Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 99
— Você tem certeza que eu não posso ir?
— Sim, Amor. Infelizmente só quem tem sangue lunar pode entrar nos ducados… — explicava a jovem, um tanto abatida.
Esse sangue lunar de que Rebecca falava era a nacionalidade dos ducados. Tróus em especifico era o país da garota. Seu avó era o duque, senhor daqueles domínios. Quem nascia ali não gostava de estrangeiros, principalmente os do lado ocidental da Cordilheira Continental.
A realidade era que a garota não fazia idéia de onde Pedro vinha, todavia sabia que não era dos ducados. Ele não tinha a tonalidade de pele, o sotaque ou os trejeitos dos lunares. Então não poderia entrar neles.
— E em quanto tempo você volta? — perguntou, sem esconder o desgosto e a inquietação.
Rebecca parou a arrumação de suas malas e se virou para ele, que estava na cama. A luz do verão adentrou o quarto naquele momento, iluminando a garota pelas costas. Ela demorou cinco segundos para pensar em uma resposta.
— A viagem é muito longa e difícil. Temos que nos infiltrar pelo ocidente e contornar a cordilheira pelo sul. Em tese, uns três meses pra ir e mais três pra voltar, e isso comigo e Alfred na velocidade mais rápida que conseguimos.
Desta vez foi Pedro que se manteve pensativo. Já fazia mais de um ano que deixara o clã, ou seja, ainda tinha quatro anos antes de ser obrigado a voltar. E ele ainda teria de ver a Confederação e aprender magia.
Se tivesse que esperar por Rebecca, demoraria pelo menos mais meio ano para ir ao seu destino inicial. E assim restaria apenas três anos e meio para aprender a arcana. Isso sem considerar o tempo que demoraria para chegar lá e também o tempo que demoraria para se deslocar de volta ao Clã.
Era um dilema. O rapaz não queria deixar a noiva sozinha. Temia que, se fosse para a Confederação, ela teria dificuldade em encontrá-lo e vice versa. Mas também precisava e queria aprender mais sobre magia. Ele só dominava três ou quatro feitiços e todos serviam única e exclusivamente para destruir coisas. Não conseguia curar ou fazer utilidades com o que sabia e isso o frustrava bastante.
— Você tem mesmo que ir?
— Sim — respondeu com a voz firme.
Os dois se olharam por um breve instante, quando Rebecca se aproximou ainda mais e, sentando-se, começou a falar:
— Olha… é difícil explicar. Mas, resumindo, voltar pra o núcleo da família é tudo o que meu pai deseja. Ele já passou por muita coisa e… ehr… Se eu puder ajudá-lo, me sinto na obrigação de fazer. E-eu vou voltar, juro! Mas tenho que fazer isso.
Pedro respirou fundo, contendo seus anseios e a saudade prematura. Contudo pegou nas mãos da noiva e soltou leve o ar, que junto levou todas as suas inquietações e medos. Eles se amavam e queria o destino que ficassem juntos. Disso ele sabia. “Então, por que devo ter medo?”, pensou.
E ele estava certo. Se era vontade do destino que se separassem por alguns meses, então que assim fosse. Mas voltariam a ficar juntos, e ele sabia disso. Afinal, iriam se casar.
— Tudo bem. Mas leve os remulus de escolta.
Ela o encarou sério, dando uma risada de ironia. Rebecca claramente era muito mais forte que os remulus de Pedro.
— Entendi, entendi… Sem remulus então, mas não ouse não se comunicar comigo. Mande cartas, mande muitas cartas! — disse, puxando-a para seus braços.
— Tá bom. Hehe…
— Ah… e sobre aquele assunto, o da sua amiga. Deixa comigo. Verei com Ed o que podemos fazer pra ajudar Samantha.
Ela sorriu, agradecendo com um abraço gentil.
Enquanto o casal trocava carícias, aproveitando os últimos instantes antes da despedida, um grande encontro acontecia ao nordeste, no Continente.
…
Aquela era uma cidade muito grande e muito bonita. Não só bonita, mesmo os artistas mais renomados haveriam de concordar, aquela era uma cidade com um quê de divino, uma cidade celestial.
Quase tudo era feito de mármore. Ruas, pilastras, prédios, monumentos… Mas o que mais chamava atenção era o palácio no centro da cidade. Talvez dezenas de metros de altura e dezenas de quilômetros não fossem o suficiente para descrever suas dimensões.
E era em uma das salas deste grande salão que se encontravam dois personagens relevantes o suficiente para mudar os rumos da história de Solaris e de todo o mundo.
Um deles usava uma batina limpa e branca, com luvas da mesma cor e uma máscara cobrindo-lhe a face. Suas feições singelas e corpo magro escondiam a autoridade que carregava, dando-lhe um ar de mistério.
— Presto minhas reverências à Sua Santidade e um voto de paz à Vossa Eminência, pois cumprimos nosso dever — disse, curvando-se levemente à figura em sua frente.
O jovem ao lado fez o mesmo. Seus cabelos castanhos estavam mais curtos e ele também vestia uma batina, embora mais simples e com menos adereços que a do outro homem.
— Minhas reverências à Sua Santidade; minhas reverências à Vossa Eminência.
A pessoa com quem falavam estava assentada em uma cadeira grande de couro cinza, atrás de uma grande mesa do que parecia ser madeira nobre.
— Bom, Prelado. Você e seu acólito conseguiram algo bem interessante dessa vez. Já li as cartas, então dispenso o relatório. Mas me diga, por que, pelas barbas de Sua Santidade, o nome desse explosivo se chama “carta precatória”?
O homem no centro da sala ficou um pouco desconcertado, entretanto explicou:
— Até onde sabemos, Eminência, esse foi o nome casual que os pagãos deram ao objeto. Alguns, dentre a nobreza pagã, também chamavam de trinitrotolueno. Contudo creio que isso se deve à influência dos hereges da Confederação.
— Malditos hereges! — comentou, batendo o braço na mesa. — Pois bem, trataremos de alterar o nome, rebatizando-o de… que tal “carta divina”?, bem como de apagar a história de que os pagãos de Mea inventaram isso com ajuda dos hereges. Ouviu?!
O prelado mascarado concordou.
— Sim, Eminência. O que ocorreu em realidade foi que, sob as ordens de Vossa Eminência, o Segundo Arauto da Sagrada Igreja, eu e o acólito Felipe ficamos meses pesquisando e então o poderoso Solis nos abençoou com uma fórmula divina para a guerra contra a heresia, a “carta divina”. Qualquer outro composto similar não passa de uma mera tentativa de copiar a graça do Deus Solis, um ato odioso dos pagãos.
O Arauto sorriu.
— Gostei da história, Prelado. Gostei muito da história! Haha! Mas lembre-se de adicionar que isso só foi possível pela inconteste e incansável ajuda de Sua Santidade, o Patriarca. Assim não corremos o risco de desagradar Sua Santidade.
Ele concordou. O arauto então retirou um bolo de papéis de uma de suas escrivaninhas e pegou uma pena, rabiscando palavras incompreensíveis.
— Pois bem, leve isto com você. E lembre-se de apagar os rastros dessa jornada.
— Sim, Vossa Eminência.
Ele fez uma outra reverência e se virou com o acólito para deixar a sala, mas foi impedido. Enquanto se retiravam, o Arauto os parou, dizendo:
— E lembre-se também, Prelado… Nunca esquecemos de recompensar aqueles que contribuem com nossa causa. Isso vale para você também, acólito.
Felipe continuou sério, fingindo um sorriso falso, enquanto refazia a reverência e se retirava conjuntamente com seu superior.
Quando saíram da sala e se distanciaram o suficiente, Felipe abaixou um pouco a guarda e decidiu perguntar ao prelado algo que o incomodava.
— Senhor, o que Sua Eminência quis dizer aquela hora?
O prelado se surpreendeu.
— Ora, Felipe. Eu espero que gostes de lutas e estratégias complicadas de batalha…
— Senhor?
— Por acaso já ouvistes falar das bênçãos do Deus Solis, Felipe?
Ele balançou em negativo a cabeça.
— Então isso vai ser bem interessante.
…
Fazia sol em Mea. Naquele dia Pedro saiu cedo de casa. Infelizmente, sua cama vazia o fez ter noites não tão agradáveis de sono. Ele se sentia bem no calor, mas o frio da ausência da amada congelava o corpo e o espírito.
Em suma, seu humor estava péssimo. O que trazia consequências horríveis a quem quer que fosse que o desagradasse, considerando seu já natural temperamento explosivo.
Naquele dia em específico seria quando se reuniria com a comitiva de Edward para o banquete do príncipe. Depois desse evento, deixaria Mea para ir à Confederação aprender magia. Em meio ano voltaria para ver como as coisas estavam e buscar Rebecca. Tudo estava planejado em sua mente.
— Tsc! Seria muito melhor se ela viesse comigo. Maldito velhote safado maldito!
Engolindo o descontentamento, o rapaz seguiu seu caminho para a Cidade Willblood, a capital de Mea. Na metade da estrada deveria se encontrar com a comitiva, então iria à passo normal, montado em sua égua mansa.
“Por falar em Dalila, como será que Celine está?”, perguntou-se. Fazia tempo que não via a jovem adestradora de cavalos. Sua avó havia dito que ela saiu em uma viagem. Às vezes a jovem fazia isso, segundo a boa velinha.
Pedro resolveu só deixar isso de lado. Se era verdade, então ela voltaria. Ele precisava de sua professora de cavalos.
— Hmmmm…. Velho Mark disse pra ir com um traje de galã, mas não tenha essa caceta. Onde será que consigo um desses?
Percebendo que não teria tempo, contudo, decidiu apenas seguir seu caminho com as roupas que tinha. Levou também uma pequena maletinha com um conjunto que encomendou antes.