Sua Alma Amada - Capítulo 27
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— Eu até fiz uma música sobre isso, me trouxe consolo e afago para alma — exclama Thome.
— Gostaria muito de ouvir sua música, se não te fizer mal é claro.
Thome fecha os seus olhos e seus dedos dedilham uma melodia suave, algo que se assemelha com uma correnteza calma e tranquila. A cada nota Zac se sentia mais próximo de um rio de água doce, ele então escolhe deitar não só metaforicamente e seguir o fluxo.
Quando criança
Nunca a vi sorrindo
Quando criança
Só a vi chorando
Uns tiveram acesso
A melhor parte
Já eu tive acesso
A parte que um dia se tornaria boa
Eles encontram amor
Eu encontrei a dor
Não entendi meu valor
Mas eles enxergaram a cor
No meio de tanta perfeição
O imperfeito nasceu
Mas ensinou a perfeita
O papel de uma boa criação
Me alegro que
Eu tenha chorado
Para que eles
Pudessem um dia sorrir
Assim como os meus olhos
Não foram capazes de ver
A beleza que ela tinha
O coração dela não foi capaz
De ver a beleza que havia dentro de mim.
— Um dia essa música gerou muita dor, mas hoje ela não me gera nenhum pavor. Eu apenas nasci em um lugar que nunca me enxergou e tudo bem porque também não os enxerguei.
— Você é muito forte, eu não sei se conseguiria pensar da mesma forma.
— Agradeço Zac, mas não foi por mim, foram duas pessoas que mudaram minha vida. E essa história que quero contar.
As dedilhadas aceleram um pouco, mudando drasticamente o ritmo, o som se torna muito mais pesado, entretanto usando o arco do contrabaixo ele produzia um som suave, o contraste entre o peso das dedilhadas e a suavidade causada pelo arco demonstra essa parte da história.
Dos dedos fluía linhas na tonalidade vermelho sangue e do arco saia linhas na coloração azul marinho. Todas as linhas se moviam seguindo o fluxo do vento, nem muito devagar e nem muito rápido, apenas seguindo a brisa suave.
No ar, as duas cores se misturam e como se fossem tintas acabam formando uma cor semelhante a de um vinho tinto, com uma textura aparentemente viscosa e bastante brilhante. A cor começa a se espalhar por todas as direções, permeando todo o lugar, as linhas, agora na coloração vinho, se estendem como se fossem mãos que procuram algo para segurar.
— Então Zac, essa parte da minha história é coberta por algo que nunca vi mas sempre senti o gosto e consequentemente o cheiro.
Zac vê uma linha vindo em sua direção, na ponta a linha se divide em 5 partes, que se comporta como uma mão que deseja se agarrar em algo sólido. Ela se movimenta tão rápido que Zac não consegue se desviar, a mão transpassa por ele.
Não gera dor alguma, Zac nem chega a sentir dor alguma, pois ele sabe que é apenas uma ilusão. Porém no momento que a linha tocou seu corpo ele sentiu um gosto amargo na boca e um cheiro que se aproximava de uma bebida que seu amigo tomava.
— Zac, no monastério nós trabalhamos com a natureza, temos plantações de vegetais, legumes, frutas e por aí vai. Tinha até um rapaz que era tão maluco quanto eu que ficava contando ervilhas hehehe, vê se pode.
As linhas chocam com uma parede invisível e sem encontrar um lugar sólido, apenas preenchem todo o ambiente com aquela coloração.
— Infelizmente como não podia enxergar, acabei ficando na parte das frutas, em específico em fiquei com a uva. Pois ela tinha um cheiro muito forte, e como não podia enxergar eu me guiava pelo cheiro.
— Ahhhh verdade, é esse o cheiro, o Dio tomava suco de uva.
Zac se vê coberto, todo o espaço está repleto de vinho. Ele até movimenta sua mão e percebe que tudo em sua volta se comporta como um tecido de cetim, mas que ao ficar poucos segundos em suas mãos acaba se desfazendo e passando por ele.
— Exatamente, eu era encarregado pelo suco de uva. E por diversas vezes acabava me molhando e ficava todo manchado, ainda bem que não conseguia ver. E como não conseguia ver, acabava que uma parte do suco ficava na vasilha que usávamos para moer.
No meio do vasto vinho, surge a silhueta de um rapaz na cor branca, o jovem se movimentava como se estivesse pisando em algo, pois a cada pisada é como se ele colocasse todo o sentimento para esmagar algo, a silhueta ficava andando em círculo.
— Por muito tempo esse era meu único papel, pisar em uma fruta, pois como monges zelamos pela saúde então tomar o suco da uva é muito bom. Mas durante boa parte da minha juventude, eu pisava com tanto ódio que não tinha como sair algo saboroso das minhas pisaduras.
A silhueta que outrora era branca de tanto pisar acabou se manchando com o suco da uva, o branco já não estava tão branco. O rapaz então após pisar, curva seu corpo e com suas mãos tenta limpar seus pés, mas acaba sujando ainda mais o seu corpo.
— Mas como te falei, o suco que estava sobrando nas vasilhas acabou ganhando outra cor e outro cheiro. Então decidi experimentar, porém Zac, o sabor doce deu origem a um gosto amargo que logo ia embora, mas felizmente surgia em mim uma falsa sensação de alegria.
A coloração vinho que permeia o ambiente, começa a perder o brilho, como se o suco fosse envelhecendo, a viscosidade acabou ressecando e a cor foi se aproximando do preto. E mais uma vez a silhueta estava envolto pela cor preta, tudo opaco e sem nenhum brilho.
— Durante anos tomava esse suco mais amargo, era a única coisa que podia fazer para deixar meus dias mais coloridos. Até que um dia meu mestre descobriu, mas ao invés de brigar comigo, ele veio até mim e me explicou o que estava acontecendo com a uva, ele disse que era um momento que eu devia passar.
Zac não consegue e nem sente necessidade de falar nada, pois de alguma forma ele sabe que precisa ouvir isso.
— Ele me falou sobre o processo de fermentação, que ocorre por causa de algumas leveduras presentes nas cascas das uvas e no ar. As uvas após serem pisadas entravam em contato com essas leveduras e formavam o que meu mestre chamava de álcool. E ele falou que eu estava assim, após ser pisado, minha pele estava dilacerada, eu estava exposto e precisava decidir o que fazer.
Enquanto tudo isso acontecia Thome continuava tocando seu contrabaixo, até chegar nessa parte, onde pela primeira vez o silêncio fez parte da trilha sonora. O vazio ecoou no coração dos dois, Zac percebe que Thome está chorando, um choro que ele conhece bem.
— Ele me perguntou se eu escolheria me afogar na felicidade da bebida ou lidar com amargo provocada por ela. Na hora eu não entendi muito bem, mas já tinha perdido muito tempo naquela situação então pedi ajuda para lidar com o amargo — Thome fala com uma voz bem embargada de choro.
No meio da escuridão surgem cinco silhuetas, quatro na cor cinza e uma na cor branca. E algo que Zac percebe é que eles se comportam como se estivessem em uma ventania muito forte, pois é possível ver a roupa deles se movimentando por causa do vento.
Thome começa tocar notas mais graves, que se assemelham a de trovões, o som se propaga no vasto preto e forma uma espécie de onda que emite uma pequena luz.
— E ele me deu a liberação de acólito, eu poderia sair por aí, como eu não tinha nenhum poder despertado, eu não poderia assumir tal cargo. Mas ele confiou em mim Zac, então me colocou na equipe de procura, quando soube disso até eu ri hehe, ele estava maluco, como poderia um cego procurar.
Só que enquanto as quatro silhuetas cinzas tiveram seu movimento debilitado e se prostraram perante a grande ventania, a silhueta branca não parava de andar, o vento contrário não impedia sua movimentação, ele pisava com tanta força, tal qual usava para esmagar as uvas.
— Na verdade, Zac, ele viu algo em mim que jamais fui capaz de ver. Pois como ele me disse uma vez, eu não precisaria procurar com os olhos, mas sim com os ouvidos, o nariz e com meu coração. Acabou que fui muito útil, eu conseguia sentir o cheiro e ouvir o som melhor que qualquer outro. Mas um certo dia tudo isso mudou.
A silhueta branca se distanciou das outras e nem percebeu, ele apenas continuou caminhando até chegar em um local muito íngreme, uma espécie de colina, mas para a silhueta branca isso não era nada. Ele subiu com certa facilidade, mas na metade do caminho e no meio da tempestade, ele começa a ouvir uma bela voz
— Como acólito, eu era enviado para ruínas e lugares onde poderia haver algum resquício de cultura e conhecimento. Procurávamos por livros e utensílios, alguma coisa que pudesse contar a história sobre esse lugar. Mas certo dia, algo mudou para mim.
A silhueta branca pela primeira vez titubeia, mas não por causa do vento, mas sim por causa de uma voz maravilhosa, um som majestoso que só poderia ser divino e que quanto mais se aproxima mais bela se torna.
Uma voz feminina, meiga e suave que criava um contraste com um instrumento grave e pesado. A silhueta pela primeira vez na vida ouve o que é uma música, e se encanta, por tudo, pela voz, pelo som, pela harmonia (que ele nem sabia o que era), mas ele se apaixonou de cara,
— Foi nessa vez Zac, que ouvir algo foi melhor que ver, eu tive oportunidade de contemplar a mais bela canção que dizia o seguinte:
Você é o meu amado
Uma pena ser tão indesejado
Minha família não me compreende
E para me distanciar de você me prende
Mas uma hora ou outra
Vamos nos encontrar novamente
Não posso ficar afoita
Pois o plano já corre e não está mais só na mente.
Um bebê teremos
Vamos ser felizes
Você de lá e eu de cá
Separados mas não distantes
Nem que isso tudo mude
Nem que tudo isso acabe
Nem que para isso morramos
Eu estarei do seu lado
Essa é minha promessa
Minha família não vai me impedir de te ver
A sua não vai te impedir de me abraçar
E o nosso filho nascerá
— Eu fiquei impactado com essa música e desde então tento fazer algo parecido, mas nunca consegui. Não tão belo quanto eu ouvi, só poderia ser uma deusa, Zac, você não tem noção da voz.
— Que lindo, mas e ai? O que aconteceu? Você chegou lá e viu ela?
— Não, quando cheguei eu achei apenas esse contrabaixo, uma folha com a letra da música que recitei para você e um perfume incrível estava naquele local. Mas na verdade não fui eu que achei, pois ao conhecer a música eu não tive reação, apenas desmaiei. Quando acordei estava naquele lugar e outros monges me ajudaram.
— Então você não viu ela, que pena.
— Sim, mas por isso que hoje trabalho como guia, um dia vou agradecê-la por me apresentar a música, entregar o instrumento dela e ouvir mais uma vez uma canção.
— Que lindo, sua história é incrível e talvez eu tenha entendido um pouco o porquê você contou para mim. Muito obrigado mesmo, me sinto muito melhor.
Nesse meio tempo eles ouvem um barulho de estalo de dedos vindo do lado de fora do universo astral.
— Ei vocês dois, vamos logo. Já amanheceu e vocês ficaram a noite toda contando estórias.
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