Sina de Guerra! Ou Como uma Garota Projetava Fantasias - Capítulo 1
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- Capítulo 1 - A "Casa Perdida"
Algum dia de agosto do Ano Santo de 1841 | “Floresta da Permutabilidade”, Vice-reino da Platina
Para a maioria das pessoas era difícil descrever “o lugar em onde o real parecia ficção e a ficção parecia realidade”, ainda mais complicado era pôr em palavras o que realmente ocorria naquela floresta da fronteira da com a capitania do Chiloé. Aquele canto remoto do interior do vice-reino aparecia indicado nos mapas como um ponto de interrogação, já que quem se animava a cruzar tais terras nunca mais era visto; ou, era o que diziam.
Os contos e lendas do interior narram que ali, no ponto de interrogação, encontra-se uma casa, escondida entre as intermináveis fileiras de árvores que cobrem o território. A única forma de chegar lá, dizem, é consultando os espíritos que se comunicam através da natureza. O que isto quer dizer? A resposta variará de interlocutor para interlocutor.
— Bem, acho que estou perto… Se eu der mais três passos para a direita…
Ao conseguir chegar até lá, o viajante encontrará uma grande casa em estilo visigodo; uma rica obra de arquitetura, feita com pedra, aparelhada de forma regular, era caracterizada pelas janelas arqueadas e lancetas com treliças de madeira, porta ornamentada em arco e o telhado feito de cerâmica. Era fácil encontrá-la, se procurasse identificar a fumaça da chaminé que era vista à quilômetros.
— Viu? Eu disse que sabia como chegar. É só seguir as pistas, estamos perto!
Para quem se aventura, afirmam, é de suma importância saber a natureza específica destes espíritos, e o principal: não se deixar enganar. Não eram incomuns relatos de que chegar até a fumaça era impossível, ainda que os rituais tivessem sido seguidos à regra. A conclusão mais acordada era que: mesmo que fossem de extrema importância, os rituais só valeriam se o aventureiro tivesse a graça das entidades que ali habitam…
— Sim, sim… entendi, Kuntur. Não precisa dizer de novo!
Em outras notas, alguns espíritos eram descritos como brincalhões e que gostavam de enganar quem tentasse afrontar o desafio de cruzar a floresta para encontrar esta misteriosa casa, outros já seriam mais formais e alguns… tremendamente perigosos. Todas as variáveis, na maior parte das vezes, dependiam da intuição do viajante. Como explicavam, esta era uma floresta onde a ficção parecia real, e a realidade parecia ficção.
— Bem, já que a gente está aqui, só falta cruzar a barreira que aquele velho careca criou.
A provável pergunta do possível viajante seria: “porque alguém se daria tanto trabalho para chegar a um lugar tão remoto e passar por tantos perigos, só para encontrar uma casa perdida ao sul das florestas antinas?”. Qual seria o atrativo desse lugar? E para quem?
Algumas pessoas específicas nascem no mundo com habilidades que lhes permitem interpretar a realidade fora do contexto “normal”. Em outras palavras, essas pessoas nascem podendo ver “por dentro” da interface que rege o mundo: conseguem enxergar, literalmente, “os fios” que tecem a realidade como ela é de verdade, por detrás da realidade que veriam normalmente. Conseguindo vê-los aos fios, podem transformar o mundo físico ao redor “furando a realidade” e “puxando” estes fios para fora. É como se pudessem manusear diretamente as entrelinhas daquilo que separa a construção da materialidade, da materialidade em si mesma. Tal prática, é chamada de “Projeção da Fantasia”.
— É só abrir esse vão e… — O som de notas, que se assemelhavam às de um clavecino, ecoaram pela floresta assim que os dedos pequenos da garota acariciaram as cordas brancas do outro lado do plano físico — Sinceramente, não foi difícil alterar essa configuração, não é mesmo?
Essa casa, “perdida” para alguns, pelo menos não era para quem conseguia projetar ou tinha conhecimento sobre o mundo espiritual. E Rumina era uma dessas pessoas. Ela sempre escutou as lendas sobre a floresta quando criança, e assim nutriu uma curiosidade intensa pelas coisas que ela percebia, ou às vezes “sentia”, e que estranhamente ninguém conseguia reparar.
Ela sempre foi uma criança “imaginativa”, diziam seus pais. Sim, era possível afirmar com alguma tranquilidade que fosse um pouco normal que crianças desenvolvessem amigos imaginários e que interagissem com eles de diversas formas no curso da infância. No entanto, no curso da infância de Rumina, essa situação começou a ficar reprochável e incômoda já que a recorrência dos amigos imaginários não cessou; quer dizer, era impensável para os pais dela que sua filha fosse louca, ou algo do tipo! Se não interviessem de alguma forma, sabe-se lá o que poderia ocorrer com sua filhinha, ou até mesmo, com eles…
A vizinhança, atenta, poderia mal interpretar tudo e avisar às autoridades coloniais, e se assim seguisse: os “homens de vermelho a levariam numa sacola!”; ou, era o que costumavam dizer para sua filha ao tentarem repreendê-la, ainda que fosse uma triste realidade. Talvez essa seria a frase que a menina mais escutaria durante toda sua infância, depois de: “pare de trazer insetos para dentro de casa Rumina!”.
— Tu é bruxona mesmo! Não esperava menos de ti. Quer dizer, já faz quanto tempo que tu vem aqui e consegue descobrir o caminho e a configuração, um par de vezes apenas? Tu realmente tem talento! — dizia um condor miniatura batendo as asas perto da garota.
— É… talvez? — Enquanto caminhava a menina lembrou de algo. — E, essa piada.. ela é bem de mal gosto né…
O condor franziu a testa, fazendo uma expressão de culpa.
— Bem… é verdade que a gente sempre recomenda que você não converse com espíritos e numes na frente das autoridades ou em qualquer lugar em particular… Mas isso não quer dizer que você não deva fazer isso quando necessário.
— Como por exemplo, agora, né? Ah, nem precisa dizer Kuntur. Eu sei, tô cansada de saber…
— Você sabe que a gente faz isso pelo seu bem.
— É, eu sei. — A garota puxou um fio branco do “nada” com o dedo indicador. — Sabe o que é Kuntur? Se eu for ser uma “bruxa” demoníaca para eles, vou ser a bruxa mais terrível e poderosa que eles possam conhecer! Podem vir tentar me pegar! Muahahahah! Hehehihihihi! — A garotinha tentava imitar a risada bisonha de uma bruxa.
A barreira que separava a realidade da casa do “mundo palpável” tinha sido “desbloqueada” para eles, fazendo com que eles pudesse “cruzar” para lá, faltava apenas encontrar o idoso, carinhosamente chamado por Rumina, dentre muitas outras coisas, de “velhaco”.
A passos lentos, a menina passou pelas árvores e arbustos e a casa visigoda lentamente surgiu. Quem a visse da perspectiva de um dirigível, vislumbraria uma ilha de grama num mar de árvores se estendendo até o fim do horizonte. Mas é óbvio que não poderia existir um dirigível, não naquele espaço liminal.
Rumina se aproximou da porta e, batendo duas vezes, fez ressoar o som da madeira pela floresta.
“Toc, toc”. Dez segundos passaram e nada aconteceu; nenhum sinal de vida.
Perdendo a paciência, Rumina chutou a porta com força, umas três vezes, para ter certeza que se escutasse.
— Ei, velhaco! Eu sei que você tá aí, abre a porta logo! Tu não sabe o trabalho que sempre é pra mim chegar nesse meio do nada! Tive que ficar conversando três horas de novo com o Trauco até ele me dar a direção até aqui. Aquele maldito nume pervertido…
O eco dos gritos foi para todos os cantos, mas o silêncio continuou, apenas as árvores dançavam ao vento. Foi apenas quando Rumina decidiu que era hora de quebrar a porta, que o som abafado de alguém tossindo surgiu à distância.
Assomando sua cabeça pelo lado lateral da casa, uma janela aparecia meio aberta. Rumina, sem pensar duas vezes, correu em direção à janela, já sabendo a razão detrás das duas não aparentes coincidências (não eram coincidências, obviamente).
— Isso, isso… — Um velho homem mexia os braços de um lado para o outro. — Este rifle tava dando-me dor de cabeça, mas é hoje que faço-o funcionar!— Continuava a murmurar enquanto mexia em algum objeto feito de madeira.
O homem estava sentado de frente a uma oficina, cheia de bugigangas e artefatos metálicos. Vendo-o por trás, era possível perceber que ele tinha uma volumosa barba cinza, era meio corcunda e tinha alguma coisa que lembrava cabelo na parte anterior da cabeça. Ele vestia um longo casaco segurado por três grandes cintos e levava no rosto um monóculo mecânico.
— Ei, velhaco. Deixa eu entrar.
Antes que percebesse alguma coisa, ela “surgiu” dentro da sala principal da casa. Os móveis rústicos davam um ar de nobiliarquia para o lugar, ao mesmo tempo que faziam experimentar uma espécie de sentimento que era tranquilizante e nostálgico. Embora, o cheiro do tabaco de ervas aromáticas fosse absurdamente abafador.
Este tipo de tratamento entre os dois não era anormal, já que o velho se assemelhava a um patrono para ela, uma espécie de mentor, por mais estranho que o personagem fosse.
Indo em direção ao fundo da sala, o cheiro começava a ficar mais forte, era óbvio que o velho estava fumando seu cachimbo de novo; uma prática recorrente.
Rumina se assomou pela porta da oficina.
— O que você tava fazendo que não escutou meus gritos ali de fora?
— É… ela realmente ficou irritada amigão — complementava Kuntur, no ombro da garota enquanto tentava esconder as gargalhadas com a asa.
— Ora pois… Estava resolvendo algumas coisas aqui. É mais, vosmecê pode entrar facilmente, não vos ensinei a maneira correta?
— Talvez…? — A garota revirou os olhos em desconfiança de si mesma. — Ah… mas não é assim tão fácil como na teoria!— Rumina definitivamente, não lembrava.
— Pois bem, mocinha, deve de estar cansada. Senta-te no sofá que vou trazer algo para que tomes.
— Um chá-mate?
— Está certo — respondeu o velho, dando duas leves pitadas no cachimbo.
Assim que o idoso se dirigiu à cozinha, a garota não conseguiu aguentar o cheiro da fumaça do cachimbo e levantou do sofá, abrindo uma por uma, todas as janelas da oficina. Jesus, como ele aguenta isso?
— Ei, olha isso, Rumi! — disse Kuntur que havia voado para a mesa da oficina, apontando com uma das asas para o vulto de algo coberto por um pano.
— Então, era isso que o velho tava aprontando?! Hum… ei velhaco, o que é isso daí? Hein, hein?!
Da cozinha, o som de metal da chaleira estremeceu pelas paredes da casa.
— Deixe isso no seu lugar, sua danadinha, que não pode tocar!
— Deixa eu ver!
— Não!
— Deixa, deixa, deixa!
— Pare de ser caprichosa menina, iremos discutir temas seríssimos hoje. Não é por nada que chamei-lhe aqui. Isso de ali, é assunto para depois. Fique quieta!
Depois de conseguir coar o chá felizmente, sem ter perdido a habilidade apesar dos anos, o velho colocou-o na xícara e a levou para sala, finalmente repousando-a na mesinha de centro.
A conversa, ou mais bem, a aula, estava prestes a começar.