Sina de Guerra! Ou Como uma Garota Projetava Fantasias - Prólogo
Mapa da extensão do Império Visigodo.
19 de novembro do Ano Santo de 1833 | Porto Infante, Vice-reino das Caraíbas
Um pálido homem escrevia suas últimas palavras, e assim como ele, era iluminado pelo brilho sumido de uma vela quase morta.
“Eis aqui que escrevo meu último memorando, para aqueles que ainda defendem os ideais da liberdade, do republicanismo e da fraternidade columbina. Com o conteúdo e os segredos revelados nesta carta, acredito que será possível, mais uma vez, quebrar os pesados grilhões que mantêm submissa e mutilada nossa Grande Pátria continental…”
Continuando a escrever a carta, com mãos trêmulas, ele acreditava deixar uma mensagem para as futuras gerações com a esperança de que no futuro elas carregassem, assim como ele teria feito nas montanhas dos Antis, a tocha da liberdade e o legado de uma sangrenta guerra de libertação que nunca encontrou conclusão no norte do continente columbino. Com um último suspiro, na solidão do quarto mofado, os braços do homem finalmente se deixaram cair na mesa, e assim finalmente, junto da vela, ele faleceu à cintilante sombra de sua própria glória.
Haviam-se passado dois anos desde que o primeiro e terceiro batalhões, os últimos salvaguardas do Exército de Libertação, e da incipiente República Columbina, tivessem sido completamente dizimados na batalha de Cartagénia de Inídias, no norte do continente, e também desde que o exército visigodo perdera de vista o grande Libertador do Novo Mundo, ou melhor, para os visigodos, o grande Impugnador do Novo Mundo.
— Encontrem esse maldito provincialista agora! Não quero saber de escusas! — bradava, do alto do estibordo de um navio recém ancorado, um comandante visigodo de bigode proeminente.
Quase imediatamente, e em uníssona afirmação, responderam os soldados:
— Sim, senhor!
Os homens fardados de branco marcharam cidade adentro, encenados pelo horizonte fumacento que produzia o navio de ferro encostado nas docas do porto da antiga cidade negreira.
A história que seguiu aquela incursão de 13 de novembro em Porto Infante, seria o fim simbólico da interminável batalha dos Antis, e o começo de uma longa história de intrigas que surgiria dos segredos que a carta do irreverente general revelaria aos visigodos, e quiçá alguém mais…
03 de dezembro do Ano Santo de 1833 | Citadela Gallega, Reino da Lusitânia
Acariciando seus pontiagudos bigodes lusitanos, o velho almirante Frenão de Bacalhau e Olivos, olhava impaciente para o adornado teto da capela. Haviam-se passado quinze noites e quinze dias desde sua partida das Caraíbas, e apesar do horário marcado, parecia que o seu importantíssimo convidado não chegaria mais, pelo menos, até uma sombra surgir do fundo da capela.
— Ora, ora, vejo que o renomadíssimo “Reconquistador” da Columbia não perdeu a garra apesar dos anos.
— Haha! E eu vejo que tu segues sem perder a oportunidade de dormir uma siesta, inquisidor-geral Frithila Aspar.
O mandachuva do Santo Ofício caminhou em direção ao seu antigo amigo e lhe deu um caloroso abraço, acompanhado de um aperto de mãos.
— Deixe de formalismos, irmão — disse, ao se afastar lentamente. — Agora, pois diga-me, um dos meus agentes têm informado-me que vosso destacamento de busca encontrou algo importante para nosso ofício, junto ao corpo do herege dos antis…
Frenão não conseguiu evitar demonstrar uma clara aflição no rosto.
— Direto ao ponto, general, exato… — Ambos sabiam o que realmente significava o fato de estarem se encontrando em uma pequena capela tão longe do centro da grande metrópole, Olissipona. — Pois bem, encontramos o Impugnador recém morto numa casinhola de uma negra livre. Raios! Se há algo que me arrependo de toda campanha é de não tê-lo encontrado vivo! O maldito escapou-me das mãos por questão de horas… — Rangendo os dentes, Frenão se recompôs depois de alguns segundos. — De todas maneiras, parece que o provincialista não deixou de lutar até o último momento, e agora teremos de lidar com a bagunça que ele deixou no continente inteiro. — O almirante entregou um envelope à Frithila.
O inquisidor segurou o envelope com lacre já aberto, e começou a tirar para fora os conteúdos.
— Só tu viste o que há dentro, certo? — disse, manuseando os papéis com os dedos.
Dois papéis terminaram de sair do envelope.
— Sim. Mas não há muito o que ler…
A expressão do homem que segurava o envelope na sua frente, ficou rapidamente séria. Os papéis que tinha retirado demonstravam ser duas cartas, aparentemente; a primeira, um memorando afirmando supostas informações; a segunda, a partir do que apontava o final do memorando, o que deveria ser uma lista com as supostas “informações”.
Frithila olhou diretamente para os olhos de Frenão.
— A segunda página está em branco.
O importante comandante da armada visigoda tinha vivido o inferno, na caça daquele homem na campanha do norte antino, por isso sabia que os conteúdos da carta geravam uma suspeita que estava em outro nível.
— Sim… parece ser que não há seguimento após o memorando que deveria revelar a informação sobre os supostos “segredos”. No princípio acreditei que tudo isto se tratasse de apenas mais um dos inúmeros chamados à guerra que este homem fez durante a campanha, ou um diário incompleto deixado de lado quando faleceu, tudo com a intenção de manter a moral dos poucos rebeldes desestruturados que sobraram no continente. Mas deparei-me pensando… nas condições que fora feito…
— O que sugeres com isto, Frenão?
O almirante caminhou em direção ao altar da capela, que continha uma bíblia e uma taça de prata, encarados do fundo por uma enorme cruz na parede erguendo Cristo.
— Este homem, ele estava à beira da morte, completamente rodeado pelas tropas da nossa armada e não havia forma ou chance alguma de que essa “carta” chegasse a ninguém, mesmo que tivesse alguma conexão com simpatizantes nas Caraíbas. Digo-te com a maior certeza, se há algo que aprendi a respeitar durante a campanha, foi a engenhosidade e astúcia do general provincialista.
— Vejo… por isso vieste a mim com este envelope — replicou, como se já tivesse entendido tudo.
— Exato, eu acredito que esta carta possa ter sido meio para algum tipo de projeção.
Sem perder tempo, o inquisidor deu uma boa olhada nas folhas da carta, como se estivesse tentando ver algo que não havia ali.
— Hum…
Depois de uns minutos inspecionando os objetos com uma mão, se aproximou do altar e retirou umas luvas do seu sobretudo escarlate; colocando-as nas mãos, molhou os dedos na água da taça prateada que ali descansava, e num rápido movimento, espirrou algumas gotas no papel que estava em branco.
Ainda segurando ambos papéis, ele iniciou um cântico, começando a fazer brilhar uma linha de códigos em letras godas por cima deles:
— “Então disse-me ele: Nela está escrita a maldição que está sendo derramada sobre toda a terra, porque tanto o ladrão como o que jura falsamente serão expulsos, conforme essa maldição”. — Surgiu no código, “𐌶𐌰𐌺𐌰𐍂𐌹𐌰𐍃 5:3”. — “Pois do coração saem os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as imoralidades sexuais, os roubos, os falsos testemunhos e as calúnias”. — A seguir, “𐌺𐍉𐍂𐌹𐌽𐍄𐌹𐍉𐍃 6:11”. — “Santifica-os pela tua verdade; a tua Palavra é a verdade.” — E finalmente, “𐌾𐍉𐌷𐌰𐌽 17:17”. — Amém.
Ao terminar o cântico com o sinal da cruz no peito, o brilho dos códigos começou a desvanecer, como se não tivesse havido efeito algum.
O almirante Frenão se aproximou, curioso.
— Estava eu correto?
O inquisidor ficou quieto por um momento, antes de responder.
— É pior do que tu pensavas, meu irmão. Não é possível saber dos conteúdos concretos da carta, mas isto já não importa mais.
Frithila mostrou a Frenão o rosto da página que segurava na mão, que agora continha uma série de inscrições queimadas no que antes era tudo branco.
— Se for verdadeiro o que está ali inscrito… parece que o imperador já fora contactado e sabe dos conteúdos. Isso quer dizer que a carta era apenas uma projeção para conjurar provocações inscritas diante do remetente? Ridículo!
— Sim, o imperador definitivamente fora contatado, mas veja. — O chefe da inquisição apontou para uma parte das inscrições no papel. — Aqui consta que a mensagem também fora enviada à rainha de Angelin e, ao que tudo indica, às células rebeldes restantes do continente. Não parece-me crível que a mensagem fosse uma mera provocação. — O inquisidor retirou as luvas e as guardou. — Quais “segredos” o herege gostaria que a rainha de Angelin, os rebeldes e o imperador estivessem a saber ao mesmo tempo? Nada disto parece ser bom. Preciso estar em prontidão para já, acredito que serei contactado pelo imperador e o papado em breve para pôr em pé uma missão de inteligência na Columbia, além de reforçar missões já existentes do Santo Ofício na purificação no continente.
O lusitano ficou intimamente desapontado com o que descobriu. Se bem é verdade que tinha más expectativas sobre o envelope, não acreditava que as consequências poderiam ser tão grandes como as que o inquisidor-geral revelaria a ele. No fundo, a motivação interna que o levou a se dar ao trabalho de desvendar o problema da carta por conta própria foi, logo chegar das Caraíbas, trazer as boas notícias para que o imperador soubesse o mais cedo possível, por sua boca, que o problema nas colônias fora erradicado. Apesar de tudo, parecia que no fim, a terrível descoberta indicava que seu trabalho na Colúmbia estava longe de acabar.
— Deveras, uma maldição que foi derramada por toda a terra… — disse Frenão levantando a cabeça, ao lembrar o versículo no cântico do inquisidor. — Verei-te nas colônias então, irmão. Agradeço teu auxílio.
— Só me trazes trabalho! — respondeu o inquisidor, fazendo graça ao balançar com a mão o ombro do almirante da armada. — Mas falando sério, o que tu acabas de me trazer hoje pode ser o fim do Império Visigodo como o conhecemos hoje…
— Talvez. Todavia, é possível que o império já não tenha sido mais o mesmo desde o surgimento desse maldito do Impugnador e as rebeliões que ajudamos a esmagar na Columbia…
No fim do dia, na frente da capela, ambos se entreolharam conscientes da seriedade dos fatos ali revelados, antes de se despedirem e tomarem seus rumos. Eles sabiam que haveriam consequências futuras na política imperial nas colônias, no exército e na política externa. Para o desgosto deles, o Impugnador tinha ganhado mais uma batalha, mesmo depois de ter perdido sua guerra. A guerra, agora, era sina dos que viriam no futuro.