Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 71
Boooooooooooooooooooooooooom!
Um grande, gigantesco, descomunal — pantagruélico! — amontoado de poeira se formou nos ares do Norte Continental. O cogumelo cinzento foi o resultado de uma explosão nuclear, só que sem o envolvimento de isótopos radioativos.
Na verdade, se tratava de uma espécie diferente de átomo. Uma espécie ainda mais primordial que o hidrogênio: partículas mágicas.
— Es todo lo que tienes, princesa? — O dono da voz era uma silhueta esguia que saia no meio do caos.
Dezenas de metros distante estava uma outra pessoa. Estatura baixa, cabelos negros com mechas brancas e uma aparência descomunal. Mesmo de longe era claro como a lua que era dona de uma beleza angelical.
— Diablo, você ousa descumprir o acordo?! Outra vez! — resmungou, furiosa. — Vai pagar caro por isso!
O tom lúgubre desceu de sua garganta como uma sentença de morte. No instante seguinte, um vulto crioulo se formou, indo de encontro à silhueta do espanhol.
— Desapareça! — bradou, antes de sacar uma grande agulha das vestes e lançar no alvo.
Shiiiiiin! Shiiiiiiiin!
O tilintar do metal com metal foi suave como a pluma, completamente contrário às consequências que gerou.
Boooooooooooooooom!
E mais uma vez a terra explodiu. As nuvens grisalhas foram afastadas de vez; na verdade, deixaram de existir por completo após o estouro.
— Has mejorado mucho desde la última vez, Monique.
O homem de roupas apertadas foi o primeiro a se recompor. Seus cabelos ondulados dançando com o vento, mas agora um espadim quitó fazia parte de seus trajes.
Do outro lado, a beleza obsidiana também fez sua jogada, sacando ainda mais agulhas negras.
— Não sei o que disse, mas morra!
— Dejemos de andarse por las ramas entonces — disse ele uma última vez ao entrar em guarda. — Venha!
E foi assim que as palavras deram lugar ao metal e aos punhos. As bocas se fecharam para que outras partes do corpo falassem.
No instante seguinte os pés de ambos sussurraram e logo após dois zunidos soaram em meio ao clima branco e cruento dos Alpes.
Quando as mãos cochicharam, outro tilintar foi ouvido. A diferença foi que dessa vez nem o ar e nem as montanhas se partiram, apenas as agulhas da mulher.
Entretanto, muito se engana quem pensou que aquela foi uma derrota, pois com um outro giro ela fez com que as massas de ar se deslocassem novamente. Foram como um raio rumo ao espanhol.
Rajadas e mais rajadas. A densidade do mana subiu em um instante, de modo que ficou claro que a tempestade súbita estava sendo influenciada pela mulher.
As ondas transparentes vieram, junto com a luz ofuscante dos raios e o chiado do caos.
Três raios caíram mirando a cabeça do espanhol.
Incólume em seu lugar, entretanto, ele gritou: — Lok Vah Koor! — e a tempestade se acalmou.
As sobrancelhas da adversária arquearam. Ele não havia feito isso da última vez. Na realidade, não tinha sequer chegado a algo próximo em questão de poder. Cancelar uma tempestade com um grito? Fazer trovões em queda livre dispersaram-se? Isso aconteceu mesmo?
A moça convocou mais raios, entretanto foi sobre si mesma que o choque se abateu.
— Escola da destruição: Eksoterma brulado, kiu liberigas varmon kaj lumon, disvastiĝas tra la atmosfero kaj ekbruligas ĉion. Fajroŝtormo!
— Usarei o mesmo feitiço, princesa — disse rápido, entoando em seguida: — [Tempestade de fogo]!
O que se seguiu foi a colisão entre duas enormes correntes vermelhas. Uma delas mais escura, beirando o vinho. Já a outra tinha um tom carmesim vívido, tão belo quanto um certo tipo de jasmim.
E o rebote que ambos esperavam também não tardou em chegar. Em um piscar de olhos, dezenas e dezenas de branco derreteram em brasas, poeira e cinzas.
Mas a batalha ainda não havia terminado.
Sentindo os estilhaços penetrando-a na pele, a feiticeira de tapa-olhos retirou algo dos bolsos e entoou outro cântico. Foi questão de segundos até que estivesse totalmente encoberta por uma luz azul, límpida como a água.
A armadura de mana era muito resistente e persistiu mesmo ao atingida por pedras pontiagudas, galhos mortos e até pedaços de criaturas infelizes, as quais vieram o azar de estar ali. E mesmo assim, nenhum dano lhe pegou. Ela continuava intacta.
A única coisa que a incomodava era que não conseguia sair da defensiva. Sua visão estava péssima com toda aquela poeira e, para piorar, o inimigo havia sumido!
— Diablo, apareça! — gritou ela, mantendo a guarda alta.
Como se atendesse a seu chamado, uma silhueta esguia apareceu a oeste. Figura esta que ela não tardou em atacar.
Shiiiiiiiiiiiiiin! A agulha voou a uma velocidade incrível. Estrondo extenuante. Claramente ultrapassou a velocidade do som.
Mesmo assim o espanhol não tentou desviar. Na verdade, ele não tentou nada! Nem mesmo uma defesa!!
Shiiiiiiin! Ziuop!
A mulher de preto não conseguiu acreditar. A arma passou reto.
— Hump! Uma maldita ilusão, igual àquela vez — bufou. Em seguida mudou a guarda para a posição sul.
Uma outra figura estava lá. Aliás, uma não, mas três. Eles sorriram, encararam-se e… multiplicaram?
Cinco… oito… dez… vinte… e o número continuava a aumentar. O homem com o espadim usou a si mesmo para crescer seus números e confundir a oponente.
— Não vai funcionar — Ela avisou. Em seguida, atirou suas agulhas e entoou outro cântico.
Dessa vez usou pedaços de um gelo escuro ao invés das armas habituais. Haviam muitos deles, pelo menos dois para cada imagem espelhada do espanhol.
A estratégia era rebater números com números, aparentemente.
— Por desrespeitar o armistício, eu o condeno à morte!
E foi assim que começou. Espinhos gélidos contra ilusões. Cada estocada uma baixa do lado espanhol. E a cada segundo a distância entre as imagens do espanhol e a assassina feiticeira se encurtava mais.
Elas foram sumindo, uma por uma. No final sobrou apenas a que estava no centro. Justamente a que tinha mais espinhos de gelo apontadas sobre si.
O homem riu com aquilo.
— Venha, chica bonita — disse, fazendo um gesto com a palma da mão. — Vamos a bailar!
Ao final daquela sentença, os pés do homem se moveram.
Passos suaves, porém rápidos. Em questão de milésimos ele escapou das dezenas de lanças negras mirando suas partes vitais. Elas ainda o perseguiam, e foi aí que a verdadeira arte começou.
Seus movimentos ímpios e esbeltos fizeram com que os pedaços afiados de gelo colidissem entre si e se estilhaçassem. Os flocos resultantes só fizeram aumentar o glamour da dança.
A oponente ficou pasma de ver que, ao contrário de antes, o homem à sua frente não se preocupou em usar fogo contra fogo. Ao invés disso, deu quatro passos e neutralizou o ataque mais forte até então.
“Ele não usou isso no passado”, lembrou-se, se preparando para o próximo movimento.
Acontece que ela não teve tempo sequer para pensar. Com outros dois passos o adversário já havia lhe alcançado.
Por reflexo ela tentou autodefesa, mas foi inútil perante a dança estranha na qual foi envolvida.
O outro lado a tomou pelos braços subitamente, a girou e em seguida a arremessou longe. Rodopiante, a assassina voou por metros e metros, até dar de cara com uma pequena colina.
As explosões de antes ainda não haviam chegado lá, de modo que a neve fofa foi o bastante para acalmar sua queda e ajudá-la a se estabilizar.
Quando olhou para cima, entretanto, sentiu um frio gélido lhe afagando o pescoço. Era a arma do oponente.
— A brincadeira com certeza começou a ficar muito divertida, mas devemos parar — explicou, retirando o espadin. — Tengo una propuesta para ustedes, chica hermosa. Por eso vine hoy aquí, aunque no te gustó mucho…
— Fale em minha língua — disse ela friamente, ainda se recompondo.
— Força do hábito. Cof… Cof… Como disse antes, tenho uma proposta. Não destruirei seus preciosos ducados e nem essa tal de… “terra santa” de vocês. — elucidou, levantando o indicador após embainhar a arma. — Contudo, tem algo que quero em troca.
Enquanto explicava, o espanhol encarava sugestivamente as partes importantes da adversária.
Ela bufou, imaginando que tipo de coisa descarada ele iria propor. O líder da Irmandade das Sombras tinha fama de mulherengo incontrolável e farrista miserável entre os nomes importantes daquela área.
Desse modo, ela só podia imaginar o que o faria quebrar o novo armistício e invadir tão descaradamente seu território.
“Ele não faria tamanha algazarra apenas pelo meu corpo. De fato, pelo que sei, isso não é de seu feitio”, ponderou internamente, sem esconder o nojo em seu olho bom. “Considerando a atual situação de Lunis, talvez eu deva ouvi-lo”.
Claro, se estivesse errada e esse fosse mesmo o caso, então morrer pela honra talvez fosse necessário.
Assim, como precaução, a feiticeira assassina posicionou a mão sobre o centro do tórax disfarçadamente, preparando para se desfazer de tudo, inclusive a própria vida e também a de seus súditos.
Entretanto, logo ficaria claro que tal ato não era necessário.
— Se me lembro bem, de vez en cuando, esse seu “Palácio” aceita umas ñinas hermosas e virgens como aprendizes ¿Eso mismo?
A oponente encarou-o com extrema desconfiança. Todavia também sentiu o alívio percorrer suas entranhas. Ninguém se feriria muito hoje.
— Não sei o que está insinuando, mas sim, a posição de Arquiduquesa só pode ser ocupada por uma mulher, melhor dentre três gerações e com o sangue sagrado de Lunis — explicou. — Por isto só aceito discípulas com esses requisitos, e também por isto creio não ser capaz de conceder esse seu… “pedido”.
O espanhol desconversou:
— Tenho certeza que não será um problema. Na verdade, haces esto e minha Irmandade das Sombras ficará em dívida com vocês. Seremos aliados enquanto isso durar.
A tez da Arquiduquesa se obscureceu novamente. Aquele grupo misterioso e poderoso nunca se aliara a ninguém antes. Eram neutros e essa era a regra que propagavam.
Nesse sentido, aquilo era de fato muito estranho. Estranho e suspeito. Mesmo assim valia a pena terminar de escutar a oferta.
Ela ainda não sabia, mas sua decisão naquele momento acabou por mudar para sempre o futuro de Lunis, bem como de toda Lunaris.
…
Enquanto isso, em um porão insalubre de uma grande cidade…
— Cuidado com isso, garoto! Nessas caixas estão o futuro de nossa gloriosa fé! — alertou o homem vestido com o que se parecia uma sotaina episcopal.
O religioso encarava atentamente o conjunto de arcas e baús sob o canto do recinto.
Ouvindo aquilo, o subordinado ficou tão curioso quanto uma criança no natal. Todos sabiam que esconder coisas delas só as faria ainda mais ariscas ou furtivas.
— O futuro da… fé? Perdoe-me, excelentíssimo, mas o que há aí?
— Segredo de estado, acólito. Mesmo um Prelado como eu não teria autoridade para saber dessa coisa normalmente — explicou, continuando: — Hump! Se bem que, com essa descoberta, é bem possível que Sua Santidade faça de mim um de seus Arautos agora. Ohoho…
A feição do jovem com a batina estava incrédula. Ela queria abrir aquilo, mas sabia que se o fizesse seria silenciado, ou até morto, possivelmente. Aquilo matou de vez sua curiosidade.
Assim, restou a ele apenas assoprar os fios castanhos sobre os olhos e ajeitar a mercadoria.
Apesar do sigilo da operação, aqueles dois não estavam sozinhos. Na porta havia senhores armados que trajavam espadas longas e um estranho escudo de forma pontiaguda. Também havia outra silhueta lá.
Era corcunda, com capuz e botas marrons, e portava uma bolsa esfarrapada na lateral.
— Excelentíssimo, nossos agentes em Solarwest voltaram. Tenho notícias quentinhas sobre aquele rapazinho Willblood e a sua… “luta pelo futuro” — falou um deles, que acabara de adentrar no porão.
— Ótimo, Corisco, conte-me o que sabes.
O encapuzado sorriu. Em seguida pigarreou e disse algo.
O relatório durou o tempo que se leva para fazer o chá e, quando a voz rouca acabou, o prelado imediatamente assentiu e pediu que saísse. Aos guardas também.
Trik! Trik! Quando a porta se fechou, o subordinado de batina disparou a falar:
— Senhor, enviarei uma mensagem aos oficiais de navio e pedirei que nos tirem daqui!
— Não farás isso — avisou. Depois baixou as mãos para tentar acalmar o jovem. — Tudo certo, Felipe. As coisas estão sob nosso controle, e mesmo que não estivessem, fazer algo tão tolo como pedir reforço só enfraqueceria minha posição. Lembre-se disso para o futuro.
— Mas, excelentíssimo, o assassinato na República falhou e agora o ditador Lilus sabe que o senhor…
O subordinado estava agitado, claramente temia que o erro os prejudicasse no futuro. Por isso tentou explicar ao mascarado o seu ponto de vista, todavia foi interrompido pelo levantar de um dedo.
— E quem foi que disse que matá-lo fazia parte dos planos?