Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 98
Naquele dia o sol se escondia por entre as nuvens. Estava nublado, o que marcava o fim da primavera e o início do verão, estação das chuvas e das colheitas em Mea.
O casal de jovens retornava alegre de sua viagem romântica. Vê-los era quase que uma festa para os olhos dos habitantes daquela pequena vilazinha.
— Vejam! É o lorde! — comentou um policial municipal de guarda.
Os demais se reuniram com o aviso, ficando em posição de sentido. Uma formalidade militar para a recepção de seu chefe.
À frente, um oficial se posicionou para ajudar a leide e também para cumprimentar o baronete. Ele fez posição de sentido quando Rebecca de modo cortes dispensou a ajuda.
— Senhor!
— À vontade, Bob. Diga-me: como ficaram as coisas quando eu tava fora? — disse Pedro, pulando da carroça. — Hmmm… Vou precisar de tinta marrom agora, esse disfarce não me serve mais.
— Senhor? — Olhou confuso, mas Pedro indicou que deveria continuar com o relatório. — Creio não saber bem dos detalhes, mas o Plano de Metas que o senhor nos deu… Tivemos um certo problema ao implementar as melhorias.
Ainda pela rua, cumprimentando os habitantes com acenos a palminhas, o rapaz ouvia atento ao relato do oficial. Ele parou por um breve momento, com uma interrogação estampada no rosto.
— O que houve?
E o oficial de plantão não ousou se atrasar em sua resposta.
— Enviamos pessoas para extrair a terra e desviar o rio, como o senhor pediu. Todavia os nobres da região souberam e agora várias e várias cartas começaram a chegar, exigindo que parássemos, ou sofrêssemos as consequências.
— E vocês pararam? — perguntou.
— Não, senhor. Fortalecemos a escolta dos obreiros e continuamos.
Pedro olhou de volta com um sorriso divertido.
— Ah, então nós sofreremos as consequências, é? Hump! — disse, acariciando o queixo. — Envie os nomes dos malditos pro Jonson, diga a ele pra escolher uns dez ou vinte bons de briga e cobrir todos esses nobres safados na porrada.
O oficial se assustou com as ordens, mas aí se lembrou que eram de Pedro. Escondeu o sorriso e fez uma continência, dizendo, antes de partir:
— Ah, senhor… Mais uma coisa. Esses dias um velho de uns cinquenta e poucos veio aqui, vestido em trajes de mordomo e dizendo que queria ver a leide. Íamos expulsá-lo, mas o velho é muito bom de porrada… Enfim, ele mostrou o símbolo da casa da leide e então deixamos ele ficar. Deve estar esperando pelo senhor e a leide.
O rapaz achou aquilo curioso. Esse mordomo… Ele não se lembra de tê-lo visto antes? Muito vagamente, parece. Ele não tinha muita presença.
— Bom, Bob, muito bom. Obrigado.
Após dispensá-lo, Rebecca veio a seu lado, acelerando levemente o passo.
— Alfred deve ter notícias de meus pais. Imagino que a esta altura devem ter chegado aos ducados. Já fazem alguns meses que partiram, afinal.
O companheiro assentiu, tocando a mão da garota e correndo com ela direto à casa. Pelo caminho viram o desenvolvimento da vila nestes últimos meses.
Os boatos de melhores condições de vida e segurança fortaleceram a imigração e agora várias casas foram ou estavam sendo construídas, dando uma paisagem levemente mais urbana do que a de outrora, há cerca de meio ano, quando ele assumiu o comando do lugar.
As bases das polícias e o prédio da Associação agora eram os mais altos, com três e quatro andares, respectivamente. Além disso, havia uma espécie de teatro, onde aconteceriam os espetáculos e também um posto médico, que serviria de hospital.
O capital roubado dos nobres e gaudérios com certeza foi muito bem empregado, servindo para o usufruto e o bem maior de todos os moradores do domínio do jovem baronete.
— Vou ter que pedir um relatório completo pro Jonson e a Janete depois, também tenho que falar com a velha Martha. Mas eles estão indo bem pra caraca… Parece que nem precisam mais de mim — comentou.
Rebecca sorriu.
Em seguida os dois pararam. Em suas frentes estava o grande sobrado, com dois soldados remulus à porta, fazendo a segurança.
— Dominus! — bradaram.
— Requiem! — disse, mandando-os descansar.
Ao entrar pela porta, contudo, outras cinco pessoas entraram pelos fundos, saudando-os.
— Meu lorde. Como o senhor está? Como foi a viagem?
— Leide Rebecca. Posso ajudar com essas bagagens?
Eles sorriram, felizes pela hospitalidade costumeira de seus subordinados. Entre eles estavam os jovens da polícia civil, Pastor, Poodle, Chihuahua e companhia. Contudo uma presença em específico surpreendeu Pedro.
— Velho Mark? O que cê tá fazendo aqui? — perguntou, sem esconder os sentimentos.
— Jovem lorde. Espero que tenha aproveitado a viagem. Quando recebi sua carta dizendo que voltaria, decidi vir pessoalmente para conversarmos sobre alguns assuntos. Vim disfarçado, então é uma visita não-oficial.
“‘Alguns assuntos’, em…? O que será que o véio quer? Se bem que eu não passei pelos domínios do irmão dele. Será que é isso, o véio tá puto?”, refletiu, tentando chegar a uma conclusão.
Guiando todos até a sala, Pedro pediu um remulu que guardasse sua bagagem e em seguida preparou um chá. Serviu a todos e iniciou a conversa.
— Com licença, gente; com licença, Amor. Vou procurar Alfred e ver que notícias ele tem de meus pais.
O rapaz assentiu, despedindo-se da amada com um selinho. Depois, voltou a pegar a xícara com o líquido recém-fervido e voltou a atenção para os presentes.
— Então… como foi o progresso enquanto eu não tava?
E foi assim que uma conversa chata e técnica se iniciou. As jovens autoridades de mais alta patente da vila iniciaram explicando sobre os avanços no Plano de Metas. Tudo estava indo conforme os planos, em breve poderiam avançar para o último estágio da primeira meta.
O relatório deixou o baronete feliz. Ele realmente poderia confiar a vila a eles quando fosse à Confederação. Havia somente um detalhe que Jonson não poderia tratar sem consultar Pedro, e por isso esperara até então.
— Estes foram os criminosos que mantive presos. Dissidentes gaudérios, assassinos e um ladrão de calcinhas, meu lorde.
Pedro parou a xícara na metade do caminho. Por ser o senhor daqueles domínios, apenas ele poderia mandar executar as penas mais severas, motivo pelo qual o alto-oficial de Vilazinha esperou, apenas mantendo os criminosos encarcerados.
— Eu os condeno à morte por decapitação — disse, decretando o futuro dos detentos.
Jonson olhou-o complacente, um pouco surpreso.
— Até o ladrão de calcinhas, meu lorde?
— Principalmente o ladrão de calcinhas! — exasperou. — É o pior de todos!
O jovem então deixou a xícara em cima da mesa, levantou-se e foi se dirigindo à porta. Virou-se na direção de Mark e continuou:
— Venha comigo, velho. Vou executar esses safados enquanto você me fala mas desse banquete de sessenta anos do príncipe.
O velho se impressionou um pouco com a crueza do jovem nobre, mas manteve o olhar sereno. Ele já sabia como Pedro era em relação àqueles que considerava inimigos. Sequer animais de corte poderiam ser comparados. Animais de corte ainda tinham alguma utilidade, afinal.
Cerca de vinte minutos depois e cinco pessoas além do jovem senhor, de Mark e do franzino Diretor do Departamento Criminal estavam no pátio da polícia. Outros sete seres estavam ajoelhados, mas estes não poderiam entrar na contagem. Não eram mais seres humanos pelos padrões do lorde.
— M-mas… eu só roubei uma c-calcinha!
— Ora, ora… Não sabia que vermes também falavam — comentou, em tom de deboche. — Roubar uma calcinha é roubar a dignidade de uma dama. Reflita melhor na próxima vida, sim?
Pasft!
— Bom, deixa ver se eu entendi, Mark: Então Ed vai ir com uma comitiva pra capital e eu vou junto, mas depois, pra encontrar vocês na metade do caminho?
Ele fez que sim.
— Mas por que isso?
— Isso é porque quase toda nobreza do oeste tem medo de sua pessoa, jovem lorde. Depois da rebelião, vários boatos foram se espalhando. Estão dizendo que o senhor arranca corações pelas costas usando apenas o punho e depois cozinha com leite quente para comer no jantar.
Pedro expressou surpresa. Seus subordinados, também.
— Arrancar corações com a mão… — murmurou um policial. — Esses velhos realmente exageram muito, senhor.
“Essa parte é verdade”, pensou Mark, testemunha do fatídico ataque à Vilazinha de um ano atrás.
— Entendi — comentou Pedro. — Então Ed quer reunir os safados primeiro, dar-lhes o alívio de saber que eu não vou. Pra depois eu aparecer no meio da jornada e deixar eles na linha, com medo e dispostos a ouvir tudo o que o Ed disser…
Mark fez que sim.
— Perfeito. Façamos assim então.
…
Mais tarde, quando se reencontraram, Rebecca estava um tanto apreensiva, e decidiu informar Pedro da novidade.
— Meus pais voltaram para os ducados. Parece que o patriarca os chamou.
— O patriarca?
— Sim, meu avô.
Ele ajeitou o roupão. O cabelo molhado e os vestígios de tinta revelavam o que fazia. O quarto era grande, com um corredor lateral em formato de “L”, onde o rapaz estava.
— Não deixa a toalha na pia, pilantra — avisou Rebecca, que por sua vez passava o que parecia um creme na pele.
Ele estava assentado sob uma escrivaninha rosa repleta de apetrechos de mulher. Tudo o que uma jovem de família nobre poderia portar.
— Okay, okay… Mas, voltando ao assunto, não entendi o porquê do seu mordomo ter vindo. Tipo, não era só falar isso por cartas? — disse, jogando a toalha sobre a pia.
— Pode pegar essa toalha, já! — retrucou a mocinha. — Isso é porque ele tinha uma mensagem muito importante pra mim.
— Que seria? — perguntou outra vez, pegando a toalha da pia.
— Eu também fui convocada pelo patriarca. Terei que ir à Tróus. Voltarei com Alfred para os ducados, pra saber o que ele quer.
Isso sim deixou o rapaz completamente surpreso.