Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 72
Cerca de uma semana atrás estávamos na casa dos meus sogros. Eles são um casal estrangeiro de meia-idade que imigrou pra Mea.
E tenho que dizer: a senhora Barcellos faz tortas MARAVILHOSAS! Só de lembrar o meu estômago fica ganancioso.
Hmmmm…
Quanto ao velho, não tem muito o que dizer, a não ser que ele é bem sincero. Quer dizer… o coroa não tentou esconder nada.
Othon é membro de uma casa viscondal em Trous, nos Ducados do Leste. Infelizmente, acabou metido em uma intriga política e foi “transferido” para chefiar os interesses da família em Mea, praticamente do outro lado do Continente.
Algo lamentável, mas ele não pareceu muito triste com o fato. Na verdade o safado tava todo feliz, dizendo que isso permitiu que criasse bem sua filha, pelo menos “até um pivete a roubar dele”.
Ele não usou exatamente essas palavras, todavia entendi o recado. Enfim, eu gostei dele.
— Amor, tem certeza que tá tudo bem? Já tem cinco dias que passamos da fronteira e mesmo assim não encontramos nada além de mato, árvores e mais mato.
— Relaxa, Meu Bem. O pai entende de geografia — confortei-a, envolvendo suas mãozinhas num abraço enquanto guiava a carruagem.
Ela se virou para o lado brevemente. Eu sorri, tentando demonstrar a confiança que tinha, e acho que deu certo. Afinal, notei seus ombros relaxarem.
Rebecca tava guiando os cavalos há algumas horas. Eu revezo com ela, mas fico menos tempo. Tsc! Por algum motivo esses paspalhos não gostam de mim. Até mesmo Dalila — minha égua mansa! — tinha se recusado a ir pra onde eu mandava.
— Ei, Amor, sabe uma coisa que reparei? Tem um tempinho que não somos incomodados por animais selvagens. Talvez estejamos perto de alguma vila.
— Sim, — concordei — ou é isso, ou então esses malditos finalmente entenderam quem é que manda nessa campina. Hump! Como se um punhado de vira-latas ou meia dúzia de Ursinhos Pooh pudessem mesmo competir com um dragão como eu.
— Dragão?! Ah… fala sobre o símbolo da sua família? — Ela perguntou. Foi quando reparei que quase cometi uma gafe.
Fingi normalidade, enquanto me virava liturgicamente para o rosto de minha captora. É nessas horas que agradeço aquelas aulas de teatro que o vovô obrigava a assistir.
— É… meus antepassados acham que descendemos de dragões. Pura bobagem — disfarcei.
Rebecca mantinha a mesma cara de paisagem de quando a conheci. Me pergunto até se isso é uma espécie de charme natural. Nha… Quem eu tô enganando? Charme natural é o cacete.
Mas ela ainda continua fofa quando faz isso, admito.
Com algum jogo de cintura acabei mudando o assunto. E assim seguimos durante as próximas horas, até darmos de cara com um amontoado de casinhas ao longe.
— Que sorte a nossa, mais um pouco e o sol ia se pôr — comentei. — Venha, bora ver se a gente consegue uma pernoite descente aqui.
Rebecca assentiu e nos aproximamos do local.
Uma paisagem simples e predominantemente rural. Havia trilhas de terra batida que eu me recuso a chamar de estrada. Além disso, encontramos muitas fazendas pelo caminho. Elas se estendiam até onde a vista alcançava.
— Então essas são as campinas de Mea, A Fazenda do Principado…
— Sim, senhor comerciante. O senhor e sua companheira vieram em uma boa hora. Estamos no meio da estação das safras e, agora que Sua Alteza baixou as taxas, muitos outros mercadores estão vindo trocar conosco — explicou-me um representante local.
Quando foi que ele se juntou à nós? Hum… não consigo lembrar. Deve ter sido na entrada. Tinham uns outros caras com carroças na entrada. Deve ser isso…
Conversando, descobrimos que aquele homem era funcionário do suserano daqui.
Resumindo, parece que o bastardo do Simel deu um incentivo aos agricultores por conta da “epidemia” de gripe. Tática esperta, admito. Desse modo, ele consegue melhorar sua imagem enquanto reforça a economia doméstica de seus domínios.
— Perdoe a impertinência, mas o senhor já tem ideia das culturas que vai levar, bem como da quantidade? — Ele me perguntou, enfatizando: — Garanto que a qualidade de nossos produtos é a melhor destes domínios!
— Hum… Uns alfaces seriam bons; cenouras também — ponderei. — Tá bom, acho que vou levar o suficiente para encher essas carroças. Também vou vender as peles que tenho por um bom desconto, igual você sugeriu. Em troca, espero receber o mesmo tratamento com o meu produto.
Sim, esse era meu disfarce atual. Sou só um simples comerciante. E aquela mocinha de cabelos curtos e armadura de couro é a minha guarda-costas, Beca Bar.
De início sugeri a Rebecca que apenas pintasse os cabelos de preto, como eu. Ela se recusou a fazê-lo. “Os cabelos de uma mulher são sua maior arma” e blá, blá, blá.
Bom, ela ficou fofa com eles na altura do ombro. Isso eu tenho que reconhecer.
— Senhor Petter Riacho, certo? — Assenti que sim e ele então continuou: — Mal eu pergunte, mas onde o encontrastes um caçador tão bom? Olhe a lisura… nem parece que ouve uma luta. Olhando de fora eu até acreditaria que… o homem abateu a fera com um soco na cabeça.
Deu uma risada sem graça.
— Pft! C-como? Que absurdo. Se isso fosse mesmo possível, então nada impediria que lagartas criassem asas e deixassem de rastejar, né não, patrão? Ha-ha! — disfarcei.
O funcionário público olhou estranho, mas continuou com sua risada sem graça.
Depois disso fomos aos negócios. Ele me levou a uma casinha no centro da vila, que era onde esses procedimentos burocráticos eram feitos, pelo que parece.
Foi tudo bem rápido. No tempo que leva pra fazer um café já tinha acabado, e assim, Rebecca e eu fomos caçar uma estalagem ou uma família disposta a alugar um quarto. A segunda opção foi o que encontramos.
…
— Obrigado, senhor Gerald e senhora Ellen. Cês são mesmo fofos pra caramba! Hic! — disse um jovem de cabelos negros. — E esse trêm de cevada é muito bom… hic…
Do outro lado da mesa estava um casal de velhinhos. O homem foi quem fez a gentileza de responder o rapaz.
— Não precisa agradecer, jovem Petter. Você e sua esposa são mais que bem-vindos em nossa humilde casa essa noite e pelas próximas também, caso queiram.
— Nha… Imagina! — O rapaz bateu o copo na mesa, continuando: — Já tamo dando muito trabalho pro sinhó. Aliás, essa cevada é meio doce, não acham? Hahaha…
A mulher olhou com um semblante sem graça, enquanto o marido se punha a explicar:
— Isso não é cevada, senhor Petter, mas sim uma nova bebida feita com bananas que comprei de um mercante sulista há uns dias. Banana e cana-de-açúcar, se não me engano…
Os olhos de Pedro se esmaeceram com a revelação. Parecia até um jovem ao descobrir que sua “namorada da internet” não era bem uma “namorada”.
Rebecca riu ao fundo.
— Agora, sobre a estadia — continuou o velho. — Eu e minha esposa apreciaríamos muito que vocês jovens continuassem. Veja, caro Petter, o senhor realmente nos deu muitos xillins. O mínimo que podemos fazer é oferecê-los uma cama quente enquanto seus cavalos descansam.
— É mesmo — a esposa interviu. — Agora que nossa Amélia se foi essa casa tem ficado muito quieta. Tenho certeza que foi um presente de Nüsha vocês terem vindo.
Pedro encarou perplexo o ar. Tinha uma expressão complicada em seu rosto, como se houvesse acabado de escutar algo muito ruim do casal de idosos na mesa.
— Meus sentimentos — disse, se levantando para abraçar o homem.
— Oh, não! Não é isso, jovem Petter — explicou Gerald, tentando se livrar do aperto — É só que ela se casou. Ehr… ou quase isso.
O rapaz deu-lhe outra encarada confusa, mas aí acenou subitamente com a cabeça, como se captasse algo escondido, e logo voltou a abraçar-lhe.
— Meus sentimentos…
Gerald não soube o que fazer com o jovem pegajoso e completamente mamado de bebida que agarrava seu torso. Por isso, simplesmente desistiu, devolvendo-lhe o abraço.
Quando enfim se soltou, Pedro o agarrou pelos ombros, pronunciando palavras de conforto.
E foi ao fazer isso que o jovem teve a chance de reparar na aparência do humilde velhinho. As roupas que ele usava estavam um tanto surradas, apesar de bem limpas, e os sapatos já gastos.
Seus olhos, por outro lado, eram muito belos. Tão límpidos quanto a água e mais profundos que o oceano. Encantavam até mesmo o mais rígido e insincero dos seres. Isso mesmo, um advogado. Ou, seu equivalente neste mundo, um comerciante.
— Bom… Se a filha de vocês tá bem, então não nos importamos em pegar o quarto de hóspedes um pouquinho — disse.
— Sim, faça isso — A velhinha insistiu. — E aproveite para ver os campos amanhã. As camélias acabaram de florescer. Estão lindas!
Pedro gesticulou, convencido.
— O que acha, Meu Bem? A ideia do senhor Gerald é boa pra caramba. Enquanto os cavalos descansam a gente podia era aproveitar e dá uma olhada nesse campo florado.
Ela assentiu e, pelo brilho de seus olhos, percebia-se que também estava expectante.
Após a breve conversa, o casal de anfitriões deixou os hóspedes em seu devido aposento. Esse foi o início da escapada romântica de Pedro e Rebecca pelo Leste de Mea.