Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 9
No Salão Oval, a alguns milhares de quilômetros de onde Pedro estava…
— Você tá insinuando que o Quarta Geração está envolvido em uma guerra de sucessão?!
— Mas ele não estava indo para a Confederação? — questionou um ancião.
— Bom, é o que diz o relatório…
— E vocês confiam mesmo nas palavras de um mestiço?! Tsc! Eles são a escória desse Clã — disse um outro ancião, um tanto resignado.
Percebendo os rumos daquela discussão, Cássio, que já estava se sentindo um tanto estressado pelo alto volume de trabalho, decidiu intervir. Assim, ele inconscientemente ergueu um punho e…
Pah! A mesa tremeu. Se tivesse sentimentos, com certeza choraria de dor.
— Silêncio! Todos vocês!
Depois que o pobre móvel quase se partiu, a atmosfera se acalmou. Mas apesar disso os anciãos não se assustaram muito. Já estavam acostumados com os piques de fúria de Cássio, afinal.
Desse modo, com os ânimos controlados, o líder se levantou do assento e começou a discursar.
— Primeiramente, o “Presságio da Escuridão” é um assassino de sétimo grau da Irmandade, uma das autarquias mais importantes e confiáveis que temos. Suas palavras são confiáveis.
— Razoável — concordaram.
— Segundo — continuou Cássio. — O Quarta Geração parece ser bem mais malicioso do que nós inicialmente pensamos. O que não é de todo mal, já que agora nós podemos designar tarefas mais sensíveis pra ele e…
— Chefe — interrompeu um ancião. — Aqui diz que ele enganou um homem, deixou que se virasse e o atacou pelas costas! E ainda arrancou seu coração. Malicioso é pouco, ele é praticamente um psicopata! Haha! Eu gostei dele…
— Hernandez, espero que você não esteja pensando em aliciar o Pedrinho com o seu grupo de psicopatas! Não pode! — respondeu irada uma voz doce e melodiosa.
Era a anciã loira e encorpada, fazendo uma expressão de repreensão. Seus trejeitos eram tão encantadores quanto seu sorriso, apesar de ela não o estar mostrando no momento.
— Rúlia, minha doce bruxinha de olhos azuis, esse era meu plano. Mas, por você meu docinho, eu me sacrifico. Se me der um beijo, é claro! Hehe… — conversou Hernandez.
— Hump! — Ouvindo aquilo, Rúlia simplesmente virou a cara. Estava claro que não gostou nada do diálogo com o ancião de cabelos negros.
— Vocês dois, silêncio! — repreendeu Cássio.
Ele então retomou seu assento e continuou:
— Roberto, deixe o Quarta Geração fazer sua própria escolha no futuro!
— Pode deixar, chefe — assentiu o com rabo de cavalo.
— E Rúlia — continuou o líder — eu não quero nem que você pense em envolver o Quarta Geração em seus assuntos particulares! Você sabe o que o Marcus pensa disso, e eu acho que todos aqui concordamos que irritá-lo é má ideia. Certo?
Todos os outros dez anciões olharam com receio depois disso, com rostos receosos para o assento vazio no canto da grande mesa.
— Eu soube que uma vez ele se irritou com uma certa corte corrupta e em troca queimou a nação inteira — comentou um deles.
— Hump! Isso não é nada, eu soube que uma vez ele eliminou toda uma grande família do Clã! Uma grande família! Descendente de um membro da primeira geração, sozinho! — comentou outro ancião, com um tom de medo e reverência.
— Eu também soube dessa história…
Cássio interveio na divagação.
— Okay, okay! Vamos para o próximo tópico — decidiu o homem robusto, apontando para a projeção de tela no canto do salão.
A tela mostrava uma série de fotos e informações. Havia um grande mapa também, com algumas marcações.
— Esses são os últimos registros da fronteira entre as três grandes regiões. Como podem ver, há muita tensão e os relatórios mais recentes indicam que uma guerra entre esses grupos será inevitável no futuro.
— Isso significa que…
— Sim! É a hora perfeita para fazermos nossa próxima jogada.
…
Naquele mesmo dia, em um lugar pobre no Continente, uma caravana de homens armados se deslocava pela relva veranil. E com eles, além de vários cavalos, havia uma grande e luxuosa carruagem ostentando o símbolo da família real do Principado Mea.
— Então, me conta mais ae… como é essa tal Gloomer? — perguntou Pedro, estirado em um dos assentos acolchoados da espaçosa carruagem.
— Gloomer é basicamente a maior e mais influente cidade do Oeste. É lá que estão hospedadas a maioria das famílias aristocratas daqui — explicou Edward.
Pedro fez uma cara de entendimento, enquanto o homem de idade tomava a para si a palavra.
— Já enviei as cartas instruindo o prefeito a preparar uma recepção para o jovem lorde e o ilustre nobre. Também pedi que preparasse um banquete, no qual anunciaremos oficialmente o jovem nobre como novo Conselheiro do Oeste, como eu.
— Ótimo, velho Mark, você fez muito bem — agradeceu Edward.
— Eu fico imaginando a reação desses aristocratas safados… Vai ser interessante! Hehe…
Escutando o comentário extremamente jocoso — e um tanto malicioso — de Pedro, Edward passou automaticamente para o modo desconfiado. Nele encarnou a Receita Federal, observando atentamente as possíveis inadimplências das próximas declarações dele.
— Como meu novo Conselheiro, você já sabe muito sobre mim. Entretanto, ainda não sabemos nada sobre você, meu amigo. Afinal, o que vocês vieram fazer em um lugar tão afastado como este? — perguntou o jovem lorde, ainda com olhar desconfiado.
— Isso é confidencial, mas acho que posso contar um pouco a vocês…
Quando ouviu isso, Beto se assustou. Disfarçadamente colocou a mão bem próximo à cintura, se preparando para puxar sua arma caso fosse necessário.
Mas Pedro percebeu e olhou para ele com um ar de “deixa com o pai”, forçando-o a relaxar o pulso.
— Na verdade, eu também sou um aristocrata de um lugar muito, muuuuito distante daqui. Acabei meu treinamento recentemente e quis saber o que existe nesse mundo maravilhoso.
— Então foi por isso que você e seu servo vieram aqui? — perguntou Edward, ainda em um tom desconfiado.
Pedro confirmou, todavia o jovem barbado pareceu manter ainda o assunto em mente.
— E por que você decidiu me ajudar? — perguntou.
Mais veloz do que um Uno com escada foi Pedro ao respondê-lo com uma desculpa qualquer.
— Foi porque eu gostei de você! — exclamou, forçando simpatia. — O mundo precisa de líderes interessados com o cidadão comum! Cof… Cof…
“E eu preciso de alguém manipulável e com recursos para os meus planos, é claro”, completou em sua mente.
Aquela resposta rasa, porém altruísta, aparentemente foi o suficiente para convencer Edward e o velho do lado. Ou pelo menos serviu para que eles parassem de fazer perguntas do tipo.
Para eles, Pedro mostrou-se um tanto ingênuo e idealista. Típico de um jovem na casa dos vinte que ainda não conheceu o mundo. Provavelmente foi pensando nisso que decidiram não ser necessário investigar mais a fundo. Era tudo uma mentira — por óbvio — e eles caíram nela.
Já pela força que demonstraram ter, apesar da pouca idade, Edward e Mark concluíram que os dois à sua frente eram membros secundários de alguma grande dinastia do Leste, ou algo assim.
Desse modo, também sabiam que não era bom ofendê-los. Mas se estivessem mesmo dispostos a ajudar, bom… então isso seria ótimo!
…
A viagem continuou tranquilamente por cerca de dois dias inteiros e mais metade de um outro, até que eles enfim chegassem a Gloomer.
No momento, um rapaz de expressão crítica avaliava o grande amontoado de pedras que cercava a cidade.
“Razoável…”, pensou ao amaciar o queixo com a mão.
— Beto, veja essa muralha. Tu consegue derrubar ela?
— Com um pouco de esforço e alguns dias, meu senhor, é possível — respondeu sem vacilar.
— Hum… razoável. De fato, bem razoável…
Se estivessem sozinhos, talvez aquilo não fosse tão absurdo. E se fossem outras pessoas a ter aquela conversa, com certeza os transeuntes próximos pensariam se tratar de dois lunáticos. Contudo, eram dois monstros homicidas que acompanhavam a comitiva grã-ducal, o que tornou críveis suas palavras e deixou todo mundo em choque.
“O que eles ensinam no Leste?”, Edward refletiu, tentando esconder sua apreensão. Ele provavelmente temia que estivessem tramando a destruição da cidade que apenas há pouco passou a seus domínios. Em suma, era como um recém-casado em uma casa de swing.
— Você tem certeza que não quer um cavalo? — disse, tentando desviar o foco da conversa e preservar seu novo lar.
— Tenho. Eu não sei montar um, de qualquer forma — respondeu o companheiro, encolhendo os ombros em solenidade.
Ele então deu um aceno a Pedro e avançou com seu corcel branco para adentrar os portões. Na frente deles estava um homem gordo e pálido, vestindo uma túnica de linho nobre escura.
— Aquele gordão é o prefeito? — perguntou ao a pé, sem reter seu preconceito.
— Sim. Seu nome é Collins e ele pertence à tradicional família Armellius. Acho que é um conde agora, vassalo da casa de minha mãe. Sei que sua família tem bastante influência no Oeste.
“Oh, um gordão com pedigree“, era o que ia falar o rapaz, mas se absteve. Duvidava que houvesse o conceito de pedigree neste mundo. Mas passou alguns segundos refletindo.
— O quão leal ele é? — perguntou.
— Leal? — Surpreso, foi a vez de Edward pensar um pouco, antes de responder: — Depende. Collins é um político nato. Vai apoiar quem achar que tem mais chances de vencer e menos de prejudicá-lo. Nesse momento, ainda não sei dizer em qual lado ele ficaria se estourasse uma guerra entre mim e Simel, por exemplo.
— Entendo. Parece que precisamos consolidar nosso poder primeiro, antes de investir contra seus irmãos — avaliou Pedro.
Em resposta, Edward lhe deu um breve aceno, antes de puxar as rédeas de seu palafrém. Naquele momento eles estavam prestes a chegar perto do portão e por isso cessaram a conversa.
— Ó, Lorde Edward, que honra recebê-lo em meus humildes domínios — saudou o gordo.
— O prazer é meu, Lorde Collins! Por favor, acompanhe-nos até o salão — respondeu Edward.
Os dois então andavam vagarosamente na frente da caravana, em procissão pelas ruas da grande cidade, enquanto trocavam cortesias.
Pedro, Beto e o velho Mark os acompanhavam logo atrás, seguidos pela comitiva do prefeito e pelos homens da caravana. Todos eles seguiam a pé, apesar de os dois jovens da frente chamarem muita atenção por sua beleza elevada e trajes distintos.
Nos calçamentos laterais, as pessoas comentavam.
— Sua Alteza voltou cedo… Soube que ele foi emboscado enquanto visitava uma vila no sul.
— Também escutei isso ontem, na taberna. Ehr… que azar né? Mas soube que conseguiu vencer. Meu marido trabalha na guarda e disse que ouviu uns boatos, estão dizendo que…
— Ei, quem são aqueles dois jovens ao lado do Conselheiro? — questionou um outro curioso.
— Eu não sei, mas eles são muito lindos! Ohr… — suspirou uma donzela qualquer.
— Sim! Principalmente aquele de cabelos castanhos. Que gato! — respondeu uma outra moça mais velha.
Percebendo os olhares atenciosos dos súditos — e principalmente das súditas — para os dois jovens de roupas estrangeiras, o prefeito também ficou curioso. Ele também escutou boatos.
— Lorde Edward, se não for incômodo, podes me dizer quem são os dois jovens que o acompanham?
Ouvindo aquilo, o grão-duque se virou para a mesma direção em que o prefeito olhava e, encontrando-os, respondeu devagar.
— Estes são meus dois novos amigos. Eles vieram de muito longe para conhecer nossos domínios e infelizmente eu acabei os envolvendo em assuntos pessoais. A sorte é que eles são homens de bom coração e decidiram ajudar.
— Por acaso o anúncio do banquete tem haver com… er… aquilo? — perguntou o prefeito.
Edward ficou em silêncio, sem indicar que sim nem que não. Mas pala careta que fez, o prefeito deduziu que era a primeira opção. Ele então olhou para os dois de maneira mais incisiva.
“Pois eles parecem muito normais para mim… A única diferença é que são mais belos que a média. Que será que Sua Alteza pretende com eles?”, questionou internamente o gordo.
Pedro deu uma singela piscada para ele. E recebendo a provocação, o prefeito se reteve e soltou apenas um sorriso falso em resposta.
— Aquela deve ser a mansão do Conde — avisou Beto, apontando para a grande construção.
— Mas que coisa mais espalhafatosa! — Pedro comentou. Novamente, não escondeu sua crítica.
E a mansão do prefeito era, de fato, bem espalhafatosa. Inteiramente composta por um tipo chamativo de pedra branca, muito similar ao mármore, com grandes portas de madeira polida e pilastras brancas na entrada da frente. O estilo assimétrico dos anexos a afastava do clássico, entretanto.
Muitas pessoas aguardavam naquele local. O evento mal começou e já havia uma pequena multidão. E foi justamente prevendo isso que os guardas da cidade levantaram uma extensa barreira, feita com estacas e placas de madeira.
Também havia muitas carruagens estacionadas pelos arredores da mansão, na frente do pequeno muro, sobretudo. Provavelmente pertenciam aos nobres e aristocratas de Gloomer ou arredores.
— Ei, Ed! — chamou Pedro, se aproximando. — Antes de você me apresentar, deixa eu salgar um pouquinho a boca desses nobres safados…
— Salgar… a boca…? Ein?! O que você pretende?
— Relaxa… Faz parte do plano, hehe… — explicou a Ed, que pareceu concordar.
— Mas não os mate, por favor! — acrescentou.
— Fica tranquilo, meu parça. Se tudo der certo, ninguém vai precisar morrer.
De certa forma, a resposta tranquilizou Edward. Pelo menos a primeira parte dela, mas o que veio a seguir o deixou um tanto atônito e desconfiado.
— Pelo menos, eu não pretendo matar ninguém hoje. Embora acho que cedo ou tarde alguns deles com certeza vão me fazer reconsiderar isso…