Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 77
Duas semanas se passaram. Os cabelos das árvores balançavam com o frescor remanescente da primavera quando o grupo de cinco adentrou o palácio do Lorde Protetor da República.
Lá eles receberiam a missão mais perigosa de suas carreiras até então. Uma que mudou para sempre a história da nação e também de Vilazinha.
Beto os liderou, sendo recebido por Lilus Willblood em pessoa. O lorde ficou impressionado com a trupe. O barba negra Quebraescudos tem de fato uma fama merecida, observou. Também se impressionou com a arma do espadachim; deveras grande. Os outros chamavam menos atenção, mas não foi por isso que os subestimou.
A tarde passou e a missão ele lhes entregou. Deveriam os montes ao norte circular e pela terra adentrar. Por locais inimigos passar, para em Erula chegar. Uma vez lá, a carta que lhes dera haviam de entregar.
— Deve ser um documento importante, certo?
Questionado, assentiu, fazendo com que os aventureiros percebessem o nível de dificuldade da missão. Frio, perigo, um prazo curto e muita terra a percorrer. Eis o que aguardaria os membros associados de Vilazinha.
Mas Pedro não tinha como saber disso.
Enquanto os cinco heróis iam ao encontro do perigo, ele e sua companheira continuavam a incursão pelo Leste de Mea.
Uma carroça, uma carta de viagem forjada, especiarias e muito amor era o que tinham no momento, ou ao menos o que se aparentava. Isso porque uma leve desconfiança brotou no peito do rapaz desde a última conversa do casal.
Rebecca falou sobre a origem de seu ciúme e aquilo fez com que o rapaz se lembrasse de outras coisas, como quando se conheceram.
“Ela me encheu o saco a viagem toda e aplicou o clichê do: me viu pelada, tem que assumir”.
Assim, cercados por nada a mais que o nada completo e pelo cheiro do mato, Pedro resolveu-se por resolver de vez a situação. Sim, o casal teria sua primeira DR.
— Ôooh, Meu Bem. Sabe de uma coisa que lembrei? Depois do baile você já veio toda de gracinha pra cima de mim, mesmo a gente só tendo se visto uma vez. Por quê?
Ela sequer pensou dois segundos antes de responder:
— Foi paixão à primeira vista, Amor.
Infelizmente para a mercenária, naquele dia Pedro estava são. E pior: estava disposto a solucionar a situação.
— Rebecca — disse firme.
— Hum?
Encarou a cara abobada da namorada, que se fingia de planta enquanto o vento das campinas balançava seus cabelos curtos. Pedro permaneceu impassível sobre a carroça.
— Se fosse há seis meses eu acreditaria, mas agora?! Agora já sei que você não é burra. — Cruzou os braços. — Paixão à primeira vista o cacete! Pode contar. Quais seus motivos reais?
— Foi paixão à primeira vista, Amor. Já disse…
“Ela não vai ceder, essa safada!”, concluiu o rapaz. Inconformado, estalou a língua em um click e descruzou os braços.
E daquela forma continuaram, com Pedro emburrado e Rebecca fingindo inocência, até chegarem em Feltash. A cidade ficava na trilha para Kirgton, de modo que resolveram descansar por lá. O comerciante também ouviu boatos sobre uma especiaria inigualável da localidade.
Assim sendo, logo quando encontraram uma estalagem Pedro despachou suas mercadorias e sua garota, dizendo que “ia só comprar um charuto”.
— Argg! Desce mais uma, Boris, que esse trem é muito do bom! Arhg! — Bateu o copo na mesa, assoviando para o garçom.
Quase que imediatamente foi atendido pelo homem grisalho e de barba feita que segurava a bandeja. Pedro achou impressionante o equilíbrio que tinha o garçom, empilhando dúzias de garrafas e copos enquanto ia de lá a cá, da esquerda para a direita, por todo o bar.
— Aqui, meu caro Peter. Seu pingado forte sem banana e o acompanhamento: costela de boi-magro.
“Um líquido com açúcar que depois de um determinado período começa a borbulhar, formar espuma e perder o doce, adquirindo uma força embriagante”, lembrou-se, recolhendo a bebida com um gole. “Pra mim isso é vinho, mas quem diria em? Então é daqui que vêm os pingados de Mea, inclusive o de banana”.
Descansou o copo sobre a mesa e depois virou-se ao homem de avental negro.
— Valeu, meu chapa. Glub! Tô precisando entender umas coisas, tá ligado?
Boris encarou de volta. Seu olhar condescendente mostrava que entedia exatamente o que o comerciante queria entender. Provável que passara pelo mesmo, como todos os homens de Ark e da Terra que ousam se arriscar nos vales sombrios do amor.
— Mulheres, senhor Peter?
— Sim, mulheres… Glub! Porta destrancada o escambau! Certeza que tem caroço nesse angu. E confie em mim, Boris, eu vou descobrir. Ela falando ou não, eu vou descobrir…
O garçom assentiu de leve, fingindo concordância, disse algumas palavras de consolo e saiu.
O rapaz continuou com aquilo. Cada copo fazendo com que suas ideias aumentassem e com que sua lucidez diminuísse. Era naquele momento um apaixonado desconfiado, o pior tipo que existe.
“Como que vou casar com ela se ela me esconde um segredo desse?! Paixão à primeira vista? Isso não existe. Tsc!“.
Pedro pensava sobre a vida e os passos que daria, quando foi acordado pelo empurrão da porta. Um paft muito forte e mal-educado, seguido por quatro homens robustos e sujos. Não tinham armadura, mas as marcas de sol e as cicatrizes denunciavam a profissão.
Todos os presentes olharam, mas logo desviaram, não querendo atrair para si confusão desnecessária. Pedro era exceção, obviamente, todavia decidiu deixá-los em paz e continuar pensando na vida. Aquele não era um bom dia para briga.
Eles passaram por ele e tomaram uma mesa ao lado, bem no canto do estabelecimento. Lá já estava um homem careca, aguardando-os, pele que pareceu. Depois pediram bebidas e comida e começaram a conversar sobre coisas triviais, talvez sobre o último trabalho.
— Fomos até a maldita casa de veraneio, mas o alvo não tava lá. O capitão ficou puto e mandou matar todo mundo — disse um deles, não se importando se soou alto.
— Filho da puta! Não deixou a gente nem encostar as mãos nas empregadas — acrescentou o outro mercenário.
— Então é por isso que estão aqui? — questionou o amigo, cuspindo uma risada cínica e encarando a mocinha no caixa.
Os outros gargalharam.
— Até mesmo soldados de Sua Santidade precisam de descanso e farra de vez em quando.
Pedro achou aquilo curioso. Aqueles mercenários claramente não eram da Península. Isso porque não havia um líder máximo de religião ali, apenas cultos locais e sacerdotes que exerciam outras profissões além da fé; camponeses, por assim dizer, e não soldados da fé.
Mesmo assim se deteve. Aquelas terras não estavam sob sua jurisdição, não pertenciam a Edward e os mercenários podiam estar apenas de passagem, de modo que não cabia a ele intervir. Era um problema de Simel e, portanto, algo bom para eles.
Isso ao menos até um pequeno incidente acontecer.
— Ei, garçom! Como ousa deixar um inseto cair em minha sopa?! Venha aqui! Eu exijo compensação.
Os outros mercenários riram, se divertindo com alguma coisa oculta naquilo tudo.
O homem foi, conforme pedido, e analisou metodicamente a sopa do cliente. E de cara percebeu que não havia inseto nenhum ali. Achou estranho e olhou novamente, mas nada.
— Senhores, não tem nada na sopa. Minha esposa cuida muito bem da cozinha, principalmente da higiene. Se quiserem posso trazer outra e esquecemos isso. Talvez eu só esteja velho e não tenha enxergado.
O mercenário deu um riso de escarnio e encarou forte a mocinha de antes, sem esconder seus desejos indecentes.
— Nada disso, velho! Você não vai me trazer mais nada, só aquela mocinha ali. Quero que ela me sirva pelo resto da noite.
Não fez questão de esclarecer o duplo sentido, indicando ao garçom o que queria. Ele, obviamente, encarou de volta com seriedade. Não iria entregar a mocinha assim.
Notando a resistência do velho, os cinco homens puseram as mãos nas cinturas, em busca de suas armas.
— Tirar as armas da bainha não é permitido em Feltash, senhores. Se continuarem terei que chamar os guardas.
Os quatro viraram de súbito para o amigo careca, que fez uma careta ainda mais feia que sua própria cara.
— Foda-se esse velho. O pai do capitão é um lorde poderoso e tem influência sobre a guarda. Não vão vir por uma briguinha de bar.
O careca então pulou da cadeira, estendendo as mãos para os quatro antes de continuar a falar. Faltou ao cuidado de propósito e a garrafa caiu de suas mãos para o chão.
— Não vamos precisar desembainhar nada, velho. Esse lugar tá muito barulhento, nós vamos para os fundos e a mocinha vai servir umas bebidas pra gente. Agora vai lá pegar um pano pra limpar minha mão.
Os amigos riram e o garçom ficou roxo de fúria, olhando para trás com medo estampado nos olhos, quando um borrão passou por ele e foi de cara com os mercenários desaforados.
Poft! A mão dele acertou o olho do careca, fazendo-o bambear alguns passos.
O responsável pelo soco foi um loiro alto e parrudo que, pelo que parece, ouviu a discussão. Ele dobrou as mangas, se colocando entre os oponentes e a vítima.
“Hum? Que cara interessante”, pensou Pedro, ainda mantendo a calma e observando o desenrolar da situação.
— Merda. Vou precisar lavar essa droga agora. Batam nesse bastardo até ele ficar cego! — ordenou o careca.
Eles se puseram em ação. Primeiro formaram uma parede ao redor do oponente, com dois deles em guarda caso outro cliente resolvesse intervir. Todavia não havia ninguém além do loiro disposto a tal, e Pedro ainda não queria se meter.
O primeiro avançou, mirando sua perna na barriga dele. Foi veloz como o voo de uma águia e o homem teve que usar os baços para não ser arranhado pelo predador.
Recuou um passo, mas não tardou a refazer a compostura. Pegou uma bandeja qualquer e a atirou o dono do golpe. Em seguida avançou e deu um jab, seguido do um direto e uma cotovelada.
Pah! Pah! O mercenário aparou tudo, mesmo um pouco desconcertado por causa da bandeja. Em seguida avançou. Contudo dessa vez não foi sozinho. O amigo correu junto.
Sendo dois agora, o loiro alto teve dificuldade em receber os chutes e socos, levando alguns danos. Manteve-se de pé e revidou, ainda que com clara dificuldade.
“É um lutador profissional”, reparou Pedro. Mexendo as pupilas para os lados, viu o cinismo voltando à tez do careca.
Enquanto seus homens impediam o loiro alto e intimidavam os outros presentes, ele avançou até seu alvo: a mocinha no bar. O garçom tentava impedir, sem muito sucesso.
— P-pare! Você não pode! As leis de Feltash não permitem que façam isso!
— O que disse, paspalho? Não consigo ouvir. Minhas orelhas não são de elfo, não consigo escutar o som dos insetos — disse, antes de mirar um soco na garganta do garçom.
O pobre homem fechou os olhos, na esperança que diminuísse a dor que logo lhe bateria à face, como o arrombo de uma porta.
Pah! Paft!
O som crepitante veio, mas a dor não. Ele não desmaiou também, manteve-se lúcido. Abriu os olhos com medo e o que viu fê-lo perceber que não recebeu o soco. Ele veio, mas não o recebeu. Algo o parou, ou melhor, alguém.
— Seguinte, careca… Glub! Ninguém encosta no Boris… high… comigo aqui — disse Pedro.