Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 79
Era princípio de noite, quando a mocinha andava pelo centro da cidade. O traje, mais as adagas na cinta, deixava mais ou menos claro sua profissão, ou ao menos davam a intuir que ela sabia algumas coisas sobre brigas.
Talvez por isso nenhum homem a incomodara até então, ou talvez fosse só a presença dos guardas. Qualquer seja, ela caminhava tranquila pelas ruas e vielas, com uma cestinha em mãos.
— “Comprar charutos”, hump! Ele nem fuma… — murmurou. — Com certeza foi atrás de outra taverna, aquele botequeiro pilantra! Até passou seu palavreado feio pra mim.
Ela chutou o chão em fúria, fazendo um pah bem alto, seguido de um grito que não era seu.
— Aí! Q-quem mí acertó…?!
Pah! Poft!
— Vai dormir, mendigo! — disse, depois de outro chute bem dado.
Após, a garota continuou sua jornada como se nada lhe houvesse ocorrido. Não sentia culpa nem por atazanar um morador de rua, tamanha a grandeza de sua fúria.
“E ainda ficou emburrado o resto da viagem… Como se eu realmente tivesse culpa por me apaixonar à primeira vista. Já falei pro papai, ela não tem nada a ver com isso! Só um pouco, talvez… no início”, completou em sua mente, antes de parar subitamente.
— Já sei como convencê-lo! Vou usar aquela posição que a Samantha… Hehe… — Sorriu, antes de continuar a andar. — É isso mesmo! É assim que vou capturar ele! Hehehe!
O rosto reluzente de agora contrastava com o rancor de outrora, há poucos minutos apenas. A garota parecia uma criança que acabou de descobrir a senha do cartão do pai, muito feliz com as sacanagens que iria fazer.
Assim, abriu tranquila a porta da pequena estalagem, quando foi surpreendida por trás.
— Vai capturar quem, Meu Bem?
Ela gelou, seu sorriso radiante saindo para dar espaço a um olhar temeroso de suspeita.
— P-Pedro? Não… nada, Amor. Tava só pensando alto. É que descobri uma receita nova, uma que com certeza vai capturar seu paladar! É isso… Ha! Ha!
Desconversou, recebendo passiva o abraço do companheiro. Durou pouco, mas foi caloroso o suficiente para derreter o resto da braveza gélida que havia em seu coração de menina.
— Tudo certo então — disse, recolhendo a cestinha das mãos dela. — Temo que vamô ter que deixar pra outra hora, Meu Bem. Apareceu um assunto urgente. Até usei aquela técnica pra ficar sóbrio, só pra correr até aqui.
A tez da companheira ficou séria.
— Você? Sóbrio de propósito? Depois de ficar emburrado? Pela lança de Manzan!, o que houve?
— Explico no caminho, vamos! Temos que voltar pra campina, encontrar Sófia e Amélia, e rápido!
Puxou-a pelas mãos, a deixando confusa e preocupada. Contudo ela se recompôs e, logo que saíram de Feltash, correram à toda velocidade rumo à campina. O rapaz até mesmo deixou a carroça e a janta para trás.
…
Enquanto corriam na maior velocidade que Rebecca conseguia, há varias dezenas de quilômetros dali, um momento de tensão acontecia. O chiado dos pássaros era o sinal do perigo evidente, alto ao ponto de ofuscar a escuridão no céu, revolto ao ponto de fazer um homem sem língua gritar.
Outra coisa que ajudava a aquecer essa escuridão eram as chamas, vigorantes e sadias, que bailavam em meio à campina. O aglomerado de madeira ardia, chorando fuligem e lacrimejando fumaça.
Mais perto era possível de se ver a comoção. Centenas de pessoas corriam de cá a lá, não para conter o fogo, mas sim para salvar suas vidas. Isso mesmo, a vila estava sob ataque!
Slam… Slam… Ssssssssssss! Sssssssssssssss!
Shiiiiin! Shiiiiiiiiiiiin!
— Senhor, por favor! E-eu não tenho nada, me deixe i…
O toque do ferro foi o último que sentiu em vida. E enquanto o corpo sem vida caia, o inimigo de armadura leve ia ruma à próxima vítima, seu humor pesado fazendo peso em seus pés.
Do outro lado, três deles revezavam em apunhalar um aldeão que resistia. O pobre homem não tinha chance, seu arado não era páreo para as espadas; as habilidades com a terra, para suas artes de matar.
— Fuja, camponês! Ore para seus deuses falsos e fuja! Ou será que você não consegue? Hahahaha!
O homem rangia os lábios, todavia nada mais conseguia. Os cortes o fizeram perder muito sangue, estava fraco. Já nem raciocinava mais, só agia.
Algumas estocadas logo vieram, para a infelicidade de sua vitalidade. Ao menos foi uma morte indolor, algo que muitos não teriam naquela noite.
No centro de tudo, entretanto, cinco figuras se deslocavam cuidadosamente.
— Leide Amélia, Sofia, por aqui — apontou o loiro. — Pelo Sudeste alcançaremos o bosque.
— Mas, senhor Linn, nossos homens estão no norte.
O cavaleiro se virou, com um sorriso frio em seu semblante enquanto tentava explicar que se aqueles mercenários chegaram até ali, então muito provavelmente…
A mulher sentiu uma dor súbita, seguida de uma vontade tremenda de chorar. Era uma situação complicada, por todo lado para o qual ousava virar, homens e mulheres sendo mortos ela via.
Amigos de infância… vizinhos… Pessoas que ela conhecia e gostava, tendo de si retiradas o sossego, tendo de si retiradas a vida.
E, em meio a tudo isso, sentiu um toque nos ombros. Era leve como a pluma, caloroso como o verão. Era a criança, que com um aperto tímido afastou-a da desolação.
— Mamãe, precisamos ouvir tio Linn. Ele é um protetor do reino, do nosso reino; meu, do papai e seu. — Diferente das outras crianças, a pequena não chorava e nem aparentava desespero. Era ela quem consolou a mãe, e não o contrário.
Com um golpe súbito, talvez de vergonha, Amélia deu-se um tapa leve e voltou-se a caminhar.
— Vamos; papai, mamãe. Precisamos ir com senhor Linn para o Sul — sussurrou a mulher, ainda com a voz chorosa, todavia firme.
O casal de idade assentiu e eles então continuaram. Desviaram com cuidado da multidão, com o cavaleiro loiro lidando com qualquer mercenário que cruzasse o caminho.
Concluíram bem o percurso, embora, com exceção da garota e do cavaleiro, com medo e terror estampado nos rostos. Claramente não estavam em boas condições psicológicas. Todavia, após cruzar a campina, quando prestes a alcançar a proteção do bosque…
— Cerquem-os!
A voz que ordenou era rouca, firme e um tanto fanha. Sequelas de uma vida ex-boêmia e de um treinamento complicado, talvez.
Obedecendo, cerca de seis homens saíram de seus esconderijos. Todos altamente armados, das cabeças aos pés.
Quando as nuvens passaram, a luz da Lua iluminou a face do mercenário-chefe.
— Lembra de mim, seu merda?
O cavaleiro olhou e tudo o que viu foi um homem. Um home alto, forte e com cabelo raspado. Pelo traje, era o líder e também um mercenário.
Franziu a sobrancelha.
— Você… filho daquele conde fujão…
Pah! O chefe mercenário não deixou espaço para mais conversas, atacou com tudo o adversário. Primeiro, veio com um golpe que mirava a abertura entre a cabeça e a lateral do ombro.
Shiiiiiiiiiin!
A espada acertou o vento, mas por pouco não causou uma tragédia. O cavaleiro apareceu três passos atrás, ofegante e com a espada em punho.
— Senhor Linn! — gritou Amélia. Os velhos e a criança também esboçaram sua preocupação. Todos correram para apoiar Linn.
— Afastem-se! — gritou ele, todavia. — Afastem-se e corram, agora! Vão!
A ordem foi pesada e o tom sugeria que não haveria espaço para negociação. Eles fugiriam e o fariam agora, ou todos morreriam em vão.
O outro homem, Gerald, entendeu, e assim puxou a neta pelos braços e correu, gritando:
— Amélia, Megan; vamos!
A moça de tranças negras estava relutante em deixar o protetor ali, a mãe a puxava e puxava, mas ela não cedia. “Vão vocês!, eu ficarei” e “Não posso deixá-lo morrer assim” foram coisas que disse.
Enquanto isso, a luta continuou. Os dois homens brandiam espadas e trocavam murros de todos os tipos e com todas as potências imagináveis. Linn estava em clara desvantagem, pois não podia se afastar daqueles a quem devia proteger, e os demais mercenários resolveram agir também.
— Eu pego a garota! — gritou um deles, já se atirando para a investida.
Shiiiiiiiiin! Pah!
Foi facilmente impedido por Linn, que o cortou no contra-ataque em um movimento lateral sofisticado. O vento gritou e a perna do oponente sangrou.
— Vão logo! Agora! — O cavaleiro estava eufórico, encarando a leide com frieza, uma frieza gélida que quase a fez se derreter de medo.
Uma mãozinha tirou-a do encanto, pela segunda vez naquela noite. Era Sofia, que ainda estava no colo do avô.
— Mamãe, Sofia confia em tio Linn, ele é um protetor do reino! Portanto confie nele também.
A convicção da menina a comoveu. “Sua filha tem mais coragem que você”, foi a verdade atirada nela, brutal como o martelo que quebra o cobre e parte o crânio em dois.
Assim, convencida, mas ainda relutante, Amélia decidiu não se virar para trás e seguir os pais rumo às profundezas do bosque. Linn os cobriria. Se sacrificaria por eles, e esse sacrifício deveria valer a pena.
— Não vou deixar!
O homem correu rumo aos alvos, mas tudo o que conseguiu foi um encontro com a parede de cabelo amarelo e sua arma pontiaguda. Ele girou e aparou dois golpes simultâneos, advindos dos companheiros nas laterais.
E o chefe mercenário não deixou a oportunidade passar batida, com era de se supor. Ele investiu novamente, só que mais rápido ainda, e de modo mais imprevisível ainda.
Linn percebeu e colocou-se no caminho, era sua pedra na estrada. Mas então o oponente gingou e fez algo que o fez sentir receio pela primeira vez desde o início daquela luta.
Com um pah abafado, diversas árvores foram se quebrando. Era o cavaleiro, que foi mandado para longe por um golpe invisível.
Era a única explicação plausível. O inimigo estava distante; ele, com a guarda alta. Não teria como ser golpeado assim.
Resquícios de uma luz esverdeada ficaram pelo caminho. Desapareceram como um flash, mas a visão dele era boa demais para não os notar. Mana, como a arcana os chamava, ou, de onde Linn veio…
— Aura de batalha! Esse desgraçado arrivista sabe manipular a aura de batalha!
O cavaleiro se assustou. Seu semblante até mudou conforme se estabilizava, voltando à luta. Mas não durou muito, o medo logo foi substituído por uma outra coisa, um sentimento conhecido que voltara após muito e muito tempo.
Ele sorriu. Em seguida mudou completamente a postura, ignorando a guarda. Era selvagem, como se imitasse a disposição de um tigre… ou melhor, de um leão.
Olhando atentamente se percebia que uma luz parca também se reunia ao redor dele. Tinha a cor da terra e se distribuía de modo uniforme por todo o corpo.
— Então você também…?
Pah! Pah!