Tribo dos Anjos Caídos - 0.4
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Q perde momentaneamente a consciência, e a lutadora precisa segurá-lo com mais força para que não escorregue. Cha encara o pedaço de comida cravada nas costas dele, lembrando imediatamente que o cozinheiro era dono da barraquinha de frango-frito.
⎯⎯ Aquele filho de uma fosfurta era um herdeiro! ⎯⎯ conclui. ⎯⎯ Aguenta firme. A gente vai chegar logo. Ei, não desmaia!
O dirigível distancia-se de Partes de Baixo e segue a Estrada da Serpente, com o Rio Sul à direita, como a sombra de um polvo colossal, e a Poça de Cardio como a bocarra de uma minhoca gigante saindo do solo, à esquerda. No fim da longa via encontra-se Dedos, o bairro superlotado da região metropolitana menos favorita de Cardio, constituído por terra, concreto, sangue e metal. Ah, pessoas também, mas o governo esquece disso constantemente, então nem adianta.
A dupla de clandestinos da parte de fora do dirigível começa a contar assim que passam da primeira faixa de terra, onde a arquitetura é mais antiga, assim com as estradas, o Primeiro Dedo. O Segundo Dedo é formado por áreas mais abertas com edifícios maiores, mas poucos espaços verdes. Chegando ao Terceiro Dedo, com uma carga absurda de edifícios de todos os tamanhos e quase nenhuma área verde, um terraço laranja fica visível. É o único daquela cor.
⎯⎯ É onde eu moro, tá vendo? ⎯⎯ avisa Cha. ⎯⎯ Vamos mirar aquela lona, ok? Aquela entre os prédios.
Q balbucia algo e a garota começa a se preparar. Ele tenta falar de novo, mas Cha apenas acha que ele está delirando pelos espasmos de dor. Como assim o dirigível vai virar? Como ele poderia saber? Além disso, ele sempre dava a volta no quinto dedo, é esse seu percurso diário.
Subitamente, porém, a dupla sente o puxão na corda.
⎯⎯ Ah, hexânio! ⎯⎯ O braço de Cha parece prestes a se partir ao meio. ⎯⎯ Calma, vou pensar em algo.
Felizmente, Q está ali. Ele ergue o braço esquerdo com muito esforço na direção da aeronave, o silêncio só não mais alto do que o berro do vento. Cha pensa em chama-lo, só para ter certeza de que continua vivo, quando outro puxão a distrai.
O dirigível então começa a retornar para sua rota original.
Espantada, ela finalmente nota a mão esquerda do garoto, cuja luva tinha sumido. Os dedos eram fibra de carbono, as juntas de borracha e a palma de titânio.
⎯⎯ Você tem um braço de metal? ⎯⎯ Por pouco suas mãos não o perdem quando seu braço volta a cair. ⎯⎯ Incrível!
Q ri, satisfeito.
O terraço laranja aproxima-se. Se saltarem no momento errado, vão virar chiclete mascado. Felizmente, o peso de Q ajuda com a queda livre, e eles quicam na lona para depois rolarem pela laje de concreto. Cha carrega Q até a porta, atrapalhando-se com a fechadura que ainda é analógica.
⎯⎯ O que é isso? ⎯⎯ Com dificuldade para manter os olhos abertos, Q olha para o lugar onde Cha está tentando entrar: tem o formato de um globo de neve, formado inteiramente por inúmeras janelas gotejantes. Os arcos metálicos de sustentação se veem tão enferrujados quanto o portão gradeado que Cha tenta abrir. No vidro, o alaranjado do sol poente reflete como num prisma, por isso não viu aquela estranha estrutura de cima.
⎯⎯ É um cadeado… Ah, isso? Era pra ser uma estufa, mas o proprietário achou melhor dar um planetário pro filho de quinze anos. ⎯⎯ A garota enfim escancara a pesada porta e leva Q para dentro.
Ela deposita um impressionado Q num velho sofá em formato de “C”, que fica bem no centro do ambiente, de frente para a imensa janela retrátil em “V”, que vai do chão ao topo do globo e de frente para o horizonte sonolento. À direita de Q está a porta escancarada, com uma caixa de fusíveis no máximo precária ali do lado, que parece estar ligada a todas aquelas luzes de natal que não apenas iluminam, como também trazem um ar nostálgico. Lar.
Atrás de Q, vários cabides ajudam uma cortina cinza-escuro a formar o que provavelmente é um banheiro, onde Cha parece estar procurando algo. Do lado esquerdo de Q, por sua vez, vem um zumbido de estática. Ele passa o olhar pelo quarto, separado do restante da casa apenas pelo meio metro de altura de uma plataforma de madeira, a procura da origem do barulho. Uma escada de dois degraus leva direto à cama de casal branca, sem cobertor, travesseiro ou colcha, ladeada por um par de estantes metálicas velhas com alguns livros e uma cômoda de mogno, provavelmente o artigo mais bonito e ao mesmo tempo mais antigo daquele lugar, se é que algo é possível ser mais antigo do que outro ali. Os tímidos dedos do crepúsculo abandonam a madeira da cômoda e passam pelo piso de concreto, como se retirados lentamente do globo de vidro à força pelo impaciente tempo, deixando para trás a lembrança de um espetáculo luminoso.
⎯⎯ E o propriet- tá- tá- tário não achou estranho você morar aqui e o fi- fi- filho dele não? ⎯⎯ Q tenta tocar a bela katana que Cha deixou sobre a mesinha de centro feita de engradados.
⎯⎯ Eu não conto ⎯⎯ A lutadora de repente aparece munida de uma pequena mochila em formato de casco de tartaruga com uma cruz vermelha em fundo branco na superfície. Retira a espada e a mochila dali e senta na mesinha, encarando seu fã. ⎯⎯ se você não contar. Agora segura essa pedra de morfina que eu vou enfaixar. Deve servir até o médico chegar.
⎯⎯ Vo- vo- você chamou um médico? Nã- nã- não. Cancela.
⎯⎯ Quê? Por quê?
⎯⎯ Não é de- de- de um médico que eu preci- ci- ciso.
Ele usa a mão de metal para baixar o capuz. Não, Q não é um garoto com implantes cibernéticos. Sua pele é um polímero pressurizado branco e liso, com linhas que cortam a superfície num design descolado. Duas das linhas transpassam os olhos, ao mesmo tempo muito realistas e ao mesmo tempo artificiais, com as írises em um penetrante ciano neon.
Mas o choque de Cha precisa durar pouco, pois de seu fã vaza um líquido escuro que ela acabou de perceber não se tratar de sangue.
⎯⎯ Hm… Tã. Mecânico, então. Espera aqui, tá bom? ⎯⎯ Infelizmente para ela, só tem uma pessoa que pode ajudar nesse momento e talvez não cobrar, justamente a pessoa que menos deve estar querendo vê-la em todas as Doze Tribos.
Prévia do capítulo 0.5
Escuta a explosão antes de vê-la. Veio de uma belíssima mansão no topo de uma colina. Toda branca, é duas vezes maior do que o prédio sobre o qual Cha mora e dona de uma arquitetura moderna que a faz parecer uma torre de gatos. Por sinal, é isso o que está escrito no portão principal enquanto a lutadora discute com o porteiro humano a fim de deixá-la entrar numa das propriedades particulares mais bem protegidas de Dedos.