Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 93
A breve conversa que teve com Sofia revelou a Pedro o que ele já esperava. Em meio a lágrimas e juras de vingança, a garota disse que mataram seus avós, que não sabia quem eram os responsáveis, mas o sotaque era diferente de tudo que ouvira até então.
Ela também disse que eles falavam coisas sobre o deus Sol e que não as torturaram, nem a elas, nem aos avós, só os mataram friamente. O rapaz então foi consultar Rebecca, que disse:
— Eles devem ser mercenários do continente. Sua fé proíbe a tortura e violência injusta.
Pedro achou aquilo risível, afinal, o que era de fato justo? Mas, indisposto a entrar no mérito do assunto e decidido a investigar melhor, voltou lá, dessa vez com Rebecca, e escrutinou os cadáveres. Inclusive o de Rukie, do qual se havia esquecido durante a fuga apressada.
Ele se assustou, já que o mercenário parecia mais uma geleia. E não fora assim que o deixara.
“O que aconteceu com essa palmeira ambulante?”, questionou-se, atônito. “Será que tem a ver com aquela criatura cabeluda que tava usando magia proibida? Ou isso é coisa da anciã?”
Qualquer fosse a resposta, concluiu que não importava. A anciã já havia retornado ao clã e a criatura de cabelos brancos, assassinado pelas valquírias. Mesmo assim, conseguir reduzir alguém a um estado tão deplorável sem deixar nenhuma marca aparente de golpe… Não era algo que qualquer pessoa conseguia fazer.
Como suspeitavam, entre os cadáveres haviam objetos usados como acessórios, como braceletes e colares. Todos tinham isso em comum: uma coroa desenhada sobre a cabeça de um rosto muito bonito.
Era o deus Sol?, perguntara-se o jovem em seu coração.
Olhando de canto, ele notou que a namorada arqueava levemente o cenho ao olhar para o símbolo, assim como mexia o nariz. Era como se tivesse asco da figura e do que ela representava.
“Isso tem a ver com a família dela?”, Pedro refletiu. A conclusão foi obvia: sim.
— Venha, Meu Bem. Simel já deve ter acordado à essa altura.
A garota assentiu, seguindo o rapaz em meio à escuridão e aos escombros.
…
Mais tarde, na tenda central do acampamento do grão-duque…
— Então eles vieram mesmo de Solaris, como Milla suspeitou. Entendo… — Simel analisava com desânimo o bracelete que Pedro o entregara.
Naquele momento o jovem nobre se deitava sobre a cama. Não tinha se recuperado por completo dos ferimentos, todavia estava lúcido o bastante para uma boa conversa.
— E o líder das criaturas verdes?
— Ele sumiu — comentou Pedro, mentindo.
— São orcs, meu lorde — disse a maga, entrando na tenda. — Força elevada, músculos avantajados, altura média de dois metros e, o principal, pele esverdeada. Tudo indica que são orcs, criaturas das Terras Distantes.
A curiosidade de Pedro foi cutucada com a nova informação geográfica. Nunca tinha ouvido falar do Continente Distante. Contudo manteve-a para si, decidindo apenas investigar melhor sobre a geografia no futuro.
“O mestre me doutrinou muito em ciências naturais e arcana. Não sei de quase nada fora isso”, refletiu, relembrando dos tempos de treinamento.
— Okay… Então, de alguma forma, mercenários solaris foram contratados pra sequestrar sua filha e mulher e foram surpreendidos por orcs — Pedro comentou, fingindo surpresa. — Afinal, quem miquinhos é você?
Simel quase pulou com a pergunta direta. Milla já se adiantou para interferir, contudo a parou com um gesto, pedindo que saísse, levando os curandeiros e guardas consigo.
Quando o último deles deixou a tenda, ele retirou as xícaras que estavam no canto, entregando uma delas ao rapaz de cabelos negros. Serviu-se com o chaleira, entregando-a a ele e respirando fundo.
— Minha filha veio mais cedo… — Suspirou. — Ela me pediu algo. Sabe o que foi?
Pedro fez que não.
— Papai, quero que me ensine a matar…
Olhando com calma para o rosto abatido de Simel, no canto superior esquerdo, viu um pouco de umidade se formando. Naquele momento Pedro teve um grande choque.
“Aquilo são lágrimas”, perguntou-se sem acreditar.
— Sabe, senhor Petter… nunca contei isso antes a praticamente ninguém, mas… essas duas são o meu ponto fraco. Ah, sim… O meu único e frágil ponto fraco.
Um suspiro longo e azedo em meio às palavras quentes de uma confissão.
— Não sei como funciona em sua terra, senhor Petter, mas aqui eu sou o grão-duque que controla dois quartos deste principado. Uma posição desgraçada. O caminho que me fora dado para proteger quem amo. Um caminho de sangue e frieza, de dor e de ódio.
Pedro assentiu, mas não disse nada, deixando que o grão-duque continuasse.
— Infelizmente, Amélia veio de uma família normal e eu, da maldita família real. Meu pai-real não permitiria que nos casássemos e nem que Sofia, com sua maldição ocular, entrasse para a linha de sucessão. Então as mantenho longe, escondidas dos olhos maldosos da Capital.
As palavras que iam saindo fizeram com que Pedro sentisse a solidão do enfermo à sua frente. Ele emanava uma aura majestosa, sim, mas também carregava consigo uma solidão sem fim.
Por um momento, ele o viu sentado em seu trono. E, apesar de cheio, ali havia um grande vazio.
“Ele me lembra um pouco de mamãe”, não pode deixar de pensar, fazendo um paralelo que também o entristeceu.
— É um caminho de sangue e ódio, como disse antes, mas serei o príncipe. Serei o príncipe para que Sofia possa ser a princesa e Amélia, uma grã-duquesa. Por elas, não importa quantos ou quem eu mate. Mas isso sou eu, não quero que Sofia sinta esse ódio. Não quero que minha filha sinta vontade de matar.
Ele olhou bem nos olhos de Pedro naquele momento.
— Por isso eu o agradeço. Você ajudou a protegê-las, senhor Petter. A partir de hoje temos uma dívida e, contanto que não prejudique aquelas duas, pode me pedir o que quiser.
O jovem sorriu.
— Por enquanto, só a sua amizade já basta, Simel.
O grão-duque ficou sem palavras. Mesmo após revelar quem era, o jovem à sua frente não lhe pedira nada?
— Amizade, em… Você é mesmo um personagem curioso, Petter.
Eles riram.
— Ah, tem algo que precisa saber se vamos ser amigos, Simel — disse, antes de deixar a tenda. — Petter é só um disfarce. Meu nome real é… outro.
— Você é mesmo um personagem muito curioso, caro Petter.
…
Alguns dias se passaram e Pedro decidiu partir com Rebecca do acampamento de Simel. Por conta da gravidade de seus ferimentos, o grão-duque teria de descansar por algumas semanas antes de partir.
Reforços seriam enviados para os proteger, por isso Pedro não se preocupou mais com o bem-estar de Amélia e Sofia.
Além disso, quando contou a Simel que estava em uma espécie de viagem romântica com Rebecca, o grão-duque o entregou um documento escrito por ele próprio, uma espécie de salvo-conduto, que lhe outorgava alguns direitos, como o de passar livremente pelas fronteiras sob a jurisdição do grão-duque.
Ele também deu uma dica de viagem: ao norte de Kirgton existia um grande lago, afluente do rio Uzard. Lá existia um templo dedicado ao deus supremo dos rios e lagos. Era um lugar turístico famoso que os nobres locais usavam para descanso e diversão.
Enquanto andava por aí, Pedro pensou bastante na situação de Simel. Ele se perguntou o que faria em seu lugar e chegou à conclusão que não poderia culpá-lo. Afinal, estava apenas defendendo seus interesses, no caso, dar uma vida melhor a quem amava.
Talvez, caso não conseguisse conciliar os dois, ao menos garantiria que Simel pudesse viver tranquilo com a mulher e a filha após a sucessão, mesmo que como simples camponeses.
Perdido em meio ao balançar das árvores e o piar dos pássaros, sentiu o cutucar da namorada o acordar.
— Sentiu isso?
— Sentir o quê?
— Esse cheiro…
Pedro ficou curioso. Ele tinha os sentidos muito aprimorados em comparação a um humano normal, afinal, pelo que sabia, nem humano ele era no momento. E mesmo assim, por mais se concentrasse, não sentia nada além do cheiro da natureza e da umidade da estação.
— De que cheiro é esse que cê tá falando, muié? — questionou, curioso no palafrém ao lado.
— É o cheiro de um namorado culpado e tá vindo de você, Amor.
Pedro queria rir, mas xingou no coração, esforçando-se para não transparecer nenhuma emoção. Não deu certo.
— O que te fiz dessa vez?
— Humf? Essa era pra ser uma viagem romântica, mas posso contar nos dedos as vezes que você foi romântico comigo.
“Isso foi um suspiro de deboche seguido de um ultimato”, questionou-se, tentando entender a situação.
— Até mesmo carregou outra mulher nos braços…
Ela fez beicinho e Pedro simplesmente não acreditou na situação em que estava.
— Rebecca… Você por acaso tá com ciúmes de uma mulher sequestrada e cujos pais foram assassinados a sangue frio?!
— Hum?