Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 74
Ainda no campo das camélias…
— Acho que deveríamos ter um filho. Um bem pequeno e fofo.
— C-como? F-filhos?! En?!
Rebecca pulou de surpresa.
Mais cedo ela e Pedro estavam se aninhando e fazendo coisas românticas. Provando dos lanches que ganharam de Amélia, os dois começaram a falar sobre comidas e doces gostosos.
Uma coisa levou à outra e, no final, o rapaz lembrou que já viviam juntos há algum tempo, quase como legítimos marido e esposa. Em seguida vieram as típicas divagações de casal. Conversas sobre o futuro, simulações de vida perfeita e afins.
— Acho que nunca falamos disso antes — O rapaz observou. — Quero ter filhos, sabe? Ainda não faço ideia de quantos, mas sei que quero eles…
A garota gaguejou, não sabendo o que dizer em resposta.
— Por quê? Cê não ter filhos? — pressionou, notando a inatividade da companheira.
— N-não é isso. Eu quero. É só que… que…
Pedro passou a encará-la com suspeita nos olhos. Se afastou um pouco, perguntando com cautela:
— Isso tem haver com a sua… situação?
Rebecca fitou estranhamente o par, aumentando a distância física entre eles. Como assim situação? O que exatamente ele sabia sobre ela que ela mesmo desconhecia?
Como um agiota em uma loja de penhores, ela imediatamente passou a suspeitar do namorado, enquanto o outro lado aparentemente fazia o mesmo.
— Lembra quando eu e seu pai fomos conversar? Então, ele me disse algo sobre você e sua… coisa…
— O-o quê?! — Ela se assustou mais ainda. — Que blasfêmias aquele velhote vomitou a meu respeito??
Por um instante, Pedro sentiu a garota ser tomada por uma aura gélida como o inverno. Talvez fosse possível que estivesse adentrando um terreno complicado. Outro tabu. Contudo decidiu continuar.
O rapaz não era do tipo que recuava. E muito menos do tipo que evitava confusões. Dessa forma…
— Ei! Não precisa me olhar assim, tá bom? Eu não sou um assediador nem nada do tipo — disse, completando de fininho: — Só quando tem umas paredes protegendo a gente dos olhos das autoridades. Hehe…
Pela diminuição drástica de temperatura, Pedro concluiu que ela não achou graça. Por isso resolveu falar de vez sobre o que o objeto da intriga.
— Ele contou sobre o tal costume que vocês de Trous tem no casamento. Cê com certeza sabe. Falo da tal “monogamia” e do ciúmes extremo que as mulheres dos Ducados têm com seus maridos.
Ela olhou com alívio, quase como se tivesse sendo atingida por uma bala e ai descobrisse que a pistola que proferiu o disparo fosse na verdade de água. Ela ainda se molharia, mas o mau premeditado não veio.
— Isso explica algumas coisas. Mas relaxa, eu te aceito do jeito que você é. Não vou tomar outras esposas — continuou sugestivamente o rapaz. — Mesmo assim, cê bem que podia parar com esses beliscões em… Não doí muito, mas machuca.
Pedro se referia às peculiaridades do povo da garota. Quando ainda estava no Clã ele ouviu falar que neste mundo de guerras e perigos constantes a quantidade de mulheres vivas era maior que a dos homens. Assim, era comum que senhores de status tivessem haréns.
Na sociedade de Rebecca, contudo, as coisas eram diferentes. Pelo que Othon lhe contou, eles eram matriarcalistas. A mulher era o centro religioso, de tal jeito que aos homens só era permitido ter uma única esposa.
A agora mercenária de cabelos curtos sorriu e agradeceu aos céus pelo pai ter explicado essas coisas a ele. Seria muito estranho que ela mesmo o informasse disso.
Todavia ficou ainda mais feliz por ter conseguido desviar o foco principal de seu temor. Um outro segredo que ela mantinha à sete chaves e dois palmos da superfície.
“Não. Não é certo falar isso pra ele. Tenho certeza que ele vai me odiar se eu contar isso”, refletiu, decida a manter a questão para sí.
— Negado. Nós dois sabemos que você é como um passarinho, se eu parar de cuidar com certeza foge pra outra gaiola.
— Que maldade! — protestou o companheiro. — Nós dois sabemos que eu não tenho culpa nenhuma se elas gosta é dos mandrake.
— Hum?
A conversa continuou num ritmo estranho. Assuntos ainda mais peculiares surgiram e Rebecca às vezes se questionava o que diabos deveriam significar aquelas gírias que ele usava.
O sol já estava laranja quando o casal resolveu sair dali e voltar para a pensão dos idosos, todavia foram interrompidos por um grito súbito do vento.
Rebecca entrou imediatamente em guarda, enquanto Pedro se manteve sereno e quieto onde estava. Eles aguardavam a fumaça de terra que trotava em meio à estrada.
— Então é aí que estás, comerciante! — disse o homem, parando o cavalo.
Ao notá-lo o rapaz sentiu um ar de familiaridade. Aquele era um rosto que ele já havia visto antes, só não se lembrava quando ou onde.
Na dúvida, Pedro entrou no jogo.
— Ora, ora. Pois é exatamente o que sou, cavaleiro. Vai querer uns alface? Tenho cenouras também.
A contraparte ficou perplexa. Não sabia dizer se aquilo era uma oferta ou zombaria do rapaz.
Mesmo Pedro tinha que admitir que agia como um palhaço carente às vezes. O corpo se movia sozinho. Um palco surgia, ele piscava e quando via já estava fazendo suas graças.
— Guarde suas ninharias para a ralé, comerciante — intimou o loiro. — Não consumo essas porcarias de feira.
O homem foi rude. Um comerciante normal relevaria a fala, pediria desculpas e tentaria enrolar o cliente com outros produtos. Todavia era de Pedro que falávamos.
— Como é que é, seu merda? Esse produto aqui tem qualidade. Não vou aceitar essa mentira safada aí não!
— Como é que é? — O cavaleiro ficou atônito com a atitude da outra parte. Que disparate!
Assim, desceu do cavalo e sacou sua espada longa. Rebecca fez o mesmo com suas adagas.
A aura de um se contrapunha à do outro. Com um breve olhar, o cavaleiro notou que a adversária era habilidosa. O conjunto completo que ela usava ajudou que tivesse certeza disso.
— Hump! Vou esquecer essa ofensa, contanto que sumam desse lugar ainda hoje — disse, fazendo o ultimato.
A realidade é que fora isso que viera fazer ali. Tinha que expulsar o casal de comerciante e mercenária da casa dos pais de sua senhoria, a esposa ilegítima de seu lorde.
— Não viaja… Ainda temos negócios aqui, por que diabos eu sairia? — respondeu-lhe o rapaz de cabelos negros e vestes de comerciante.
O cavaleiro o fitou friamente. Foi neste mesmo instante que algo começou a cutucar-lhe a mente. Uma sensação que vinha de seu córtex e que o fazia sentir um ar de familiaridade.
“O rosto dele não me é estranho. Onde será que avistei esse comerciante insolente? Não foi em Kirgton, claro. Não há espécimes deste tipo lá. Será que foi em Feltash então?”, pensou. Mas logo descartou.
— É o seguinte, amigo — Pedro disse. — Dá licença que eu e minha esposa vamos voltar pra nossa pensão e ter uma bela duma noite de sono na caminha quente que tem lá.
Qualquer pensamento que o cavaleiro teve queimou-se junto com o restante da paciência que tinha.
— Vou cortar sua língua por essa grosseria, mascate!
Shiiiiiiin! Shiiiiiiiiiin! Um movimento áspero, metal com metal. Um barulho alto veio em seguida, desorientando o movimentos dos insetos que tinham as flores como moradia.
Rápido. Muito rápido! O homem de armadura se assustou com a velocidade da reação da mercenária de ombros esguios. Nem sabia como conseguiu reverter o impacto.
Ela se jogou para frente em seguida, afastando o adversário com um impulso. Depois disso voltou rapidamente para o lado de seu patrono.
“Que lentidão, minha nossa! Rebecca mal teve que mexer a mão com esse lixo”, comentou o jovem em sua mente.
— Muito decente para uma mercenária — comentou o oponente, antes de dar um novo golpe.
Ele desceu firme a espada no chão. A jovem desviou, mas o movimento firme acabou gerando um pequeno terremoto.
As ondas de choque fizeram a terra voar em uma linha reta, indo da ponta da espada até Pedro.
“Oh… Isso sim foi interessante”, pensou o rapaz, dando um pequeno salto.
Vendo que nenhum dos dois sofreu danos o cavaleiro fez outro movimento. Sacudiu a espada em linha reta, mirando o peito da mercenária.
Ela cruzou as armas e tomou para si o efeito do golpe.
Shiiiiiiiiiiiiin! Pah! Outra vez o tilintar do aço assolou os sensores das abelhas, atrapalhando sua caça ao pelém. Se elas pudessem reclamar, com certeza já teriam balançado sua anteninhas e gritado com eles.
Ambos se encararam com frieza, premeditando o próximo ato da tragédia eminente que se seguiria. A mercenária inclinou o corpo; o cavaleiro arqueou o tronco. Posturas de guerra que premeditaram a etapa séria do combate.
— Renda-se! — ordenou o loiro.
“Tsc! Quer saber? Não tem ninguém olhando. Acho que vou só acabar com esse safado e sumir com o corpo. Se alguém perguntar eu pago de planta”, maquinou o suposto mascate.
Tendo tomado sua decisão, Pedro juntou os dedos em um movimento de tesoura. Ele usaria isso para cegar o oponente antes de despojá-lo da espada e dar-lhe fim à vida.
— Tente ser mais educado da próxima vez — disse, prestes a tomar um impulso.
O cavaleiro o fitou com estranheza, elevando a guarda. Contudo aquilo logo se mostraria desnecessário. Uma voz doce e harmoniosa veio do sul, tomando suas atenções.
— Parem com isso agora!