Um Alquimista Preguiçoso - Capítulo 104
No território da Família Xiao, nos fundos da casa do 9º Ancião, as luzes de lâmpadas a óleo da velha câmara estavam acesas lançando seu brilho amarelo-laranja sobre as paredes desgastadas. A sombra de uma garota era refletida pelos cantos, andando de um lado para o outro, bastante agitada, como se estivesse terminando de arrumar o lugar.
Camila estava atrasada. Ela já deveria ter decido para a cidade e se juntado à comemoração há algum tempo, mas ficou tão entretida em seu trabalho de preparar Ervas Espirituais que acabou perdendo o sentido das horas. Xiao Ning havia lhe dado o dia de folga, contudo era uma entusiasta e, como fazia todos os dias, decidiu dedicar algumas horas na preparação e arrumação.
As únicas coisas na câmera naquele momento eram um baú, alguns baldes de bambu e madeira, ferramentas cortantes ― tipo facas e tesouras ―, e Ervas que ainda precisavam ser preparadas. O Caldeirão de Cobre, o assim chamado Genbu, item mais valioso que geralmente ficava ali, tinha sido confiscado e guardado por Xiao Chang ainda naquele dia, quando ele e a família estavam se preparando para descer até a cidade.
De acordo com o Ancião, como todos estariam fora e a casa ficaria vazia ou quase isso, não seria prudente deixar um objeto tão inestimável e revelador desprotegido dessa maneira.
Camila lamentou o fato de não passar algumas horas estudando e se deslumbrando com o caldeirão e seus entornos misteriosos, do mesmo jeito que fazia sempre que seu chefe passava os dias cochilando pelos cantos, treinando em algum lugar ou fingindo estar treinando. Ainda assim, as Ervas que haviam sido mantidas dentro do baú eram o bastante para satisfazê-la antes de enfim descer até à cidade, e apesar de a essa altura a atividade de cortar e pesar já tenha se tornado algo repetitivo, nem de longe se tornara enjoativo.
Depois de passar algum tempo sozinha na câmara, ela arrumou toda a bagunça que tinha feito e se preparou para sair. Quando ainda atuava como empregada, por causa das exigências e da postura rígida da Empregada-chefe, nem sempre teve a oportunidade de participar do Festival da Geração do Caos, mas desde que chegou na cidade e veio trabalhar para a Família Xiao, não houve um único ano em que deixou de participar das festividades de virada de ano, as quais se estendiam ao longo do último mês.
É claro, no passado, o máximo que fazia era participar das brincadeiras, das atividades divertidas e da cantoria, mas devido a sua renda baixa, pouco podia aproveitar das bebidas, comidas e demais prazeres oferecidos pelo evento. Porém esse ano seria diferente, pois seu chefe ― bastante generoso, diga-se de passagem ― lhe deu um impressionante montante de uma moeda de ouro, uma quantia exorbitante para uma Mortal.
Sendo bem sincera, este era o ano em que estava menos motivada para ir ao festival, já que tinha encontrado na Alquimia algo mais satisfatório e divertido para fazer. Entretanto, sem o caldeirão para se deleitar e tendo acabado de preparar quase todas as Ervas Espirituais estocadas, não existia muito para ser feito ali.
Depois de ter certeza que tudo se encontrava guardado em seu devido lugar, fechar as janelas e apagar as lâmpadas, ela trancou a porta da câmara e saiu. A casa estava fechada, então precisou dar a volta pela lateral. Enquanto contornava a distinta moradia do 9ª Ancião, foi difícil ignorar a estranha sensação de desolação e abandono gerado pelo silêncio sepulcral que cercava a área.
A ausência do Ancião e de sua família não era a única sentida, pois todos os funcionários mais comuns, incluindo a Empregada-chefe, tinham sido dispensados de suas funções, já que a filha mais nova seria um dos destaques do importante Festival da Geração do Caos e o dono da casa desejava a presença de todos.
Camila já esperava encontrar o lugar vazio, ainda mais levando em consideração que durante a tarde já era possível sentir a falta de grande parte dos residentes e trabalhadores, mas apesar disso foi muito estranho notar que mesmo os seguranças incumbidos de vigiar a mansão nos últimos dias tinham desaparecido.
Seja como for, a nova assistente de Ning ignorou a peculiar sensação desértica rondando a região e continuou sua andança rumo a entrada da cidade.
Ela atravessou os limites da propriedade do 9º Ancião e continuou sua jornada através do território da Família Xiao. Porém, pouco depois de deixar a suntuosa moradia e seus arredores, parou, levantou a cabeça e encarou o céu, que a essa altura se encontrava parcialmente livre de nuvens.
A estranheza ao encarar o alto ficou evidente em seu rosto pela forma que as sobrancelhas se juntaram, formando uma clara dúvida acerca de algo. Por um segundo, jurou ter visto sombras sendo projetadas no gramado pela fraca luz noturna, entretanto ao olhar as estrelas se tornava notório que não existia nada povoando as nuvens, nem morcego ou lanternas desgarradas. Fazia-se uma noite límpida e livre de mistérios.
De volta ao centro da cidade, a próxima atração estava para começar, desta vez com Xiao Bai sendo o centro das atenções. O talentoso jovem da 1ª Camada do Reino do Despertar, que tinha pressa em dar sequência às batalhas, subiu no palco tão logo seu nome foi convocado.
Ao subir na arena, ficou evidente que sua imagem ainda causava comoção no público depois de sua impiedosa vitória contra alguém que era tão querida por todos. Vaias e ofensas se ergueram junto a gritos de reprovação, mas no final, isso não passou de protestos insensatos e solitários em meio à multidão.
Ele, por sua vez, ignorou os poucos resmungos verdadeiros que escutou, pois nada disso fazia diferença. Não estava ali para impressionar aquelas pessoas ou qualquer coisa do tipo.
Sua adversária seria Zhan Rong, a única entre os representantes dos Zhans a conseguir se classificar para a próxima etapa.
Quando foi convocada e durante todo o caminho até a arena, Rong experimentou sentimentos diversos que de certa forma eram desconfortáveis. Antes de mais nada, alegrou-se ao perceber que seu oponente da vez era alguém em cujo estilo de luta se mostrava conhecido por toda a cidade. Para uma pessoa focada em formular estratégias, esse era o tipo de inimigo perfeito para se enfrentar.
Por outro lado, a esmagadora diferença de poder era um poderoso desestímulo, pois sentia que independente de suas escolhas e dos planos elaborados com antecedência, nada poderia mudar o final. Em outra ocasião, a luta de Xiao Ning contra Zhan Hao talvez servisse de inspiração, mas o fato de o primeiro ser um Alquimista apenas servia para demonstrar que somente os extraordinários conseguem ultrapassar certas barreiras.
Contudo, ainda assim, não era por saber a diferença de poder que ela se renderia antes de tentar, afinal se fizesse isso receberia um longo sermão do Patriarca de sua Família.
Quando subiu no palco, Zhan Rong, que durante todo o caminho planejou medidas defensivas e contra-ataques, pensou em parabenizar o rival pela benção que os Xiaos tinham recebido ― um gesto de respeito ―, mas no instante em que se posicionou, o Jovem Nobre Bai abriu a boca, interrompendo qualquer tentativa de sua parte.
― Ela está aqui. Vamos começar logo com isso. ― disse ele olhando para o juiz. ― Se eu perder tempo em um confronto tão insignificante, serei motivo de deboche.
Ao ouvir aquelas palavras, Zhan Rong perdeu toda a motivação que dispunha para se apresentar de uma forma agradável. Suas sobrancelhas se juntaram em uma carranca desgostosa e, antes de começar a resmungar, bufou pelo nariz:
― Ao que parece, sua arrogância é tão grande quanto alegam ser. ― disse ela em tom de acusação.
Os juízes e juízas se posicionaram ao redor do palco e aquele responsável por essa partida se adiantou, pigarreou duas vezes e anunciou.
― Se os dois estiverem prontos, já podem começar. ― declarou, dando permissão para o começo do confronto.
― Eu posso não ser uma Despertada, mas não é por isso que você deveria me menosprezar. ― Mesmo existindo uma clara disparidade entre suas forças, Zhan Rong achava um ultraje a imodéstia superioridade apresentada pela outra parte. E depois de fazer esse pequeno discurso, ela agitou o braço direito, indicando que estava se preparando para algo, e rugiu. ― Chicote…
Assim como na batalha contra Qin Jun, ela se aventurou a lançar o primeiro ataque a fim de tomar a iniciativa e controlar o ritmo dos eventos seguintes. Porém, antes que tivesse a chance de terminar qualquer iniciativa, Xiao Bai se antecipou aos seus movimentos.
Buscando uma rápida resolução, ele, que tanto ansiava pela grande final, chutou o chão e disparou feito um predador perseguindo sua caça. Quando se aproximou, sem dar chance para medidas defensivas ou abrir espaço para fugas e evasões, agarrou a rival pela garganta e num ato de violenta selvageria a ergueu pelo pescoço, sufocando-a ao passo que esmagava sua traqueia.
Zhan Rong se debateu, tentando se libertar. Desesperada, chutou e golpeou, perdendo, por um segundo, a racionalidade e permitindo a si mesma ser dominada pelo instinto básico de sobrevivência. A princípio, apenas seus olhos ficaram vermelhos conforme a privação de oxigênio se estendia, mas não demorou muito para todo o seu rosto adquirir um marcante tom rubro.
― O fato de não ser uma Despertada prova sua incompetência. ― declarou Xiao Bai em resposta aos resmungos anteriores. ― Para ser sincero, aceitar pessoas tão fracas só torna esse evento mais cansativo.
Embora estivesse perdendo a calma devido a emergência na qual se encontrava, ouvir aquilo fez Zhan Rong recuperar parte de sua estabilidade. Determinada a não ser feita de boba e ainda frustrar as alegações do arrogante Jovem Nobre, ela parou de se debater e se preparou para usar uma Técnica de Combate. A palma de suas mãos se abriram e um frescor amadeirado começou a ser exalado. Da ponta de seus dedos, descamando feito pele de cobra, tecidos finos e semitransparentes começaram a se desprender.
Mas então, antes que tivesse a chance de chegar a uma real conclusão, Xiao Bai reagiu. Impetuoso e tão brutal quanto poderia ser, ainda agarrando-a pelo pescoço, ele a jogou de encontro ao chão, fazendo-a bater as costas e a nuca com violência. O baque do empurrão soou alto e perigoso, levando muitos dos espectadores a virarem o rosto e exprimirem caretas, como se pudessem sentir a dor.
E por fim, demonstrando que ainda não havia terminado, o Jovem Nobre Bai tornou a erguê-la pelo pescoço, mantendo o aperto firme e truculento.
Quando voltou a ser levantada, a cabeça de Zhan Rong balançou e os braços caíram sem muito vigor, exibindo uma consciência fraca e vacilante, a um passo de desmaiar.
Foi nesse ponto que, terminando a exibição brutal, unilateral e livre de empatias que começou, Xiao Bai, sem se importar com a saúde ou bem-estar da rival, atirou Rong para fora dos limites da arena, libertando-a do estrangulamento e colocando fim à disputa.
No mesmo instante, a juíza mais próxima acolheu a jovem nos braços e logo tratou de verificar sua condição. Ficou feliz quando a ouviu e sentiu sua respiração, apesar de ter sido um sopro debilitado que tocou seu ouvido direito.
Depois de ser enforcada e forçada a bater contra o piso de madeira, Zhan Rong não conseguiu resistir e acabou perdendo a consciência. Mas uma pequena contusão seguida de um simples desmaio não era o suficiente para desqualificar ninguém, e assim, o Jovem Nobre da Família Xiao foi declarado o vencedor.
A vitória de Xiao Bai foi indiscutível, de um modo que a outra parte sequer teve espaço ou tempo para lançar o próprio ataque. No entanto, a maneira brutal com que se portou levou muitos a se indignarem e protestarem pelo ocorrido. E mais uma vez, a despeito da vitória, ele deixou o palco sob vaias e gritos revoltados, muito embora ainda existissem centenas de pessoas que o apoiavam e clamavam por seu nome.
No palanque, Xiao Enlai se viu obrigado a pedir desculpas ao Patriarca da Família Zhan pelos atos de um de seus integrantes. Para todos ali, ficava evidente desde o princípio que ferimentos e lesões mais graves aconteceriam durante as batalhas, mas a indiferença e desumanidade era algo que às vezes fugia do comum.
Ignorando o desfecho unilateral da última disputa, o festival continuou e logo a dupla seguinte destinada a se enfrentar foi convocada.
Xiao Guo, que depois de descobrir a real identidade do Alquimista não saiu mais do lado de Ning, empolgado pela próxima luta e a possibilidade de enfim conseguir testar suas forças como um Recém-Despertado, despediu-se do companheiro usando um legítimo tom alegre e desceu a escada do palanque pulando de dois em dois degraus.
Porém ao alcançar o palco teve toda sua disposição e entusiasmo exauridos por um simples pronunciamento.
Quem subiu no palco não foi Chen Bohai como era de se esperar, e sim um homem de idade avançada trajando jaleco branco por cima de um conjunto de roupas sofisticadas que traziam em seu peitoral o símbolo da Família Zhan.
Ao ver o sujeito aparecer, a árbitra incumbida de monitorar a partida se adiantou e ao se aproximar, os dois trocaram algumas palavras em confidência, breve, mas o bastante para deixar a juíza com uma expressão conclusiva.
― Chen Bohai está muito ferido e não vai poder…
― Espera um pouco! ― Contudo, antes que ela pudesse terminar o pronunciamento, um grito reverberou pela multidão, chamando a atenção para um garoto enfermo, cujo rosto apresentava uma aparência ressequida, murcho, dotado de olhos e bochechas fundas, além de uma coloração pálida.
Chen Bohai parecia um cadáver seco e corcunda que tinha grandes dificuldades para se mover. Seus passos eram lentos e suas pernas não paravam de tremer. A respiração pesava no peito, dando a ligeira impressão de que estava usando todas as forças meramente para se deslocar.
Quando o viu passando pela multidão e indo em direção a arena, o médico da Família Zhan exasperou, chateado:
― O que pensa que está fazendo aqui? Mandei ficar deitado!
― Aquilo não foi nada. Eu estou muito bem! ― declarou Chen Bohai enquanto tentava subir no palanque. Depois de tropeçar e chutar os degraus da escada lateral duas vezes e precisar se abaixar e se apoiar com as mãos para não cair, ele caminhou até o centro da construção e tentou elaborar uma pose de batalha, mas estava fraco demais para sequer erguer os braços. ― Vamos. Já pode começar. Eu estou pronto. ― afirmou, confiante.
― Mesmo que não perceba, você teve lesões graves, incluindo uma pequena hemorragia interna. ― alertou o médico em tom de repreensão. ― Volte para o seu lugar e vá descansar! ― ordenou.
Mas Chen Bohai acabou se provando um jovem bastante teimoso quando exibiu um meio sorriso debochado antes de falar:
― Ha! E daí? ― Deu de ombros, atribuindo pouco crédito às palavras de alerta. ― O sangue tá onde deveria estar. Agora, é melhor o senhor doutor sair daqui, porque eu vou derrotar um Despertado e meus ataques serão furiosos, igual os de…
Mas então, cansado de ouvir as bobagens de seu paciente, o assim conhecido Dr. Zhan Gen desferiu um golpe que acertou a nuca de Bohai, fazendo-o desmaiar no mesmo segundo. Depois de ser atacado e perder a consciência, ele ameaçou desabar, mas antes que chegasse a despencar de cara no chão, o prestativo médico o agarrou pela cintura e o suspendeu, colocando-o sobre o ombro, agindo como se o garoto fosse um saco de batatas.
A atitude agressiva do curandeiro espantou a todos que assistiam, mas o Dr. Zhan Gen nem ao menos hesitou ou inventou qualquer desculpa antes de se virar e se preparar para deixar o palco.
― Eu vou levar esse menino para continuar recebendo o tratamento. ― disse ele enquanto descia da arena. ― Vocês podem continuar com as lutas.
Embora tenha sido um pouco frustrante, essa não foi a única disputa a ser suspensa devido a indisposição de um dos participantes. O embate seguinte, que seria entre Xiao Shui e Ma Yao Yan, também terminou antes mesmo de começar, pois a integrante da Fundação Quatro Pilares tinha quebrado o braço durante o seu primeiro confronto.
O público, apesar de decepcionado, não se surpreendeu com as desistências. Todos os anos os praticantes escolhidos de cada organização apostavam suas forças e habilidades logo no início na esperança de conseguirem impressionar alguém e avançar para a rodada seguinte, e por consequência contusões mais graves se tornavam comum e como todos sabem, ferimentos não desaparecem tão fácil assim, no decorrer de poucos minutos. A única exceção no geral ficava para os Despertados que comumente não usavam o poder máximo de suas técnicas no início.
Para muitos, a sequência de desistência foi decepcionante, mas isso logo foi esquecido quando um dos juízes anunciou a batalha subsequente.
― Xiao Ning contra Qin Yanyu!
Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.
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