Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 96
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- Capítulo 96 - Beliscos na noite e entrega de documentos
Ainda naquela noite, Pedro voltou correndo para o quarto na pousada. O objetivo era conversar com Rebecca. Mas, ele não esperava, na metade do caminho…
Pah!
Um baque forte o parou, rígido como uma rocha da beira de uma grande cachoeira.
“Que merda foi essa?”, pensou, dando de cara com o obstáculo borrado. A confusão do momento o fez se esquecer por um momento do discurso que estava na mente escrevendo.
— Aí! Cuidado por onde anda, cacete!
Ele ouviu com surpresa o resmungo feminino do lado da estrada. Quando viu quem era a pessoa que atropelou, essa surpresa aumentou.
— Rebecca?
— Hum?
Ambos se estranharam. Aparentemente tiveram a mesma idéia desesperada de ir atrás dela(e). Bom, quando recuperaram o sentido, ele a puxou pelas mãos e guiou para um lugar qualquer, fora da estrada.
A umidade do ar estava um pouco alta, mas a vista ali era linda. A lua cheia iluminava o grande lago, quase que convidando-os a se sentar em sua beira. E foi o que fizeram.
Um pouco tímida, Rebecca deu-se dois tapinhas e tomou a iniciativa.
— E-então… sobre antes, eher… Bom, e-eu não…
— N-não… E-eu quem… Ehr…
O constrangimento selou-lhes os lábios.
Mesmo tendo um discurso de vinte páginas na mente, não conseguiu encontrar as palavras. Tudo que tinha preparado se perdeu, como se as folhas de seu precioso diário, rasgadas, fossem roubadas pelo vento. A presença dela era como a tempestade, ladra de momentos tranquilos.
O mesmo valia para a garota, que, mesmo depois de uma conversa franca com Samirra, mesmo depois de perder o medo e aluviar a cabeça, não foi capaz de encontrar o controle de seu coração mentiroso. A presença dele era mais forte que a tormenta, tão intensa quanto o lampejar do trovão, que a fazia respirar acelerado, o peito subir e descer.
— Vamos falar de uma vez. Juntos, tudo bem? — sugeriu o rapaz.
Tímida, ela fez que sim. Contando até três com os dedos e o estimulando a fazer o mesmo. Ambos contaram na mente: 1… 2… 3…
— Eu te enganei!
— Quer casar comigo?
“Ãn?”
Pedro quase saiu correndo dali ao ouvir a confissão da garota. E o teria feito, caso ela não o tivesse segurado pelo pulso.
— N-não é o que você tá pensando, Amor! É… n-não é nesse sentido…
— Ãn?! Mas que caralhos, Rebecca! Você tem dois minutos pra se explicar, ou eu vou embora.
Jogada contra a parede — no sentido conotativo da linguagem — a garota não viu alternativa outra que não tomar o caminho da verdade. Olhando-o nos olhos, confessou tudo que escondia.
Pedro não queria, mas ouviu atentamente.
Acontece que sua namorada tinha uma amiga muito próxima, mas muito próxima mesmo. Uma melhor amiga, se é que isso existia. E acontece que essa amiga tem uma paixão secreta, um amor correspondido proibido, com um jovem da República.
— E por que caralhos eles não ficam juntos? Aliás, o que você tem a ver com isso?
— Calma, calma… Já vou explicar.
Continuando, esse jovem era filho de um comerciante que viveu um certo tempo em Jamor, no Oeste, mas acabou se tornando um oficial importante da República. Daí a ligação entre os três.
— Tá. Então essa sua amiga, filha de um nobre qualquer, acabou se apaixonando pelo cara. Ele se mudou pro lado inimigo e as famílias os impediram de se ver. Você não pôde fazer nada, afinal seu pai tem negócios do seu clã pra cuidar e não ia deixar. Acertei?
Ela fez que sim, um pouco surpresa pela precisão das palavras.
— E quem é essa sua amiga? — perguntou, abrandando a careta e se aproximando mais da companheira.
— Se chama Samantha, é a filha do tio John.
— Ah… Ele já falou dela pra mim, mas nunca nos vimos.
Rebecca assentiu.
— Samantha tava estudando na Capital. De vez em quando ela volta pra passar a temporada em casa — disse, sem conseguir esconder de seus olhos o carinho.
Pedro encarou a Lua por um longo breve instante. Estava pensando no que fazer. “Se aquilo era tudo o que ele se referia com ‘te enganei’, então não era nada demais”.
— Desculpa. Eu me aproximei de você no banquete porque achei que podia te usar. Q-quer dizer… Você era estrangeiro e parecia estar só de passagem, então… e-eu…
— Espera — interrompeu. — No início lembro de ter ficado desconfiado mesmo. Só que não me lembro de você citando isso, nem de ter tentado me manipular. Então como exatamente fez? Como me enganou?
— Hum?
— Explique-se — Ele vociferou rápido, contudo sem perder a calma.
A garota gaguejou por alguns instantes, balançando de leve o corpo e corando as bochechas. Na realidade, apesar do pedido, não sabia como dizer o que deveria dizer. Então apenas disse.
— Eu desisti.
— Ah, desistiu, é?!
Ela fez que sim.
— E-eu… ehr… quer dizer…
— Diga.
— Eu me apaixonei por você! — falou rápido, como se quisesse se livrar daquelas palavras.
“Que clichê”, comentou Pedro consigo mesmo. E era verdade. Desistir de aplicar um golpe por se apaixonar pela vítima era roteiro típico de filme francês, e eram estes que ele mais odiava.
— Tá…
— Hum?
Sem saber o que dizer, eles apenas se encararam, esperando uma resposta de sei lá onde, dita por sei lá de quem. Dois minutos assim se passaram, quando a ansiedade os venceu.
— Vamos voltar pra Vilazinha, Meu Bem?
— V-vamos.
Ele a puxou, entrelaçando os dedos por entre suas mãozinhas. A garota se sentiu amparada, apesar de não ter escutado a contradeclararão que tanto ansiava.
— Eu também estou apaixonado por você — murmurou ele, quase que como um sussurro.
A garota sorriu, dizendo em resposta, no mesmo tom:
— Eu aceito…
Pedro sorriu.
— Que bom… Assim não precisarei procurar outro apoixo.
— Hum? — Ela não entendeu. — O que seria um “apoixo”.
Ele sorriu de novo, dessa vez rindo, enquanto explicava:
— Um “apeixo” é um apoio de queixo em formato humano. É uma das principais funções da namorada.
A beliscão veio quase que no automático, mas sem dor. Foi, afinal, o ato final da cena, o fechar das cortinas daquele belo show que só as estrelas veriam.
…
Mais a cima no mapa, passando pela cordilheira central, e mais a frente, após duas grandes colinas a noroeste, bem na cabecinha da Península, estavam seis viajantes.
O vento ventava e a brisa fresca dançava, como se anunciando o auge da primavera, verdadeira rainha daquelas terras. No chão, as árvores balançavam suas cabeleiras, suave e docemente, como se competindo para ver qual delas tinham os mais belos tons de verde, seduzindo aqueles que passavam.
Infelizmente, Beto não parecia ser um grande fã da natureza, já que no momento derrubava as madeiras que via pela frente, limpando tudo o que conseguia com a machadinha.
Meia hora depois e uma pequena cabana estava de pé, em meio à clareira recém-aberta pelo aventureiro dragonark.
— Comandante Beto, com certeza nunca vi antes alguém com tal perícia em escotismo. Meus parabéns! — dizia o diplomata da República, não muito surpreso. — Caso desista da vida de batalhas, acho que o oficio de pedreiro lhe renderia montanhas de dinheiro.
Beto acenou, como se pensasse na possibilidade, contudo olhou para seu habitual pingente e logo descartou a idéia.
Neste mesmo momento, interrompendo o dialogo que sequer iniciara entre Demeter e Beto, três silhuetas adentraram a clareira, fazendo muito barulho com sua conversa fiada.
— Ahhh, chefe. Você tinha que ver, o Hari ali é um verdadeiro animal. Mal, mal vimos o cervo e o psicopata arremessou o machado.
— É o jeito mais fácil de matar alguma coisa, Bert. Qualquer filhote de lebre nortenha sabe disso. Afinal, eu mesmo já matei tantas assim, elas devem ter espalhado a notícia. Hahahaha!
Ao canto, uma sombra mais fina olhava frio para a dupla. Em seu olhar estava uma mistura de deboche e nojo, era o que sentia quando na presença dos dois.
— Ele partiu o cervo em dois, na barriga… Nem sequer se deu ao trabalho de mirar na cabeça. Só ouviu o cervo… e jogou… na barriga…
O murmúrio raivoso de Lerina, que meses atrás seria algo no mínimo incomum, estava se tornando cada vez mais constante na presença da trupe. Sem nem perceber, ela estava falando mais. Ainda era pouco, todavia era bem mais do que quando encontrou-se com Beto a primeira vez.
Com palminhas breves, o jovem dragonark acalmou a todos. Depois, deu instruções a eles, ordenando a Harold e ao jovem arqueiro que dessem meia volta e lhe trouxessem outro cervo, dessa vez inteiro, de preferência. Também pediu à curandeira que lhe trouxesse certas ervas. E continuou lá, com o diplomata, terminando de arrumar seus abrigos.
Já escurecia, quando um outro jovem retornava ao acampamento na clareira. Era Lerr, o espadachim, encapuzado e dirigindo-se em direção ao líder.
— Consegui as informações que pediu.
Beto balançou a cabeça, indicando que ele continuasse.
— Duranto tem muitas defesas, como o diplomata disse. Três muralhas, algumas dezenas de postos de defesa e patrulha para todos os lados. Não parecem estar em alerta, mas vi algumas pessoas estranhas entrando.
— Pessoas estranhas? — questionou Demeter, sentado numa cadeira de madeira feita por Beto.
— Não são de Erula, nem do Principado, ou da República. Pelo sotaque, provavelmente são de…
— Eburove — interrompeu o capitão. — São emissários de Eburove.
Eles se encararam por alguns instantes.
— Precisamos investigar mais, descobrir o porquê de estarem aqui. Talvez seja algo trivial, como uma tentativa de comércio, mas o mais provável é que estejam atrás de apoio para invadir a República — explicou Demeter, enrolando os cabelos, pensativo.
Beto foi até a mesa improvisada e acendeu a lamparina. Após, tirou um pedaço de papel de sua bolsa e chamou Lerr.
— Desenhe um mapa do que viu. Pode ser útil mais tarde.
— Sim, senhor.
Logo em seguida ele se virou para o diplomata.
— Amanhã você encontrará o rei. Pedirá uma audiência e entregará a carta. Pedirei que Lerr e Bert o acompanhem. Harold e Lerina ficarão aqui, protegendo o acampamento e esperando.
Ele assentiu.
— Mas e o senhor, comandante Beto?
O sorriso frio que recebeu por si só já era uma espécie de resposta, contudo Beto explicou:
— Vou descobrir o que esses emissários eburordianos vieram fazer em Erula.