Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 75
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- Capítulo 75 - Ouvindo abelhinhas e observando estrelas
Certo… Mais cedo levei Rebecca na Campina das Camélias para um encontro.
Uma moça graciosa nos interrompeu e veio conversar com a gente. Boa pessoa. Até deixou uns lanchinhos deliciosos aqui, bolinhos tão doces quanto mel e sanduíches igualmente gostosos.
Enfim, posso dizer que eu estava apreciando muito essa situação. Isso até esse cabeça de milho interromper e estragar tudo, me deixando muito puto no processo! Argh!
Foi então que reparei: não tinha ninguém ali perto. Podia só matar o safado e sumir com seu corpo. Seria simples e prático. Infelizmente, as coisas não aconteceram como planejei.
— Violência nunca é a solução! Eu não estou acreditando que vocês estavam brigando por um pedaço de espaço — vociferava a boa pessoa. Não tão boazinha agora.
Ela já tá xingando a gente tem pelo menos dez minutos. Putaça. Melhor fazer alguma coisa.
— Ei, ei! Amélia. Calma lá — disse eu. — Tenho anda com esse peixe não. Foi esse safado aí que veio pra cima da minha mulher. Nem eu tenho essa coragem… Merecia era tomar um baita cacete mesmo.
— O que disse, mascate!? — rebelou-se o aspirante de pipoca, dando um passo à frente.
Rebecca avançou na minha frente, suponho que para manter o personagem. Amélia, entretanto, foi ainda mais rápida ao se colocar no nosso meio antes disso. O esporro continuou.
— Não! Vocês vão parar de brigar agora! — mandou, virando-se para meu desafeto. — Linn, eu não pedi que você procurasse por outros locais? Por que está aqui, brigando com este casal?
A expressão e o tom sérios mostraram de uma vez por todas que mesmo a garota mais gentil ainda era uma verdadeira leoa quando o assunto era xingar um garoto levado.
No caso, estou me referindo especificamente ao milharal ambulante. Ele é o garoto levado!
— Mas, leide Amélia, é uma insolência por parte desses mascates privarem a senhora de dormir na casa de seus pais. A senhora quase nunca os vê e, justo agora que trouxe a jovem senhora… Um disparate como este eu não posso tolerar. Pela minha honra, não!
Tsc! Esse bastardo… Hum?! Pera ae… ele por acaso disse que os pais de Amélia vivem aqui? Era aquele casal de velhinhos?
Perguntei isso pra ela, só pra confirmar. Ela fez que sim.
Caraca, que inconveniente. É… fazer o quê, né? Acho que aí já não dá pra recorrer à segunda parte da filosofia do mestre. Vamos tentar a parte da gentileza então.
— Aí, Amélia — chamei. —, eu realmente não fazia ideia de que aqueles dois velhinhos eram seus pais. Se você quiser pode ficar com eles. Eu e Rebecca procuramos outro lugar ou então acampamos. Não é nada demais.
Ela foi rápida em negar minha gentileza. Fez que não muito ferozmente, até largou a mãozinha que segurava pra gesticular e aumentar a intensidade do não.
Espera…. Tinha uma garotinha ali o tempo todo. Não havia notado.
Ela tem um tapa-olho. Que incomum. Os cabelos dela são muito vermelhos, tão fortes e vividos que me lembram o fogo dos feitiços do mestre. É bem baixinha também e pela altura suponho que esteja na casa dos oito ou nove.
Talvez ela tenha percebido meu olhar de investigação, pois acirrou a tez e fez o mesmo para mim.
— Vocês não devem brigar! Tio Linn; moço bonito de cabelo preto; moça com a faca; não briguem!
Gyaaaa! Que fofinha. Eu quero uma criança assim pra mim! Tá decidido. Vou ter um filho e ele vai ser tão fofo quanto esse garotinha ruiva aí.
Olhando para o lado, notei uma Rebecca um tanto incomodada. Não sei se por causa do substantivo pelo qual foi chamada ou pela menininha em si.
Bom, ela nunca foi uma apreciadora de coisas fofas, então talvez seja as duas coisas.
— Não quero que se mudem por minha causa, senhor Petter. A verdade é que conversei com meus pais antes e todos concordamos que era justo deixar vocês lá — disse Amélia, pegando novamente as mãos da garotinha.
Linn encarou a gente, puto. Eu revidei, é lógico. Dei uma piscadinha malandra pro pilantra.
— E me desculpem por não ter contado isso mais cedo — continuou, fazendo uma pequena reverência. — A verdade é que eles me contaram onde vocês estariam. Eu vim aqui com a intenção de agradecer. Papai me disse que deram muito dinheiro e…
Isso explica aquelas delícias de lanche. Bom, mesmo assim gostei de Amélia. Ela é muito gentil.
— Nha… relaxa — interrompi. — Sou comerciante. Tudo que Gerald e eu fizemos foi negociar. Ele me deu cama, comida e bebida, enquanto eu o ofereci a única coisa que tinha. Dinheiro.
Isso deveria resolver as coisas. Deveria, mas Amélia continuou negando. Disse que não era justo que partíssemos, que ela e a filha iam caçar outro lugar e blá. Enfim, no final chegamos a um meio termo.
Não gostei do resultado das negociações.
…
Argh! Argh! Estou tendo a noite mais desconfortável possível. O motivo? Bom… digamos que não tem nada haver com a cama. Afinal, não estou dormindo em uma.
Mais cedo eu quase matei o safado do cavaleiro milharal. Amélia interviu e acabamos fazendo um acordo. Ou melhor… ela exigiu que fizéssemos um acordo. Todos passaríamos a noite aqui.
As meninas ficariam com o quarto, enquanto eu e Lino, Linol… Linelio… sei lá! Vou chamar ele só de safado milho. Enfim, eu e esse safado ficamos no silo de armazenamento.
Resultado foi que não preguei os olhos nem por um minuto e garanti que o pilantra não fosse capaz de fazê-lo. Ao menos tentei, pelo menos, mas acontece que esse néscio é uma pedra. Cai e fica lá, estático e alheio ao resto do mundo.
Enfim, vou dar o fora daqui. Esse lugar fede, e não é a milho. É muito mais fedorento que isso.
Yoshi! Levantei da palha, me aproximei do asno e fui até a porta. Confesso que desviei sem cuidado nenhum do safado. Será que chutei muito forte? Espero que tenha sido.
Quando enfim saí, senti a briza leve da primavera a afagar-me o rosto. Olhei para os lados e… Espera! Já tem alguém aqui. Olhando melhor parece ser…
— O que faz aqui, Sofia? — perguntei.
Ela se assustou. Foi como um ladrão pego com a mão na joia, ou uma criança com o pote de biscoitos embaixo dos braços. Embora eu não tenha conseguido ver nenhum nos dela.
— Senhor Petter…
— Não, nada de senhor. Me chama só de tio Petter.
Ela fez que sim.
— Eu tava só observando as estrelas, tio Petter. Elas ficam lindas na primavera!
Ela então girou e balançou as mãozinhas para cima, num gesto de agarrar o céu. Seu gingado inocente só dava àquilo um ar lúdico e pueril, como se fosse um anjo. Me sinto no céu.
Gyaaaaaaaaa! É demais pra mim… Não sei se aguento tanta fofura!
— Esses pontinhos de luz são furos que os deuses fizeram, tio Petter. Sabia disso?
Balancei a cabeça. Em parte para dizer que não. Em parte por ter sido desperto do meu sonho.
— Foi papai quem me disse — contou. — No início de tudo não tinham esses buraquinhos, mas os deuses fizeram eles. Assim poderiam vir aqui conversar com a gente.
Que forma curiosa de se explicar o céu. Será que eles realmente acreditam nessa bobageira por aqui? Se sim, então escolhi o disfarce errado. Deve ser muito fácil enganar as pessoas. Deveria tentar o ramo da farmácia.
— E o que os deuses iam querer aqui? Tenho certeza que já tem tudo em Afrestol ou no Grande Rio — expliquei com base no que sabia sobre a mitologia Mea.
— Nem tudo — Ela discordou. — Tio Tillus disse que lá existem muitas formas para todas as coisas. Dois tipos de vento, um forte e um fraco. Quatro tipos diferentes de água. Vinte de pedra. Quarenta de fogo. De tudo mesmo!
Respirou fundo, ainda com seus olhinhos pregados no céu.
— Mas acontece que tem uma coisa que só existe aqui. Uma coisa que os deuses não têm — continuou, virando-se para mim. — Sabe o que é?
Indiquei que não e ela explicou:
— O amor. Tio Tillus também chama isso de decesso. Os deuses não morrem e por isso não têm medo. Sem medo, nunca saberão de verdade o que é amar alguém.
— Por que o medo da perda faz a gente perceber que ama alguém — completei. Hum… Simplório, mas faz sentido. Gostei.
Acho que ficaria louco se perdesse Rebecca, o mestre ou então algum dos recrutas. Creio que os deuses também sentiriam o mesmo caso perdessem seus amantes humanos, frágeis e mortais.
A conversa com Sófia continuou e por incrível que pareça a garotinha era safa demais, simplesmente genial para uma criança de nove anos.
Em certo momento, contudo, a menina revelou um fato curioso. Disse que foi ela quem percebeu a briga e foi chamar por Amélia.
— E como você descobriu sobre a briga? Escutou o barulho ou… ah! Não me diga que estava brincando com seus amiguinhos e aí acabou encontrado a gente. Foi isso, né?
Balançou a cabecinha negativamente, deixando-me intrigado.
— Como então?
— As abelhinhas me contaram — disse ela. A íris de seu olho era tão serena quanto a correnteza de um rio.
Pelo jeito firme com que falava era notório que ela não tava mentindo. Realmente acreditava nisso. Ou então tinha uma habilidade maior que a minha pra mentir. O que, vindo de uma criança de nove anos, é enormemente assustador.
Prefiro partir da premissa que Sofia de fato conversou com as abelhas. O que é igualmente assustador. Será que tem haver com esse olho dela?
Bom ela é fofa, mas é melhor não me intrometer demais. Só estou de passagem e não quero esbarrar em algum mistério oculto ou algo do tipo.
A única coisa que vou fazer é passear com minha namorada até Kirgton e, depois de termos a tal conversa séria, ehr… perguntar aquilo pra ela.
De qualquer forma, não deve ser nada demais. Talvez só mais uma dessas coisas místicas de Ark. Tenho certeza que ela vai ficar bem.
Quanto à resposta que terei de Rebecca… digamos que estou esperançoso. Um bom batedor tem que confiar no seu taco. Vai dar certo. Sei que vai! Certeza que vai dizer sim.
Ela vai, não é? Fiz tudo certinho… Será que não vai? Merda! Agora estou angustiado…
Argh! Vovô tava mesmo certo. A vida tem cada vez mais obstáculos, principalmente quanto se está apaixonado.