Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 94
Já faziam alguns dias desde que o casal de turistas chegou em Kirgton, a atual cidade mais importante do Sul e do Leste.
Comparar a grande muralha e o grande porto que viram com as construções da nova Jamor seria uma grande injustiça. A cidade-polo do Oeste mal seria considerada uma vila perto da capital do Sul e do Leste.
Com os recursos que foi adquirindo ao longo da viagem, Pedro pagou sua estadia em uma hospedaria famosa, com vista para o porto e para o palácio do grão-duque. Rebecca gostava do ar puro do dia e também da iluminação lunar durante a noite.
Como Rebecca estava fazendo compras, Pedro achou justo sair em busca de mais informações sobre o templo que visitariam. Então também saiu.
A primeira coisa que viu ao passar pelo salão de entrada foi a agitação das multidões de transeuntes. Várias e várias pessoas, de lá pra cá. Mercantes, servos e viajantes; súditos de todos os tipos transitavam pelas ruas próximas ao cais.
Andando um pouco, Pedro notou varias lojinhas. Uma delas, em especial, chamou-lhe a atenção.
“Essas formas… E tantas peças diferentes… Não me diga que isso é um…”, ia pensando o rapaz, desatento ao adentrar a loja.
— Olá, viajante. Em que posso ser útil?
Pedro sentiu-se inconscientemente atraído por aquela voz doce e sedutora. Olhando melhor, não pode deixar de se encantar. A figura da mulher, mesmo que encoberta por um capuz e capa, ainda mostrava muito. Justa nas partes importantes e quase que inútil, nas menos importantes.
— Minha senhora, isso aqui por acaso é um… ehr... você sabe…
Ela forçou um sorriso, acenando positivamente em resposta.
— E-então vocês têm… ehr… aquilo?
Ao contrário do que aconteceria com qualquer pessoa comum, a atendente pareceu entender.
— Sim.
Naquele momento Pedro debruçou-se sobre a mesa e, sem conseguir conter a animação, fez seu pedido.
— Então usarei de seus serviços.
A atendente sorriu e caminhou calma até a prateleira lateral, retirou o que parecia um pedaço de papel e entregou-o a Pedro.
— Este aqui são os preços e condições de cada serviço, senhor. Leia antes de fazer seu pedido, por favor.
Ele pegou o papel e o assinou, após breve leitura.
— Então, dependendo do quanto estou disposta a pagar, você faz o que eu quiser? É isso mesmo?
Ela fez que sim, um pouco tímida.
— Perfeito — disse Pedro, assinando e entregando-o de volta à atendente, que guardou-o na mesma prateleira.
Em seguida a moça retirou o capuz, mostrando seu belo rosto moreno. Pegou o rapaz pelas mãos e disse:
— Perdoe-me a indiscrição, mas o senhor é muito bonito, senhor Petter. Queira me seguir ao andar de cima, por favor.
Ele mal podia conter a animação, seguindo de forma obediente a atendente até o segundo andar do estabelecimento.
As próximas três horas de seu dia foram perdidas ali.
…
Quando saiu, com um sorriso estampado no rosto, Pedro não pôde deixar de respirar fundo.
— Mas que trabalheira danada aquela moça me deu. Quer dizer… não sabia que seus serviços exigiam tanto dos clientes. Foram várias posições diferentes em pouquíssimo tempo — comentou para si mesmo.
Alguns transeuntes o encararam sem esconder a surpresa em seus olhares.
— Quem diria que a arte de criar roupas exige tanto de seus modelos…? — continuou. — Bom, ao menos ela disse que quando ficarem prontos ela mesmo envia alguém pra Vilazinha com as encomendas que pedi.
Olhando melhor para a plaquinha acima da loja, via-se os seguintes dizeres: Alfaiataria.
Sim, ao que parece, Pedro encomendou diversos modelos de roupa para seus súditos em Vilazinha. Para evitar que um incidente como o da nova moda ocorresse no futuro, ele se encarregou de ditar a moda. As roupas provavelmente eram parte desse plano.
— Aquele rapaz se veste bem, não é? — comentou um grupo de senhoras de meia idade que passava.
Com um aceno positivo de cabeça, o rapaz deu uma outra olhada em seus novos trajes e avançou feliz para o próximo destino.
Durante a caminhada acabou escutando alguns boatos sobre os acontecimentos recentes. Foi assim que o rapaz soube da conspiração dos nobres e de parte da alta-cúpula do governo do grão-duque. Parecia que também estava relacionado à epidemia de gripe.
Também ficou sabendo que a instabilidade na fronteira com o Norte, de Ruffos, era maior do que com o Oeste, de Edward. Ou ao menos foi, antes que o Novo Exército fosse criado.
Contudo o mais interessante foi ouvir o que dois guardas comentavam durante a patrulha.
— Já estamos perto do aniversário de Sua Alteza, o príncipe. Acha que muita gente vai esse ano?
— Sim, Carl. Pelo que ouvi do capitão, parece que muitos insumos tão chegando no porto. Tudo para o banquete. Mas acho que era apenas o esperado, afinal, Sua Alteza está fazendo sessenta, não?
“O aniversário do príncipe. Acho que era disso que Ed falou nas cartas?”, pensou.
— Será que ele anunciará o sucessor este ano? — perguntou o guarda.
— Quem sabe, Carl? Creio que não, o príncipe ainda é novo e bem de saúde. Mas ao menos deve dar-nos alguma pista de quem é seu preferido.
O homem bufou.
— E não é óbvio? Desde que lorde Simel assumiu dois dos quatro territórios, é ele claramente o preferido de Sua Alteza, pela graça do grande Urzad e pelas bênçãos da bela Nüsha.
O colega assentiu, mas em seguida virou de súpeto para trás.
— O que foi, Matt?
— Não é nada. Achei que alguém estava nos seguindo, mas não é nada…
Ele olhou novamente para confirmar, antes de desviar de vez a atenção ao companheiro e seguir na patrulha.
Enquanto isso, da esquina, um rapaz muito bonito mantinha-se parado, raciocinando: “Talvez eu consiga resolver tudo isso no banquete. É só ameaçar o velho e forçá-lo a passar o trono pra Ed. Os dinossauros proibiram que eu vazasse informações, mas não disseram nada sobre interferir na política do mundo”.
E com aquele plano em mente foi que Pedro adentrou um outro estabelecimento.
“Mas talvez seja melhor não. Ou, quando eu sair, podem querer destroná-lo”, concluiu. “Mas, mesmo assim, talvez eu consiga amedrontar os ministros e até esse tal Ruffos. Com medo, talvez desistam e deixem Ed assumir em paz”.
Ele nem mais considerava Simel uma ameaça depois do ocorrido recente. Dividas de sangue tinham esse poder.
— Garçom! — chamou, assentando-se sobre a mesa mais próxima a balcão.
— Pois não, meu patrão?
O homem que o atendeu era franzino e parecia estar na casa dos trinta, mas exalava simpatia.
— Desce a boa pra mim, campeão.
O homem pareceu não entender.
— A boa, patrão?
— Sim, leite quente com açúcar e mel, por favor.
— Ah, sim. É pra já, patrão.
Quando o garçom saiu foi que Pedro observou com calma o lugar. Apesar de ser uma taverna, tinha lustres e janelas amplas, bem como carpete e quadros para enfeitar. Podia facilmente ser considerado de alta-classe em qualquer outra cidade de Mea, mas, pelo que ouviu, em Kirgton era apenas um lugar normal.
E foi ali que Pedro decidiu rememorar o que havia feito no dia, afora coletar informações e encomendar roupas e utensílios para o povo de seus domínios.
“Parece que informações sobre outras raças não estão mesmo disponíveis tão fácil quanto eu gostaria. Quer dizer… não achei nada nas lojas ou bibliotecas daqui a não ser contos e livros infantis, e essa devia ser a segunda cidade mais importante de Mea, fora a capital”, pensou. “Simel também demonstrou não saber de que raça aquele verdão era, então não deve ter nada aqui”.
— Aqui a bebida, patrão.
— Opa!, valeu, campeão. Aqui seus xilins.
Após pagar, Pedro deu longas goladas na bebida, continuando imerso em suas divagações.
“Milla não pareceu muito surpresa, contudo. Embora não disse nada, a safada deve ao menos ter ouvido falar de orcs e elfos. Então devo achar alguma coisa na Confederação. Ou é isso, ou no pior dos casos só encontro essa merda nos arquivos do Clã”.
O incidente recente o incomodava. Pedro era muito forte, e àquela altura já havia percebido isso. Em comparação às pessoas normais, ele valia por um exército ou dois, podendo mudar a geografia até certa medida só com a força bruta, ou percorrer grandes distâncias em tempo consideravelmente menor, como um carro-turbo. E mesmo assim, desmaiou naquela hora.
Pensando com calma, mesmo que a explosão acontecesse, ele não deveria desmaiar. Tinha a força necessária para ao menos conseguir sair vivo daquilo. E mesmo assim, desmaiou naquela hora.
Por quê?, era o que tentava compreender. Sem resposta aparente, entretanto. E a anciã não lhe dera nenhuma dica, nem mesmo pareceu muito preocupada.
“E ela parou aquilo sozinha”, lembrou-se, atônito. “O quão forte ela deve ser pra conseguir interromper aquele caralho sozinha?”. O rapaz não pode deixar de se impressionar.
— Com licença, senhor. Posso me sentar com você?
Acordado de seus pensamentos, Pedro se virou para cima, encarando a figura que o chamou.
— Bom, não tem problema. Mas tem algo que queira comigo? — perguntou, desconfiado.
— A-ah, não… É só que você parecia tão chateado, que não pude deixar de me perguntar: hmm… será que ele não está precisando de alguém para conversar?
A voz que com ele falava era feminina e aguda, esguia como fina de gordura era a dona. Os trajes dela chamaram a atenção do rapaz.
— Você é uma sacerdotisa?
— Sim. Me chamo Samira, do templo do deus Urzard, senhor do grande rio e dos lagos. Posso me sentar, caro viajante.
Diante do tom amigável e da simpatia da religiosa, Pedro não achou de bom tom recusar, estendendo a mão para que ela se juntasse a ele.
— Que coincidência, eu tava mesmo prestes a ir pra lá…
A moça sorriu.