Sina de Guerra! Ou Como uma Garota Projetava Fantasias - Capítulo 13
- Início
- Sina de Guerra! Ou Como uma Garota Projetava Fantasias
- Capítulo 13 - Jogo Sujo
17 de junho do Ano Santo de 1847 | Interior do condado de Santíssima Trindade, Campo de Batalha | 1000h
Era uma manhã especialmente fria, com um vento do sul que parecia indicar que o inverno começava a se preparar para adentrar nos campos e planícies da colônia da Platina. Em uma cabana militar, nas cercanias do campo de batalha, Victorica encarava o capitão rival. Ambos pareciam estar ao tanto das consequências da batalha, mas parecia que havia algumas questões que ainda não estavam resolvidas.
— Vejo que escolheu ótimos cadetes para seu grupo, capitão… vou ter o prazer de vê-los sendo varridos como lixo para fora dos ranques da APAT… — A garota visigoda dava um sorriso perverso. — Dito isto, causa-me muita curiosidade… ainda não consigo acreditar que vosmecê iria tão longe para tirar-me do cargo. Isto é retribuição, pelo uso dos barris de um esquadrão amigo para treinamento? Isso é sério? Não o imaginava como um cabeça quente. — A capitã sorria, incrédula. — Eu sei que há algo mais detrás de tudo… o simples fato do momento ser tão… inusual, ou melhor, inapropriado, é… inesperado para alguém de sua sagacidade. — Ela não dizia isso sendo sincera, mas não custava nada adicionar alguns cumprimentos para tentar tirar algo do homem à sua frente. — Afinal, em duas semanas já sequer estaremos aqui capitão… Diga-me a verdade, quem o convenceu para fazer-me frente? Badajoz? Ou talvez…
Gervásio se levantou da cadeira, com uma expressão confiante no rosto.
— Badajoz? Não me faça rir. Esta ação vem direto de mim. Eu sou um homem de princípios e morais, e você me enoja. É assim de simples. O quanto antes a ver fora do comando de uma unidade crucial para nosso exército, melhor. Seus privilégios como nobre visigoda fizeram-a perder a cabeça por completo, se acredita que não haveriam consequências em suas atitudes. É uma questão de higiene organizacional e moralidade do exército, nada mais, nada menos.
— Huuum… “morais”, “higiene”… — A garota sorria. — Vejo… És um homem que realmente se preocupa com o exército e o Império de verdade. Um verdadeiro capitão modelo. — A capitã, pôs-se de pé, mas ao contrário de Gervásio, ela se dirigiu à porta, de saída. — Fique atento às facções com que vosmecê confraterniza capitão, calavera no chilla[10].
Ela diretamente apontava a clara contradição entre o que ele havia dito e a suas práticas deploráveis de manejamento e seleção de personal militar, afinal, era evidente que tinha cadetes no seu esquadrão com historial de mau comportamento e desempenho acadêmico pífio comparado com a média de cadetes coloniais.
Para Victorica, apesar de não conhecer o capitão até recentemente, o homem claramente aparentava ter uma inclinação política que não deveria ter. Mas no exército colonial todavia não existiam regras claras sobre muitas coisas, por isso todo tipo de problemas se resolviam através de regras morais não escritas, troca trocas entre superiores e favoritismos de todo tipo. Era o “jeito columbino” de fazer as coisas, e essa era uma cultura que nem as instituições mais “organizadas e pragmáticas” como o exército conseguiam escapar. Estava nas raízes de tudo.
O capitão retorceu o rosto e deu as costas à rival.
— Tsc! Digo-o a você, mulher depravada.
🕀🕀🕀
Um barril com uma pequena torre em cima com uma metralhadora, e uma torreta com canhão de 75mm na parte dianteira, se movia relativamente rápido pela estepe elevada do campo, cuspindo fumaça pelos canos de escape e rugindo os pistões do motor ao som retumbante das esteiras rolando sob a terra.
Com a bota, Rumina deu um leve coice no ombro de Florência; era o recado para que ela parasse o barril, elas já estavam na parte mais alta da planície. Entre as árvores, não demorou muito para que a escotilha da torre do barril abrisse. Assomando metade do seu corpo para fora, a comandante pôs seu olhar para longe enquanto colocava os os binóculos à frente dos seus olhos.
O que ela via era um arroio de não mais de 16 metros de largura, mas não parecia ser facilmente ultrapassável naquela área.
— E-esquadra Zugravescu em posição, grade D1 sem movimento, cambio. — Com um microfone na mão, a voz metálica de Rumina escoava pelo rádio de outro barril, do outro lado do campo.
— Recebido, mantenha a posição, câmbio e fora — respondeu a capitã.
Victorica, com metade do seu corpo saindo do seu barril, fez um gesto de avanço com o braço, indicando para que as duas outras comandantes a seguissem em direção à linha de árvores a 300 metros. Arrancando a todo vapor, os barris seguiram o rumo da capitã, logo atrás.
— É que nem a capitã disse, parece que eles vão usar a elevação para se esconder e provavelmente dar a volta por baixo, em vez de avançar pelo norte, e pegar a estrada direto para a colina… — dizia Nañary, ao lado da câmara de carregamento traseira do canhão.
— P-parece certo. As outras gurias da nossa seção de reconhecimento fizeram um bom trabalho vendo a profundidade do arroio lá em cima. Se tivéssemos tentado avançar diretamente pelo campo aberto e tentar pegar a estrada inferior para a colina… estaríamos completamente abertas ao fogo inimigo desde a grade E4. Que lugar mais ruim de começar ein, capitã Victorianininha.
— Heh, isso que Ayuna e as garotas dela pareciam estar “p” da vida depois que a capitã decidiu escolher nossa esquadra como reconhecimento ao invés delas. — dizia Dolores, com sarcasmo, sentada na mira do canhão.
Do lado dela, Nanãry deu de ombros.
— Ela é uma boa cadete, mesmo que pareça ser meio infantil as vezes, no fim ela realmente só quer ajudar o esquadrão.
Rumina, ainda com os binóculos, virou sua atenção para o campo aberto à direita da colina. Mesmo que tenhamos acertado na estratégia, eles ainda estão com a vantagem posicional. Nessa batalha quem chegar à colina primeiro é quem definitivamente vai ganhar, a defesa sempre ganha em uma batalha direta… ainda mais com o terreno alto…
Enquanto olhava, algo começou a se mover no horizonte. Rapidamente, ela levantou o microfone e puxou o fio com uma mão.
— Esquadra Zugravescu, vejo movimento na estrada; grade E4. Parece ser a fumaça de uma caldeira!
Victorica largava um sorriso jocoso do outro lado. Seus barris haviam avançado pela primeira linha de árvores e continuado pela borda dos densos e verdes arbustos até chegar ao norte da grade E5, agora, se esgueiravam pela linha de árvores da estrada.
— Se tentarem usar da estrada para alcançar a colina…
Os barris sob o comando da visigoda pairavam quietos, esperando apenas a ordem da capitã, assim que o inimigo fosse avistado.
🕀🕀🕀
Não muito longe do grupo da capitã que o enojava, Gervásio aparecia sentado em cima do seu barril, comendo uma maçã.
Um cadete masculino de aparência familiar chegou a pé, e fez uma saudação romana.
— Tudo pronto capitão!
O homem de cabelos desarrumados ajustou o quepe e jogou o resto da maçã mordida fora, entrando para dentro da escotilha aberta do seu barril.
— Até parece que iríamos ser tão previsíveis assim, capitã beberrona…
À comando dele, os barris avançaram rumo ao norte.
🕀🕀🕀
O som de metal raspando e uma explosão abrindo uma cratera a poucos metros do seu barril fez Rumina se esconder mais rápido que um coelho numa touca.
— AAAAAAAAH!! Mas q-q-que foi isso?!
Com uma expressão amedrontada, Florência não esperou um segundo e arrancou o blindado em marcha ré, inclinando-o para o lado, tentando escondê-lo para trás da elevação ao lado da linha de árvores.
— E-eu preciso de visão! Eu preciso de visão! — exclamava Rumina ao se assomar na parte superior da sua torre, tentando ver pelos visores.
Outra explosão fez centenas de pedaços de terra se espalharem por cima e do lado do barril das garotas.
— Ei… — Ñanary apontou para fora, olhando pelo visor lateral, o tamanho da cratera que a explosão deixou — Não se supõe que eram para ser munições especiais?! O que caralhos eles atiraram na gente!?
— “Munições especiais”, não tá vendo? — respondeu Dolores, com expressão incrédula. Sem mais, a garota forte segurou a alavanca de tiro e se aproximou da mira. — E aí, fracona, qual é a situação?
Não deu dez segundos e Rumina recebia o contato da capitã.
— Esquadra Horinondo, para todo o grupo de combate, alterno de situação, repito, alterno de situação! — O som das esteiras rolando no chão a todo vapor e tiros de canhão reverberaram pelo rádio do grupo de combate inteiro. — O maldito desgraçado usou uma fogueira como distração e dois barris nos emboscaram por detrás! Estaremos a nos reagrupar no setor E5.
Merda! Pegaram elas também?
Evitando ir pelo centro da estrada, os três barris do grupo de Victorica rolavam a todo vapor por uma floresta, fazendo manobras evasivas de um lado para o outro, enquanto os barris em movimento que as perseguiam tentavam acertar continuamente os barris fugitivos. Apesar de terem suas armas apontadas na suas traseiras, o movimento brusco dos barris faziam com que atirar e acertar em movimento fosse uma tarefa quase impossível.
Notando a situação complicada, um dos barris fugitivos começou a mudar de caminho. Era Lília.
— Não, capitã. Eu vou distrair eles, somos três contra dois. — exclamou pelo rádio de forma incisiva.
Com a mão no gatilho da metralhadora, Lília rotacionou a torre para trás e começou a atirar as balas de mentira no barril que a perseguia, desviando o rumo ao campo denso de arbustos e mato. Victorica não teve outra que aceitar a decisão unilateral da cadete mais proficiente do esquadrão, mas no fim, ela fez a escolha certa.
Vendo isso, os barris inimigos pararam a perseguição e começaram a retroceder, já que se não o fizessem, corriam o risco de ter aquele de Lília estático, com seu canhão otimamente calibrado apontado nas suas culatras. Um pesadelo para qualquer barril sem uma torre giratória com um canhão apropriado.
No entanto, do outro lado do mapa, a situação ainda estava tensa e parecia haver um grave impasse.
— Capitã, a situação aqui em cima é a mesma, e-estamos sendo pressionadas por dois barris. — A garota agora, falava também para sua esquadra. — De alguma maneira, ambos vieram do norte… No momento estamos encurraladas no canto da estepe em B4…. e-e eles estão aparentemente utilizando munição explosiva! O que vamos fazer?!
— Estou ciente, Rumina… — Victorica se assomou para fora para avaliar o estado do campo. O barril dela e o de Stratagemma haviam parado, e agora davam meia volta. Não tem culhões, esses covardes! Querem nos matar e destruir os barris no processo?! O que diabos Gervásio está pensando? Ele é tão estúpido assim?!
— C-capitã! Sua ordem! — A voz nervosa da garota do outro lado não podia evitar apurar a visigoda, esperando uma ordem para retroceder.
Ainda pensativa, a garota de lisos cabelos loiros tentava colocar tudo em ordem na sua cabeça, agora já não havia volta atrás. Sabiam que estávamos a esperá-los no ponto mais fraco e…
No entanto, algo na interação anterior com os barris que as perseguiam clicou na cabeça dela fazendo-a ficar seriamente alerta.
Não, espera… se eles já planejavam usar munições explosivas desde o início, aquele covarde só poderia ter elaborado uma estratégia assim se tivesse conhecimento de antemão que iríamos fazer uma pinça pelo sul e pelo norte e acabar com isso na própria colina…
— Fierosa! Retire-se imediatamente do norte de C3 e dê suporte à Rumina, sua posição já está comprometida.
— Entendido capitã. — A garota deu um leve coice na sua motorista e seu barril lentamente começou a sair do esconderijo em direção à colina onde estava Rumina. Era uma jogada perigosa, mas agora não havia outra alternativa. Se ela se mantivesse perto da colina sozinha, provavelmente acabaria cercada pelo inimigo.
Ainda segurando o microfone do rádio, agora ela se dirigiu para a outra garota.
— Rumina, mantenha-os ocupados até que os reforços cheguem e atraiam-nos até a colina, custe o que custar. Acredito em vosmecê.
— O-O-O… O Q-QUÊ?!
— Lília, continue curso até a entrada da linha de árvores e mantenha a posição no extremo de D4…
Desde a colina a fumaça verde de um sinalizador subia em direção ao céu avisando a todos que os rivais, ou melhor, os agora inimigos declarados do grupo de Victorica, estavam sob controle do forte no topo.
— Se eles irão jogar sujo, nós iremos também.
Nota de Rodapé
[10] “Caveira não chora”, é uma expressão rioplatense que se pode traduzir como “se tu fez algo errado, não se lamente depois que (naturalmente) sua decisão resultar em consequências ruins”.