Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 76
Enquanto Pedro e Sofia estavam a observar estrelas e a ouvir as abelhas, mais distante dali, um grupo de homens se movia pela escuridão da noite. Um deles, altivo e sério, comandava os demais.
— Vamos, bastardos! O alvo está nas Campinas. Precisamos eliminar todos os batedores do maldito senhorzinho antes de chegar em Feltash.
Os demais assentiram. Todos estavam encapuzados, exceto o líder, com seus fiapos recém raspados revelando os resquícios de uma cabeleira verde e as estrias sob o couro musculoso revelando parte de seu passado ébrio e nada saudável.
— Mais rápido! — vociferou. Isso mais o rosto raivoso revelavam sua ânsia em completar o objetivo.
Ele bufou e o restante do grupo não ousou pestanejar.
— Há um pequeno Solar entre Feltash e Kirgton. O maldito que torturamos disse que ele esconde o alvo lá — explicou, virando-se para uns homens que estavam no lado esquerdo. — Vocês idiotas vão na frente. Verifiquem as defesas e a segurança, mas não matem ninguém.
O grupo de subordinados assentiu e então seguiu pelo lado direito da bifurcação na estrada. Os demais foram para o outro lado, conforme o curso original.
Pouco tempo depois os remanescentes deram de cara com uma pequena casinha. Nela estavam três homens de vigília, com armaduras feitas das cores do lorde. Eram membros do exército pessoal do Grão-Duque e defendiam um posto avançado.
— Alto lá! — disse o soldado, empunhando a lança. — Identifiquem-se!
O homem com fiapos verdes não parou nem recuou. Na verdade, o que fez foi avançar ainda mais veloz e gritar:
— Matem todos!
Os encapuzados assentiram, sacaram suas armas e cercaram os soldados do Grão-Duque. A diferença era de cinco para um, de modo que desde o início não tivessem chance alguma.
Shiiiiiiiiiin! Pah!
Cortes e estocadas. Os soldados tentaram revidar, mas seus escudos foram partidos. Destroçados pelas clavas de metal e espadas de aço que o inimigo portava.
— Malditos mercenários! I-isso não vai ficar assim! Sua Alteza logo descobrirá esse ultraje e vocês irão…
Pah! Poft!
Como uma árvore cujo tronco foi serrado, o homem caiu no chão. Não teve sequer a chance de completar sua maldição antes de ter o pescoço perfurado pela lança do chefe dos encapuzados.
O cheiro de urina e tripas pairou sob o ar, mas o líder dos encapuzados o ignorou, enquanto distribuiria novas ordens.
— Queimem os corpos!
Os capangas, contudo, o encararam com ar de hesitação.
— Não podemos, senhor. É contra os ensinamentos da doutrina: Todos os mortos devem ser enterrados — explicou.
Em resposta, o homem estalou a língua.
— Não temos tempo pra esses rituais crentes. Vamos! Queimem-os e partiremos.
— Mas, senhor… se o Prelado souber, e-ele vai…
— Prelado? — interrompeu o homem, perguntando: — Quem é esse tal prelado?
Olhares hesitantes se sobrevieram com tal inquisição. Isso até que um deles explicasse:
— O Prelado veio a Mea para fiscalizar a missão. Nossos irmãos disseram que a última vez que foi visto estava em Hatford. O boato é que Sua Santidade em pessoa o encarregou disso.
Vendo que estava sem saída, foi a vez do homem de careca esverdiada ficar hesitante. Notando a deixa, um outro capanga disse algo em seu ouvido.
— Ótimo! Que seja! Enterrem os bastardos. Só andem rápido com isso — rugiu.
Os subordinados fizeram que sim e em seguida puseram as mãos à obra; ou melhor, às sepulturas.
…
Mal sabiam os conspiradores, mas não eram os únicos atores a desencadear os eventos que viriam. Pois, enquanto covas eram cavadas no Leste, no Oeste, uma verdadeira revolução acontecia.
Um jovem esguio e de carranca cansada pregava suas ideias à plateia eufórica de Solarwest. A capital da República nunca estivera tão animada nas últimas décadas.
O motivo? Bom, digamos que uma parte disso era devido ao que este jovem fez. A outra metade era ao que ele iria fazer.
— Ora, quase todo o ferro e a prata dessa Península saem de nossa república! Então, também não é justo que sejam nossos navios os únicos a levá-las?! Não é apenas justo que nossos comerciantes sejam os primeiros a vendê-las? — disse, projetando-se para frente do palanque.
— É verdade! — gritou um figurante, provavelmente pré-encaixado.
Os olhos do povo reluziram. Mais gritos vieram, todos no sentido de uma concordância resignada. Eles só pararam quando o rapaz levantou a mão.
— Caros cidadãos, é por isso que proponho essa nova lei: O Ato de Navegação! A partir de hoje, apenas navios da República vão poder exportar nossas commodities!
Com a conclusão vieram os aplausos. Primeiro os ensaiados, depois os dos aliados e então, num piscar de olhos, toda multidão ovacionava aquele que outorgara a lei.
A ideia central era muito simples. Das ilhas controladas pela República, uma fazia fronteira com o Ducado de Wex. Acontece que esse lugar era palco de uma grande formação rochosa. A mesma que deu origem à ultima guerra. E acontece que nela tinha muito ferro.
Sabendo que as principais commodities da nação eram justamente o minério de ferro e seus derivados, Lilus decidiu diminuir a taxação sobre elas, mas em contrapartida só poderiam ser comercializadas por mercantes republicanos agora.
Quanto às repercussões que isso traria… bom, foi exatamente o tema da audiência logo após o discurso.
Em uma sala fechada, Lilus mandou reunir seus homens de mais alta confiança. Eram seus varões, seus compadres, os cães de caça que o cercavam, mas não adulavam. Apenas o protegiam.
— Lorde Protetor, esse foi um belo discurso. Contudo, se me permite, como vamos fazer para não atrair a fúria de nossos vizinhos? Os malditos eubrovianos que se danem! Já estamos em guerra. Wex também, pois ainda estão fracos, mas os monarquistas não. Além disso, o rei de Erula vai ficar uma fera quando souber que o senhor não o consultou antes de outorgar o Ato.
O Lorde Protetor em questão o ouviu atentamente, bem como notando a expressão hesitante de todos os presentes. Na tentativa de aplacá-los, se levantou e falou:
— Não há por quê cautela, senhores. Já tomei as medidas adequadas para tal. Por isso os chamei aqui.
Em seguida se dirigiu até um senhor de meia idade, com cavanhaque aparado e roupas finas de mercante.
— O senhor Pill aqui vós passará os detalhes do plano — disse, entregando um amontoado de papeis ao mesmo.
O mercante repassou os documentos, um por um, explicando brevemente o plano. Meia hora se passou com tal dinâmica. O tempo para se tomar um bom banho, ou fazer um chá.
— Pois então, senhores ditadores, o senhor Demeter ali vai para Erula e eu mesmo irei para Wex, falar com o duque. Contrataremos guardas para todos os diplomatas envolvidos.
— E o filho do senhor Pill liderará a comitiva para o Principado — completou Lilus. — Eu mesmo o escolhi, então não haverá margem para questionamento, inclusive o seu, Josef.
Todos tomaram um susto, inclusive o próprio Josef Pill. Nos planos que recebeu não havia nada indicando que enviariam uma comitiva para o Leste.
“O que Lilus está pensando?”, foi o que questionaram.
Todavia, apesar do aparente constrangimento, em seus corações nenhum deles estava disposto a questionar. O homem à frente ganhou todas as lutas que travou até o momento, então era capaz de ter um plano.
Isto feito, eles começaram a discutir os detalhes do plano. Quem ia participar das delegações, que insumos levariam, quanto tempo teriam para fazer o trabalho e, por fim, quem contratariam para fazer a segurança.
As delegações de Wex e do Principado eram simples. Como os países faziam fronteira, bastava que o exercito os acompanhasse. Erula, contudo, era um problema.
Era o país mais afastado na Península, de modo que uma tropa do exército teria que passar por terras inimigas ou então contornar pelo mar do Sul, mesmo assim passando por águas inimigas. Se Eburove identificasse a delegação, atacaria e no minimo prenderia os enviados. O plano seria frustrado.
Um grupo pequeno, mas de elite teria que ser enviado. Dezenas, ou centenas, no máximo. Mas acontece que eles não tinham isso na República. Só soldados normais e a guarda recém-formada do Lorde Protetor, que reunia todos os raros talentos e que de modo algum poderia ser desfalcada.
Por isso, a pauta foi aberta e sugestões foram ouvidas.
— Senhor, se me permite, ouvi dizer de um grupo de mercenários monarquistas bem forte e…
— Monarquistas? — interrompeu um presente. — Ora, senhor Pill. Não me venha com essa! Vai mesmo confiar naqueles retrógrados com mente de porco?
Lilus interrompeu erguendo a mão, em seguida gesticulou para que Josef Pill continuasse.
— Perdoe-me se soei equivocado, caro colega. Mas o grupo do qual estava falando não tem nada de “atrasado”, se me permite completar. Na verdade, andam por aí fazendo feitos fantásticos, pelo que ouvi dizer.
— Feitos fantásticos? — questionou o colega, tão cético quanto um velho polímata.
O comerciante fez que sim, inundando mais ainda as margens ralas de sua fé. Mais um pouco e a enxurrada transbordaria pelo leito.
— Também escutei algo do tipo — falou um outro ditador. — Falas dos aventureiros, certo, senhor Pill?
O homem em questão estava para assentir, quando um terceiro veio em interpolação.
— Ah! Agora que foi dito, lembro de ouvir algo assim de alguns subordinados! Disseram que esses tais aventureiros mataram todos os criminosos do Oeste do Principado. Eu não acreditei, é claro, mas outras histórias absurdas chegaram.
— Histórias absurdas?
— Sim. Do tipo: “Eles tinham pílulas que curavam doenças”; ou: “Acabaram com o crime da minha vila”.
— Sério mesmo, senhor ditador? As que eu escutei eram um pouco mais perversas, do tipo: “Dois deles ficaram bêbados e nocautearam uma cidadezinha inteira enquanto brigavam entre si. Tudo isso só para conseguir o favor de uma prostituta local”; ou então: “Vi um deles sumindo na noite e reaparecendo com seis corações frescos, claramente recém-tirados das vitimas”.
A série de relatos começou a ficar bem mais intensa depois do último pronunciamento. Alguns disseram que o grupo foi o responsável por acabar com uma super-organização-criminosa do Principado, outros disseram que lidaram com a última leva de Vikis, outros até mesmo insinuaram que foram eles que deram origem ao “incidente” da cratera misteriosa.
Quantas destas histórias eram só isso, histórias, apenas os próprios sabiam. Mas uma coisa que ficou clara como o dia é: foi o suficiente para chamar a atenção de Lilus.
— Pois bem, Pill. Encontre-os e faça a proposta. Se possível mande seus líderes aqui. Pelo apanhado geral, acredito que devam ser um grupo grande. Prepare uma recompensa para quinhentos homens, caso passem disso, prometa uma adicional se cumprirem a missão antes do verão terminar.
— Obrigado, Lorde Protetor, mas creio não ser necessário tais preparativos. Nem mesmo que chamemos apenas seus líderes aqui.
O olhar de Lilus se acirrou. Com os lábios fez “por quê?” e logo obteve sua resposta.
— Ora, são apenas cinco membros, excelência.
— O quê?!