Sina de Guerra! Ou Como uma Garota Projetava Fantasias - Capítulo 2
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- Capítulo 2 - Profano Novo Mundo
Depois da revelação que surgiu em 1833 com a morte do Libertador e os segredos que foram entregues aos vanguardas das células rebeldes, a situação nas colônias mudou drasticamente, com a instauração do serviço militar obrigatório para todas as pessoas que cumprissem dezoito anos de idade e a intensificação da caça às bruxas. Para Baúrgeins, agora era a hora certa de começar a preparar Rumina para o futuro. Se bem a menina era ainda muito jovem, ela precisava saber sobre a história do continente que a criou a partir da visão dos rebeldes; seria lamentável perder uma garota com tanto potencial para o Santo Ofício e o exército, e ele sabia muito bem o que poderiam fazer com o potencial dela.
— História.
— O quê? — perguntava Rumina, transportada agora para o sofá da sala.
— É disso que vamos estudar hoje.
— Achei que tu ia me contar alguma coisa interessante!
— História é interessante, e importante também! — retrucou o velho, enquanto abria um enorme atlas do mundo. — Pense bem, mesmo que eu lhe dissesse qualquer outra coisa que quisesses saber sobre o mundo, vosmecê não entenderia nada por completo. Tudo tem uma razão, por isso primeiro temos de separar as coisas das palavras, e para isso a história é sublime!
— Vixe! O velho começou a ficar empolgado! Olha como ele tá falando — comentou o pequeno condor subindo as sobrancelhas em tom jocoso.
— Por favor, não, não, não! — dizia, com vergonha do que iria ver, já que para ela, como toda criança nessa idade, esse tipo de teatro que a fazia sentir tratada como “criancinha”, era digno de vergonha alheia.
— Então…
Assim que o som das últimas letras ecoou para fora da garganta do velho, um emaranhado de fios brancos saíram do vão que este fez surgir por cima do atlas, redesenhando um mundo não palpável, uma fantasia trazida a realidade que imergiu toda a sala e deu vida às palavras que Baúrgeins começou a pronunciar. Era como se estivessem revivendo a história como um filme.
— No ano 1500, quando os yuropeus começaram-se a estabelecer e explorar os continentes recém-descobertos da Arcádia e da Colúmbia, os primeiros colonizadores encontraram povos que já viviam nestas terras. Eles fizeram a suposição de que eram os descendentes originais de Adão e Eva, afinal, andavam seminus ou completamente nus pelas terras do que começaram a chamar de “Novo Mundo”. Assim, esta gente vivia uma vida, muitas vezes, como caçadores-coletores. Porém, com o tempo, os colonizadores yuropeus perceberam que os nativos, os quais começaram a chamar de inídios, acreditando ter chegado à Inídia no outro lado do globo, faziam rituais estranhos e conversavam com “o vento”.
— Caçadores-coletores?
— Eles viviam dos animais da selva e dos frutos das árvores e da terra, não plantavam comida como a gente — informou Kuntur.
— Hum… E então, quer dizer que falavam com os espíritos também, né?
— Exatamente, isso mesmo! O problema estava em que tanto para os visigodos quanto para os angelinos, isto não lhes agradou muito. Então, quando começaram-se a perceber as “coisas estranhas” que estavam acontecendo com alguns dos seus homens, e viram os inídios praticando feitiços e coisas inexplicáveis, aos seus olhos, sua percepção sobre eles mudou num instante. — O velho estalou os dedos. — “Puff!” Eles já não eram mais “descendentes de Adão e Eva”, eram compactuantes do demônio! Os mais novos hereges e pagãos, mas agora, no Novo Mundo. Não muito diferentes de outros povos do Velho Mundo, que também praticavam rituais e interagiam com seus próprios espíritos há séculos.
— Tem numes no mundo todo, hum, não sabia…
— No entanto… existiu um “porém” quanto ao tratamento destes recém descobertos povos da Colúmbia e de Arcádia. À diferença dos colonos angelinos, que à medida que ocupavam os territórios expulsavam de maneira brutal os povos com canhões e metralhadoras se estes não aceitavam “seus termos” de realocação para dentro do continente, os visigodos, por outro lado, foram um pouco diferentes no uso das mesmas armas, já que a partir do momento em que descobriram a projeção entre inídios, surgiram-lhes um “divina” revelação. Um dia, um missioneiro foi contatado por uma dádiva celestial, revelando aos seus que um mensageiro de Deus teria dado aos visigodos uma missão, uma “décima cruzada”; a última delas. O mensageiro teria dito que: “Naquelas terras desconhecidas e longínquas o mal já havia chegado e as corrompido, era missão dos visigodos limpá-las das suas impurezas”. Tudo começou-se a encaixar, o “desvio” para a terra nova tinha motivo, era para purificar e converter os continentes para o arianismo[1]. Mas não só isso, “não”, eles titubearam, “a verdadeira missão é purificar… não só o Novo Mundo, mas o mundo inteiro em sua totalidade!”.
— É por isso que a projeção é proibida então…
— Não só é proibida a projeção, mas qualquer tipo de relação com espíritos, numes e quaisquer coisas não-humanas. Todo tipo de relação com entidades fora da jurisdição da Bíblia é objeto de castigo e conversão pela Inquisição! Mas, mais importantemente, isso começou-se a intensificar desde que se descobriram dois impérios inídios no continente e como os exércitos desses impérios usavam estrategicamente os pactos com deidades através da permutação para a guerra.
— Permutação é aquela coisa que eu faço com o Kuntur, né? Pra poder usar as projeções com o poder dele, né? É o que me faz ser bruxa, né? Hehehehihihi!
Baúrgeins olhou para Rumina, e para Kuntur, achando estranho o que a garotinha estava fazendo.
— Nem me pergunta, ela que começou a dizer que é bruxa hoje de manhã — respondeu Kuntur, ao olhar do velho.
— É algo mais ou menos assim, Rumina… Na verdade, a permutação é a troca da força vital que surge da vossa fé e transfere-se a vosso nume, que é o Kuntur, por hora… — Apesar que ninguém tenha conhecimento certo da natureza deste tipo de pacto, nem mesmo as deidades que o praticam…
— Sequer pense em fazer pacto com outros numes, hein! — Kuntur arreganhou a garotinha.
Rumina se fez de boba, como quem podia fazer o que quisesse, o que levantou uma reação negativa do condor que começou a picotar a cabeça dela ao voar ao seu redor agitadamente.
— Atenção seus animais!
— Ei, eu sou uma deidade!
— Já deu velhaco, a gente nem consegue mais prestar atenção, viu? Chato demais! Mostra pra gente o que tu tava fazendo lá trás agora, hein? — Rumina levantou do sofá e saiu correndo para o fundo, em direção a oficina, desfazendo a projeção de filme histórico que Baúrgeins levantou do mapa.
— Ai, ai… — O velho tutor suspirou fundo.
O condor voou em direção ao ombro do patrono da garota.
— Dá um desconto para a menina, ela vai entender a importância de tudo isso que fazemos com o tempo. Eu tenho certeza disso, já vivi de tudo e um pouco mais…
— E eu que sou o “velhaco”…
— Não é minha culpa que tu envelheceu mal, hahahaha!
O velho tentou dar um tapa no pássaro, mas este já tinha tomado voo.
— Ora pois… chegou a hora de ensinar como mexer em armas, então.
Finalmente, o velho caminhou em direção ao fundo, tomado pela decisão de que não adiantaria de nada tentar forçar a garota a aprender algo que ela não queria no momento.
Com os dias, meses e os anos, a garota haveria de aprender diversas coisas viajando ocasionalmente, e em momentos oportunos, à floresta perdida cruzando as cordilheiras do Chiloé com ajudas que poderiam ser tidas como “mágicas” para alguns. Só ela e algumas pessoas específicas sabiam da existência do lugar, afinal, era a mesmíssima base dos rebeldes independentistas mais ao sul da colônia, mas ela só saberia disso no futuro.
Nota de Rodapé
[1]Não confundir com o arianismo racial que defendia o nacional-socialismo alemão. Na nossa linha do tempo (NLT) real, o arianismo originalmente surgiu como um pensamento filosófico e teológico que reinterpretava a Santa Trinidade. A filosofia era defendida pelo presbítero Ário de Alexandria, no Egito, durante o século IV a.C (por isso arianismo). Entretanto, o pensamento foi eventualmente considerado heresia pela igreja católica e ele acabou exilado, apesar de eventualmente ter sido reabilitado pelo Imperador Constantino I de Roma, em condição de que ele reformara suas ideias mais controversas (mas ele morreu depois, provavelmente por envenenamento de seus inimigos, não se sabe direito). F in the chat.