quer justiça? — gritou.
Conforme um movimento pré-ordenado de seus aliados, gritos apaixonados vieram da multidão. Eram unidos como uma colmeia, na qual Lilus assumiu a posição de rei.
— Justiça! Justiça! — vociferou a multidão.
Pedro estava do outro lado da Península e ainda não sabia, mas aquele evento influenciou e muito o desenrolar de sua aventura em Mea.
Um novo jogador ascendia, tomando as rédeas do tabuleiro mundial.
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Okay, okay! Pessoal, Alicie quer dar uma palavrinha com vocês. Diga-nos como se sente após ter vencido a eleição para nova heroína, Alicie.
— Ehr… C-como eu disse antes, não sou boa com palavras, mas prometo que nenhum inimigo encostará em Pedro! O-obrigado por terem confiado em mim!!