Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 95
Muito bem, muito bem. Vamos recapitular…
Hoje cedo chegamos no templo de Urzard, deus dos rios, lagos e blá, blá, blá. Samirra agiu como nossa guia. E, minha nossa!, não sabia se isso era algo bom ou ruim.
O motivo? Sim, isso mesmo, minha namorada ilogicamente ciumenta era o motivo. Ultimamente só vinha piorado, e não sei bem se é só ciúmes. Sei lá, sinto como se houvesse algo a mais, algo que Rebecca quer me contar. Ela tem agido bem estranho quando conversamos.
Enfim… Logo quando chegamos fiquei deslumbrado com o lugar. Pra começar com a grande lagoa. Como se chamava…? Acho que era algo como Olho de Urzard…
O ar aqui é bem fresco e o verde preencheu-me os olhos. Mas o mais incrível pra mim foram as construções. O templo em si não é muito grande, ou alto, mas tem um estilo único, todo feito de pedra. A entrada lembra muito uma ruína celta.
De tardezinha fugi com Rebecca pras margens do lago. A ideia era ter uma conversa sincera e então contar meu plano pra ela.
Deu errado.
— Rebecca, precisamos conversar — comentei, tentando parecer sério.
— Hum? — Ela tremeu? Ehr… Que careta fofa… — O-o que você quer conversar, Meu Bem?
Ajeitei a postura para mostrar o quão preparado eu estava para pedir aquilo.
— Sobre a verdade. — Sim, sobre a verdade sobre meus sentimentos e intenções.
— A-a verdade? C-como assim?
— Ah, vamos parar com isso. Você já percebeu. Eu sei e também sei que você sabe. — Sim, eu sei que você me ama e eu sei que você me ama. Podemos parar de fingir.
Olhei sério para ela, na tentativa de mostrar o que sentia. Convidei-a a se sentar na grama comigo. Ela pareceu aceitar, ainda que com certa relutância no olhar. Ehr… ela deve tar tão emocionada quanto eu agora.
— Por isso — continuei a declaração —, preciso que seja sincera e que compreenda o que vou dizer agora, Rebecca… — Tenho que chamá-la pelo nome, ou não demonstrarei a seriedade dos meus sentimentos.
Eu estava prestes a fazer a proposta, quando ela virou subitamente para mim, levantando a mão para me fazer parar.
— Para! P-por favor, não continua!
Ãn? O quê… foi isso? Isso nos olhos dela são lágrimas. Ela tá… chorando?
— E-eu…
Ela se levantou.
— E-eu… preciso dormir. Estou cansada agora, d-depois conversamos!
E sumiu.
— Isso foi uma rejeição? — perguntei ao vento, que se manteve calado.
…
Já fazem duas horas que Rebecca entrou no quarto. Ela tava calada e não respondia, não importava o quanto eu batesse ou o quantas vezes perguntasse o que tava acontecendo.
A tentação de arrombar a porta era grande, mas muito grande mesmo. Todavia não consigo mais fazer isso, desde o incidente. Parece que desenvolvi um trauma com portas.
Enfim… O plano era que ela aceitasse e então tivéssemos um jantar romântico num restaurante caro à beira do porto de Kirgton. Só que ela se trancou na estalagem do templo.
Ahr… Tô me sentindo um merda.
Aquilo foi ou não foi uma rejeição?, meu coração ficava se perguntando, martelando os ouvidos de meus pensamentos com suas tagarelices apaixonadas. Será que ela se apaixonou enquanto viajávamos e agora tem outro? Será que foi durante a guerra? Qualquer seja o caso, se sim, por quem? Quem eu preciso matar…?
Ahr… quer saber? Eu também não tô nada legal. Vou voltar pra Kirgton e tomar um pingado. Eu preciso de um pingado.
Assim, parei o que estava fazendo e desci até o salão do templo. Lá encontrei Samirra, que estava como atendente aquela tarde. Deixei com ela um bilhete e vazei rápido, sem querer me explicar.
Poderia ir correndo e economizar tempo, mas sinto que uma caminhada longa me faria bem agora. O vento fresco da zona marítima, bem como o verde claro dessas árvores de clima tropical. Talvez até dê de cara com um miquinho, talvez? Faz tempo que não encontro nenhum miquinho.
Mas o que será que aconteceu pra ela me rejeitar daquele jeito e ainda por cima nem querer falar comigo?, triste, eu me perguntava. Já vai fazer mais ou menos um ano desde que estamos juntos, eu acho. Será que fui apressado demais ao me declarar assim?
Tempo, é…? No final se trata apenas disso?! Será que tem alguma coisa que eu não tô vendo?
Inconformado, acabei por chutar alguma coisa. Um crack veio, seguido de um grito.
— Ei, camponês! Por que chutou essa pedra no meu cavalo, bastardo?!
— Ah, sim… Eu não quero brigar hoje, tá bom? Mil desculpas.
O homem me olhava torto em cima de seu animal, mas percebi que logo mudou para outro tipo. As expressões em sua face relaxaram, sua expressão ficou mais condescendente. Era como se ele… sentisse pena de mim?
— O que houve contigo, caro camponês? Não vais me dizer que fostes rejeitado pela mulher que amas?
Como ele adivinhou?
— Como você sabe? — perguntei.
— Ora, meu jovem. A dor é dona da sabedoria e o saber amargo. Aqueles que mais sabem, mais profundamente sofrem com a verdade fatal, já disse um homem. E, como podes ver, pela carranca sofrida que carrego, sei muito sobre a dor.
Fiquei tentando entender o que aquele cara disse, mas não consegui. Esse cara é alguma espécie de filosofo?
— Bom, talvez eu tenha ficado um pouco mais sábio hoje, então…
— Qual o seu nome? — Ele perguntou e eu acabei respondendo meu verdadeiro nome por reflexo.
— Pedro.
— Pedro, uhmmm… Não é um nome muito comum por aqui, imagino. Igual o meu, haha! Você também é muito bonito… igual a mim! É… Acho que podemos nos dar bem, Pedro. Aliás, eu me chamo George, é um prazer.
Mas George é um nome muito comum?! Bom, não importa. Não tinha prestado muita atenção ao que ele disse, de qualquer modo.
— Obrigado, George. Mas é que eu…
— Estás indo a uma taverna para afogar as magos, certo?
Como ele adivinhou?
— Com você sabe?
Ele sorriu.
…
Tempo passou e nesse momento o sol se punha lento, como se estivesse enamorado pela paisagem embriagante do leste quando, em uma taverna qualquer de Kirgton…
— Eu não acredito que ela me deixou, George! Ugh… E-ela me deixou, George!
A mesa onde conversavam os dois jovens estava rodeada com canecos de cerveja e garrafas de bebidas alcoólicas. No outro canto, o jovem de cabelos acastanhados tocava o que parecia ser um bandolim.
— Ouça a melodia, caro amigo camponês. É mais fácil morrer por uma mulher do que viver com ela…
Sim, ele estava cantando aquilo. E não parecia ser ruim, já que as cadeiras ao seu redor estavam todas ocupadas. Eram sua plateia e, por incrível que pareça, uma plateia quase toda feminina!
— Eu vou cantar uma também, George. Ugh! — disse Pedro ao termino da melodia do amigo.
Recebendo o bandolim, ele respirou fundo, encarou brevemente a plateia e começou. Toques leves primeiro, que logo começaram a se agitar.
— Essa aqui é da minha terra, muito famosa: “Melhor eu ir, tudo bem, vai ser melhor só… Se teve que ser assim… É que pensando bem nunca existiu um nós. Só eu que pensei na gente… Ainda que demorei pra terminar, dói…”
Quando a canção terminou, e a plateia aplaudiu, Pedro foi puxado de lado pelo novo parceiro de taverna.
— E então, caro amigo, conte-me mais dessa mulher tão bela que lhe rendeu tal maravilhosa cantoria.
— Ah, é assim…
Quarenta minutos de conversa sobre o balcão se passaram, até que George interrompeu Pedro.
— Para, para. Deixe-me recapitular… Então, estás me dizendo que já confessaste seu amor inúmeras vezes e que em todas elas Rebecca lhe aceitou, mas agora, quando irias pedi-la em casamento, ela subitamente recusou?
Ele fez que sim, deixando o poeta perplexo.
— Ora, é certo que mulheres não fazem sentido. Mas, mesmo assim, este é um caso muito extremo… — murmurou. — Tens certeza de que não fostes tu a entender erroneamente a situação, de alguma forma?
— Entender erroneamente?
Ele balançou a cabeça de baixo para cima, indicando que sim.
— Perdoe-me, mas quantas paixões já tevês, caro amigo? E quantas destas eram mulheres?
— Se estamos falando de namoradas, Rebecca é minha segunda. Mas, agora… — Pedro levantou o indicador —, se estamos falando de paixão mesmo, acho que ela é a minha… p-primeira. Não tive muitas experiências assim ainda.
George sorriu ao ver o rosto avermelhado do companheiro.
— Você deveria ir falar com ela, se quer saber. Aconselharia a fazer isso agora, aliás. — Ele bateu no balcão. — Lave o rosto, troque essas roupas, coma algo para tirar a embriaguez e vá lá se declarar de novo.
— Quê?
— Isso mesmo. Mas escolha com cuidado as palavras dessa vez. Pense em como fazer para expressar o que estás sentindo com as palavras mais precisas possíveis.
Fazendo que sim enquanto era tomado por uma certeza súbita, Pedro ergueu a cabeça jogou fora a bebida e se levantou da mesa. Depois caminhou até a porta, contudo não sem antes despedir-se do novo amigo.
“É claro! As palavras!”, concluiu, recordando-se da conversa que teve com Rebecca. “Eu não usei as palavras corretas”.
Se aquilo fazia de fato algum sentido ou se era só uma certeza de bêbado, ninguém sabia, mas o rapaz parecia ter tomado uma decisão e não estava disposto a retroceder.
— Obrigado, George! Se um dia vier à Vilazinha, diga meu nome e venha me encontrar.
— Por nada, caro Pedro. E digo o mesmo. Caso venha à baronha de Rochdale, em Wex, venha me encontrar.
Retribuindo a gentileza com um aceno e depois de se despedir do restante da plateia anterior, ele continuou a caminhada rumo à saída, escutando um último chamado ao fundo.
— Ah, e, se vai mesmo se casar, não esqueça: “É mais fácil morrer por uma mulher do que viver com ela”. Por isso lhe desejo sorte, amigo. Vais precisar, pois viverás uma vida difícil, muito difícil. Haha…
Quando ele saiu, George pegou sua cabaça de bebida e a entornou com gosto, puxando uma das mulheres com o braço.
— Você não é casada, é?
Ela fez que sim, corando.
— Então o homem estava mesmo certo — disse, balançando a cabeça. — Bom, eu também sou, então não importa. O que acha, minha cara Vênus, de tornarmos nossas vidas difíceis um pouco menos amargas?
— É-é… isso…