Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 70
Hoje completa uma semana que partimos de Vilazinha e até agora me pergunto como DIABOS me meti nessa situação?!!
Boooooooom!
A fera lançou suas garras sanguinolentas sobre mim. Atacou na surdina, como um verdadeiro filho da…
Shiiiiiiiiiiiiin!
Merda! Ele é muito veloz, tanto que não posso me dar ao luxo de ter distrações. Tsc! Até agora não tive chance de usar “aquilo”.
Shiiiiiin! Shiiiiiiiiiin! Outra rajada.
Dessa vez tive mais dificuldade, mas consegui prever a trajetória do golpe. Vai blefar pra direita e ir pra esquerda… Espera! Não!
Pah! O safado girou de novo. Vai mirar meu pescoço.
Carambolas! A besta girou no meio do ar. Como o safado fez isso?! Não tem como desviar agora. Vou ser atingido!!
Pah! Pah! Shiiiiiiiiiiiiin!
Eu voei alto no céu, que nem uma bola de basquete. A diferença é que não tinha nenhuma cesta pra me parar. Ao invés disso, bati de cara numa árvore. Seu tronco era grosso e quebradiço.
Não queria ter descoberto essa informação. Aí, aí! Que dor da disgrama.
Aquela criatura é temível. De verdade mesmo. Tem a pelugem azul como o oceano e os olhos afiados de uma mulher irada. Todavia, tenho certeza que é um macho.
Muito magro e quase todo feito de ossos. Seu aspecto era majestoso, por outro lado, até eu tenho que admitir. Com certeza um dos melhores da espécie. Cheirava até que bem pra uma besta, mas não quero falar sobre como adquiri a informação.
Agora, quanto a como esse humilde senhor feudal foi se meter nessa enrascada completa, bem…
Eu tava em Gloomer com minha namorada, aproveitando a bajulação do ex-gordo e o temor dos safados que ajudei a destronar. Um dos meus tenentes tava lá também, curtindo com a gente.
Todavia, como o tempo é um recurso limitado — principalmente o bom tempo —, não estendemos muito a estadia.
Tá certo. Eu tava ansioso pra começar logo nossa viagem, daí decidi matar a parte ruim e ir logo conhecer meus sogros. Foi estranho.
Pra começar não tinha movimento nenhum nas estradas, bem como no restante do bosque. Mesmo as árvores, sempre alegrinhas quando o vento as vem visitar, mal se esforçavam para mexer suas folhas.
Estávamos no auge da primavera, mas não tinha vida nenhuma ali.
A exceção foi essa abominável criatura das relvas que muito jumentamente despertei ao pronunciar aquelas quatro palavras. Ô, céus, ainda me lembro…
— Prazer em conhecê-lo, senhor Barcellos. Meu nome é Pedro e eu vim aqui pra roubar sua filha. Isso mesmo, ela é minha posse agora! Muhahaha!
Eu não disse essa atrocidade — obvio! —, mas foi o que o diabo de cor lazuli pareceu entender do meu sotaque dragonark.
— O que disseste, inseto! — vociferou o ser perverso. Estas foram as últimas palavras que ouvi de sua boca sardenta até agora.
Shiiiiiiin! Shiiiiiiin!
Um ataque de agulhas dessa vez: trinta delas. Ou eram quarenta? Sei não, mas é melhor ser rápido com isso; do contrário, serei promovido de baronete a peneira.
Tsc! O diabo tem muitos ardis. Não queria ficar revelando meus trunfos pra potenciais inimigos, entretanto parece que não tenho escolha.
Bom, em breve seremos parentes, então não é tão ruim.
— Tiid KLo Ui!
O tempo desacelerou, e eu não acabei por aí.
— [Chamas]!
Um mero chamariz. Por seus olhos frios vejo que o malandro percebeu isso.
— É inútil! — disse. — Não importa quão veloz você seja, não vai ter tempo pra escapar do meu verdadeiro feitiço.
Sim, é hora de usar aquilo.
Limpei minha mente. Com a mão reúno toda a mana que acumulei no corpo. Sinto a lateral direita do meu abdômen tilintar. Era como se expulsasse um inquilino indesejado dali. Tudo conforme o manual.
Agora é só lembrar das palavras que o mestre ensinou, manter o foco e mirar.
— [Labaredas escarlates]!
Ssssssssss! Sssssssssss!
Mirei o fogo na trajetória da casa. Se ele desviar vira um sem-teto. Hehehe!
— Calculista e malicioso — ouvi-o comentar. — Certo, Rebecca, o pirralho cabeludo passou.
É o quê? Pera, ele…
Pah! Pah!
— Parou minhas labaredas com um tapa?!! — murmurei, incrédulo com a reviravolta do papai smurf.
O velho olhou de supetão para minhas mãos, depois acenou com a cabeça em aprovação. Não faço ideia do que aquilo significava, mas o gesto seguinte me surpreendeu.
Ziup! Ele piscou e reapareceu bem na minha frente.
Diferente da vampira, aquilo não era teleporte, só a velocidade natural da criatura.
Bom, eu já tinha cancelado o grito dracônico, mas mesmo assim foi surpreendente. Era pelo menos tão rápido quanto eu.
— Chamo-me Othon, da família Barcellos. É um prazer conhecê-lo, pirralho cabelud… cof… cof… digo, meu genro.
— Tá certo… — disse, meio sem jeito. — Meu nome é Pedro Rios e eu digo o mesmo de você, sogrão.
Ele instantaneamente afiou seus olhos quando escutou do que o chamei. Acho que não gostou.
— Oh! Então também fazem esse tipo de piada na Terra das Sombras. Agora vejo...
Hum? Terra das Sombras? Que lugar é esse?
— Pai! Falei com você pra não afugentar meu namorado com esses assuntos! — Rebecca reclamou.
— Ora, ora. É igualmente um prazer te ver, Querida. Não sabia que você viria também… Venham, venham. Vamos conversar lá dentro, sim? Sua mãe fez torta…
É. Não posso dizer que vai ser um prazer ter um almoço todo domingo com esse cara. Por outro lado, esse cheirinho…
Hmmmmmmmmm!
…
Momentos depois, na sala gótica dos Barcellos…
DE-LI-CI-A! Eis a expressão na cara de Pedro. Havia uma mancha grande e roxa nos cantos de seus lábios. Resquícios das belas tortas sobre a mesa. Ao canto tinha mais uma, semi-inteira até então.
Sua textura era tão intoxicante quanto o cheiro. Aquela obviamente foi uma bela refeição.
— Senhora Justine, a única forma de fazer jus a essa maravilha divina que Vossa Graça trouxe para a Terra é emoldurá-la em duas placas de pedra e propagá-la pelo mundo.
— Terra? Placas de pedra? — questionaram os presentes, menos Rebecca que ao que parece já estava habituada às comparações viajadas do namorado.
— Oh, perdão — disse. — Terra é apenas uma metáfora para Ark. É como dizemos em minha terra.
— Ah, sim. Sua terra… Creio que agora compreendi.
A mulher em questão era mais velha, vestia roupas de gola alta ao estilo francês e tinha belos cabelos roxos. Os fios eram sedosos e lisos, indo até a altura das costas. Uma figura magnífica.
— Gostaria que minha Rebecca tivesse puxado alguma coisa além de sua beleza, senhora Justine. Adorei aquela com bolinhas rosas. E aquela outra com ameixas… Hmmmm….
O comentário foi sucedido de um beliscão lateral e uma careta de repreensão.
— Ei, Meu Bem, isso faz cosquinha… hahaha! Para… de beliscar… haha…
— Oh, eu belisquei? Desculpa, só queria te dar um abraço, mas meus dedos escorregaram.
Beleza de sereia, ciúmes de mula, olhos do pai, cabelos e busto da mãe. Eis os componentes utilizados na composição da garota que se remexia pela mesa, avançando com a outra mão para as áreas sensíveis do namorado.
— E-ei… hahaha! Para… hahahaha….
Cof! Cof!
Tosse forçada. Artimanha do pai para chamar a atenção da família para si. Pedro agradeceu internamente, embora no fundo admitisse que gostava do afeto de Rebecca.
— Ei, pirralho, gostaria de tragar um charuto comigo no terraço?
— Charuto? — O casal de jovens encarou perplexamente por alguns momentos. Pedro por descobrir a existência de narcóticos naquele mundo e Rebecca pela iniciativa do genitor.
“Papai não é muito bom com palavras, sempre acaba se enrolando e dizendo o que vêm à mente. E Pedro tem um temperamento… forte. Não posso deixar eles sozinhos”, pensou.
Com medo que uma briga sobreviesse sem sua supervisão, a garota temeu. Os dois pareciam ter se dado bem antes, mas nunca se sabe o que homens tão incompatíveis poderiam fazer entre quatro paredes.
Assim, ela se preparou para acompanhá-los. Contudo, antes que pudesse levantar-se da mesa, sentiu um puxão firme vindo dos olhos do lado oposto ao seu.
Os dois lagos verdes que a prendiam eram tão intensos quanto a Mata Atlântica, tão profundos quanto a Amazônia. Ela reconheceria isso caso tivesse as mesmas origens de Pedro.
As pupilas de sua mãe tinham um poder oculto. Não era magia e nem ilusão. Rebecca não sabia explicar, só sabia que aquele era um sinal de Justine. Sinal que dizia: “a situação está sob controle, deixe-os ir”.
Ela assentiu.
A troca de olhares mal durou alguns milésimos de tempo, motivo pelo qual o rapaz de cabelos castanhos não reparou o fenômeno estranho que o abarcava.
Durante todo o caminho ele reparou o cenário da casa. Estátuas estavam espalhadas pelos cômodos, quase todas gárgulas. Haviam vitrais coloridos também, bem como quadros e outras decorações góticas.
— Que coisinhas mais macabras cês tem por aqui, seu Othon… — comentou o rapaz.
O sogro pareceu concordar.
— São a última moda na minha terra, pirralho. Chamam de estilo citogóno, ou uma bobagem assim — disse. — Não posso dizer que gosto; minha esposa, menos ainda. Mas cultura é cultura. Olhar para isso nos faz lembrar de casa.
O rapaz fez uma careta singela de compreensão.
— Meu avô falava algo parecido pra mim: “Nem mesmo um cego renegaria a arte de seu próprio povo”.
E eles conversaram sobre trivialidades artísticas até que chegassem ao terraço, onde Pedro perguntou:
— Então vocês são de Trous. Onde é que fica isso?
O homem parou por alguns segundos, encarando o horizonte antes de respondê-lo.
— Nos Ducados do Leste. Lugar pacato, nada recomendável para jovens abespinhados como você, pirralho — disse, se corrigindo: — Opa, pirralho não… Me desculpa, pirralho. Opa, fiz de novo.
— Tá tranquilo, véio. Pode me chamar de pirralho. — O homem olho com estranheza, mas assentiu. Era um meio de se aproximar do genro.
Assim, sacou um pedaço de pano dos bolsos e continuou andando até a beirada do pavimento. Lá, retirou dois amontoados de tabaco, deu um ao genro e usou um arquétipo de fósforos para acender outro.
Pedro aceitou, embora nunca houvesse fumado antes.
— Então, pirralho, quais são suas reais intenções com minha filha?
O rapaz deu outro sorriso sem graça. Estava tão desajeitado que quase deixou o charuto cair.
— Eu vou casar com ela! — disse de uma vez.
Othon o encarou com perplexidade, quase deixando o seu próprio cair. De todas as coisas como pai, ele não esperava encontrar um genro tão decidido quanto aquele.
— Pirralho, você não sabe o que está falando. Tem certeza disso?
A reação dele fez a pulga atrás da orelha de Pedro saltar. Na verdade, ela quase voou.
quase deixou o charuto cair.
— Oi? Comé que é?