Sina de Guerra! Ou Como uma Garota Projetava Fantasias - Capítulo 17
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- Capítulo 17 - A traídora (II)
17 de junho do Ano Santo de 1847 | Interior do condado de Santíssima Trindade, Campo de Batalha | 35 minutos desde a captura da colina
Uma detonação atrás da outra fazia o chão da terra se partir em mil pedaços e voar pelos ventos. E tudo o que estava causando isso fora a simples ideia de encaixar um projétil de canhão no acelerador de um barril sem tripulação que agora subia lentamente a colina. De perto, e por trás, um segundo blindado, este tripulado pela esquadra de Victorica, o seguia, usando-o como cobertura das minas.
— Eu não acho que o barril de Stratagemma vai aguentar muito mais… — observava Galore, vendo o blindado na sua frente pular de um lado para o outro ao passar por cima das minas explosivas.
Cravando paus no chão, Virgínia e as garotas de sua esquadra seguiam o barril de Victorica de perto, amarrando e esticando uma corda branca entre os paus, para deixar evidente o caminho livre de minas.
— Eles não tiveram muito tempo para armar este projeto de embuste. Não deve haver muito mais de dez metros de minas. — A garota soluçava. — Olhe, já estamos na metade. — Ela respondeu a sua piloto pela rede de comunicação interna do barril.
Com as bochechas rosadas, e assim como o condutor de uma orquestra, Victorica escrevia uma larga linha de códigos dourados pelo vento, arrastando os dedos de forma graciosa, quase como uma dança. Esses códigos que apareciam, logo começavam a desvanecer e ser deixados atrás com o movimento do barril.
O plano que Victorica tinha em mente era simples: tomar o forte da colina sem usar os barris. Sabendo que Rumina e Elena haviam resolvido o problema das duas unidades inimigas que haviam de alguma maneira vindo pelo norte e poderiam pôr em perigo a estratégia anterior, o “jogo” agora havia se nivelado um pouco para seu lado, sobrando apenas três unidades de Gervásio e a outra mais, com lamentável traição de Lília. Dominar a colina ainda seria um feito complicado sem um plano de ataque conciso da fortificação. Por hora ela só podia seguir em frente e primeiro passar pelo campo de minas, para criar um caminho de chegar perto dos última defesa de Gervásio, escondendo-se no forte no topo da colina.
— Assim que chegarmos ao forte, temos de ter certeza que todos os barris de Gervásio estão num raio de 50 metros, senão as coisas irão se complicar para nosso canto… — Uma gota de suor acariciava a bochecha rosada da capitã. — Se tivermos sorte, as donzelas de Gervásio estarão juntinhas como ratos morrendo de medo de ter suas balas evaporadas, da mesma forma que parte dessas minas…
Ter que calcular o radio de cada explosão e o acionar o expurgo da matéria é exaustivo… As linhas douradas de códigos seguiam atravessando a realidade e iluminando por onde surgiam. O mais incômodo é que não consigo eliminar completamente a onda de choque já que devo esperar que a mina exploda para saber onde ela está… a este ritmo o barril vai perder as esteiras a qualquer segundo.
Foi só pensar na tragédia que ela ocorreu, quase como uma profecia autorrealizada. “Tchin!”, uma das cadeias que mantinham a esteira do barril firme se soltou, fazendo-o deslizar para a esquerda. O barril rolou para fora da estrada, explodindo mais minas no caminho, até bater uma árvore e parar de se mover por completo.
— É até onde chegamos com aquele… — O barril de Victorica desacelerou até ficar imóvel na estrada. Com um braço levantado com o punho fechado, a capitã indicava às garotas que haviam estado seguindo a pé, para que mantivessem sua posição. — Agora é conosco.
Victorica ajustou o quepe militar e respirou fundo. Fechando a escotilha superior, ela desceu do seu posto e se aproximou à parede lateral, logo atrás de Galore.
— Isso é brincadeira, né? — disse a municiadora, Picota, de olhar escarlate, vendo sua capitã descer da torre para dentro do barril, ao lado delas.
— …Melhor se segurar de alguma coisa, Picota. — Segurando um cano na parede, Hector tranquilamente avisou.
Colocando sua mão sob a parede, com tranquilidade. A visigoda sentiu a superfície áspera e a temperatura morna do metal. Finalmente, ela fechou os olhos e tentou sentir o barril como se fosse parte dela.
Com um toque no ombro da piloto, ela ordenou.
— Acelere fundo. Agora!
Galore entendeu o recado, com um braço no volante e esticando outro para trás, ela abraçou a barriga da sua capitã e a segurou no lugar, antes de pisar a fundo no acelerador.
Não deram sequer dois metros em movimento e a primeira mina explodiu, fazendo o barril saltar. À medida que o barril avançava a todo vapor, diversas minas começaram a explodir e a desaparecer, uma atrás da outra, até que enfim mais nenhuma surgiu.
Rápida e fugazmente, por sorte ou por dádiva, o barril havia conseguido passar quase intacto pelas minas.
— Uf! É isso capitã, sempre confiei na sua capacidade e astúcia! Saímos ilesas! HAHAHAH!
— Não… — Hector se virava e apontava para o rádio. — Água pingava do receptor, que havia sido molhado quando um reservatório de água fria fora furado em uma das detonações. — Isso é o que uma falha de planejamento na engenharia faz…
— Bem, pelo menos conseguim- — Mas antes que elas pudessem cantar vitoria, a capitã foi interrompida pelo ricochete de um tiro.
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— Capitão, perdemos contato com duas unidades… é muito possível que tenha havido algum problema com o equipamento de rádio… ou tenham perdido para aquelas garotinhas do reconhecimento…
— Tsc, impossível! A culpa certamente deve estar naqueles macacos idiotas que não devem saber sequer como configurar os canais. Aqueles imbecis… se não tivessem sido indicados para a academia nunca estariam alí. — Gervásio, tomando uma xícara de café, maldizia os subordinados desde o assento do comandante, ao espiar pelo visor da torre. — De todas maneiras, o mais preocupante no momento é aquela bêbada sem vergonha, eu tenho certeza que ela irá fazer de tudo para chegar até o forte. Mas nós estamos preparados para o que aquele presente de consolação do imperador é capaz de fazer…
O barril de Lília chegava lentamente em direção ao forte, e já a distância, era possível ver o estandarte verde de Gervásio flameando no vento numa das robustas paredes de pedra, estampado com uma cruz preta dentro de um retângulo branco. Ao dar a volta pelas ruínas do forte, a fim de poder se esconder nas defesas das suas muralhas, Lília já se preparava para descer e indicava a sua piloto que posicionasse seu barril com o canhão apontado em direção contrária, de onde suas antigas companheiras certamente viriam enfrentá-las uma vez mais.
— Cadete Lília se apresentando, sr. capitão Gávea — dizia com seriedade, a garota recém chegada.
Tentando manter o contato visual com Gervásio desde o chão, ela precisava manter seu pescoço erguido em direção a torre do barril “aliado”. Ver ela apontando o braço em direção ao horizonte com o corpo rígido e em prontidão, deixava evidente a qualquer espectador sua posição, mas não só hierarquicamente. Emocionalmente, sua expressão séria e aparentemente em prontidão, na verdade escondiam por dentro uma Lília moída por dentro pela exaustão de tentar racionalizar constantemente na sua cabeça seus sentimentos em relação a sua situação e a “morte” de Rumina: “É isso, não há outra opção a não ser continuar; esse é o caminho que decidi seguir; é o caminho que devo de seguir”. Para ela, o mantra era o único que a mantinha sã até o momento.
— Você fez um ótimo trabalho, garota, dando-nos informações sobre a estratégia e posições inimigas. Uma inteligente escolha, de fato. Aquela capitã sem vergonha é um erro que nunca deveria ter acontecido nas colônias, ou melhor, no império… Sei que você também entende… Essa batalha é apenas o começo do trabalho que nós, Faustistas, estamos realizando para retificar a história dessa nação em decadência. Visigodos como ela são o câncer do nosso sacro-império. E você pode ficar tranquila, assim que aquela bêbada desajuizada for eliminada, você terá sua devida recompensa e seu pai estará orgulhoso da sua decisão. Agora, volte a sua posição, garota…
Encarando o capitão com seriedade e altivez, de alguma maneira, ela mantinha o pouco ar de honra que todo militar deveria ter. Entretanto, aquilo tudo era evidentemente uma fachada para Lilia, e isso se mostrava na sua expressão carcomida e morta, que faria qualquer um perder a graça ao perceber que o que ela sentia e pensava por dentro era totalmente o contrário do que suas intenções e atos de “lealdade” ao capitão queriam passar.
Meu pai nunca se orgulharia disso, mas eu não me importo…
— Entendido! Sr. capitão Gávea. — Lília novamente prestou uma continência romana antes de dar meia volta e tomar rumo ao seu barril, posicionado atrás de um muro levemente arruinado.
Não posso hesitar, se eu falhar agora… depois de ter perdido tudo, já nada mais vai valer a pena…
Depois do período caótico das guerras civis entre 1822 a 1833 que inflamaram o continente columbino de norte a sul, a situação econômica e social nos territórios reconquistados pelo Império Visigodo haviam se deteriorado a um nível jamais visto desde o começo da colonização e das guerras contra os impérios nativos. Mas isso também surgiu como uma oportunidade para o surgimento de diversas famílias de colonos que viram suas fortunas aumentarem ao investirem nas colônias. Claro, era um investimento evidentemente arriscado, visto que se bem as terras eram quase dadas de graça, ainda existia muita turbulência entre as elites locais, já que muitas foram deslocadas, perdendo sua influência, propriedades e poder, e dando lugar à delinquência, falta de insumos e a pobreza generalizada, isso sem contar com as elites que foram completamente dizimadas por sua lealdade aos provincialistas e idealistas rebeldes, realçando o vácuo de poder e a instabilidade pós-guerra civil. De toda forma a reconstrução do continente foi um sucesso, pelo menos para alguns…
Meus bisavós sacrificaram tudo para garantir uma vida de sucesso nas colônias, abandonaram sua vida cômoda na Yuropa e apostaram por mais. Esse sempre foi o espírito da nossa família, sempre apostar em novos horizontes, ir além. Nunca se acomodar.
Entre os beneficiados e novas elites locais, a família de Lília surgiu das cinzas do pós-guerra como uma de colonos sortudos com investimentos em terras e propriedades no sul do continente, na Platina. Mas isso não era tudo, com o advento e impulsão de novas concessões às colônias pela metrópole, após uma série de políticas de distensão em 1840 para agradar as elites locais da Columbia pós-guerra civil, uma nova “oportunidade” surgiu para uma possível indústria de motores local, agora que a colônia não era mais limitada a produzir apenas matérias primas. O pai de Lília pensou que a deusa da sorte estava do seu lado, e esse era definitivamente o futuro da família Del Alma no continente.
Não culpo meu pai, ele não estava completamente errado. Uma fábrica na colônia, todo mundo acreditava que era inútil no começo, que não renderia frutos. Mas tudo mudou com as políticas da metrópole que queriam parecer compreensíveis e de bom coração, após as guerras civis.
Entretanto, a sorte é uma faca de dois gumes, como te dá, ela também te tira. E como a história conta, um castelo fundado em cartas segue sendo apenas isso, um castelo de cartas. O vento da história soprou para o lado da metrópole e as incipientes indústrias do continente não conseguiram aguentar as forças das rédeas de um império que sempre puxa para o norte, e nunca para o sul.
No fim, foi um investimento que custou tudo e levou a nada… Pensando bem, os burgueses antigos talvez estivessem certos desde o início da guerra… Não havia chance de nenhuma aventura fosse dar frutos nas colônias, onde tudo é controlado pelo império. Os visigodos nunca dariam a liberdade de fazermos o que bem entendêssemos aqui. Regras retorcidas a favor deles e impostos abusivos, tudo isso resultou em anos de dívidas e compromissos quebrados… Não culpo meu pai. Ele não tem culpa em ter sonhado que uma indústria na Colúmbia era possível, e ter investido tudo. Esse era o sonho não só dele, mas de uma geração inteira de burgueses… mesmo que eles soubessem que era muito difícil, o primeiro sinal de distensão do império os fez cair de cabeça num investimento, num sonho que sempre tiveram e nunca puderam realizar.
Indo de volta a sua posição, caminho ao seu barril, a determinação de Lília emanava na sua forma expressão corporal ao caminhar, dura, altiva e confiante. Ainda que não fosse visigoda pura, sua família crioula[11] era descendente de peninsulares e mantinham com orgulho o sangue nobre que sobrenome “del Alma” representava, mas também o espírito burguês que se cultivou na Yuropa e que conquistou as terras columbinas com seus investimentos.
— Eu preciso resolver esse problema, nem que me custe a Alma — murmurou, Lília, para ela mesma.
Nota de Rodapé
[11] Historicamente o termo, na América espanhola, se referia originalmente a descendentes de espanhóis puros europeus na América. Especialmente no contexto de aristocratas e nobres. Por exemplo, Simon Bolívar, o libertador da Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia e parcialmente o Peru, tinha pais crioulos e era crioulo ele mesmo, é dizer, “espanhol nascido na América”. Apesar da aristocracia crioula ter influência econômica e política nas colônias, eles geralmente eram mal vistos no continente europeu pelas elites e aristocracia da capital, já que naquela época nascer na Europa era símbolo de sofisticação e a América era uma terra de gente “bárbara” e “não civilizada”. Era uma questão de status. Dessa forma, os crioulos não tinham muita voz na Espanha europeia.