Um Alquimista Preguiçoso - Capítulo 115
“Roarr!”
O rugido de uma besta feroz ecoou, dando a impressão de que um urso gigante tinha aparecido em algum lugar do palco, embora não fosse impossível obter uma visão da criatura. O urro foi tão alto que o ar vibrou à medida que a nota grosseira era entoada.
Caído no chão, com o psicológico abalado depois de ser derrubado tão facilmente, Xiao Bai precisou usar o melhor de suas faculdades mentais desgastadas para conseguir fugir da situação vulnerável na qual se encontrava, pois se fosse atacado naquela posição, não teria a menor chance de se defender.
No entanto, o que ele falhou em perceber foi que seu adversário não demonstrou interesse em persegui-lo ou tirar vantagem da situação. Tanto que, enquanto ele se levantava e se afastava o mais rápido possível, a outra parte permaneceu parada, apenas o assistindo correr.
Xu Jong enfiou os indicadores nos ouvidos e começou a balançar, como se estivesse tirando a cera que se acumulou por muito tempo. Em seguida, tombou a cabeça de lado e deu alguns pulinhos, primeiro com o rosto virado para a direita e depois para a esquerda.
― Nossa! Uau! Isso é muito estranho ― comentou, deixando escapar um sorriso divertido. ― Parece até que meus ouvidos estão todos tampados. É igual a quando eu vou mergulhar e entra água. Isso me surpreendeu muito.
― Maldito! ― grunhiu Xiao Bai, sentindo que estava sendo caçoado. ― O que acha disso então… Pancada Almofadada!
Algo que lembrava a impressão de uma pata canina disparou, indo direto contra o garoto que tinha os dedos enfiados nos ouvidos.
O ataque foi ligeiro e preciso, mas no instante em que notou o perigo se aproximando, Xu Jong saltou para o lado, fugindo da investida, e quando sentiu que estava seguro, bateu o pé no chão e comandou:
― Seixo Branco!
Surgindo do nada, dezenas de pequenas pedras brancas ― de diferentes tamanhos ― foram atiradas em direção ao Jovem Nobre. Elas possuíam uma velocidade impressionante, como se estivessem sendo jogadas através de um estilingue muito bem ajustado.
Xiao Bai, por sua vez, desviou das primeiras apenas mexendo o corpo para os lados, mas logo mudou de estratégia e passou a destruir os obstáculos com um conjunto de garras douradas dotadas de traços vermelhos, que surgiram em suas mãos. Seus movimentos eram violentos e conforme se articulava, rugidos de frustração se ergueram, acompanhando sua tentativa de defesa.
Quando terminou de destruir a última, ele olhou para o outro lado do palco usando de um semblante ameaçador, mas o que recebeu em troca foi um sorriso descontraído.
― Ahaha! Nada mal ― elogiou Jong. ― Mas acho que já era de se esperar do mais forte da Família Xiao.
― Acha que preciso de suas bajulações? ― vociferou o Jovem Nobre Bai. ― Domínio do Faisão-dourado!
Um conjunto de garras avançou rasgando o ar. A ferocidade por trás de sua execução era notável e, a esse ponto, ninguém ousava questionar o poder que a técnica carregava. Mas como era de se esperar, Xu Jong a destruiu com um simples movimento de braço e então, sorriu.
― Você não sabia fazer isso no ano passado ― observou, demonstrando certa alegria e admiração pelo fato. ― Porém ― seu tom mudou, assumindo traços distintos de seriedade ―, se quiser me derrotar, terá que fazer mais.
A expressão no rosto de Xiao Bai era a mais feia possível. Sua cara carrancuda contrastava de uma maneira horrível com seu olho roxo, o lábio inchado e o nariz vermelho. Suas feridas, embora devessem contribuir para deixá-lo mais intimidante, serviam meramente para transformá-lo em um sujeito miserável.
― Seu desgraçado! ― praguejou. ― Você acha que é tão forte assim?! Acha que é tão importante assim?! Eu vou te destruir! Vou fazê-lo pagar pela humilhação que me fez passar no ano passado.
Ensandecido, ele chutou o chão e partiu para a ofensiva. As mãos abertas foram enluvadas por garras douradas e vermelhas. Não se tratava de um ataque extravagante ou dotado de grande imponência, mas a selvageria e a loucura se mostravam implícitas por trás de suas ações.
Desconsiderando o risco de se aproximar da pessoa que o rendeu com um único golpe, o Jovem Nobre deslocou o braço direito na diagonal em um movimento ascendente. As garras passaram a poucos centímetros do rosto de Xu Jung, que inclinou o corpo para trás. Mas logo que o desvio foi feito, Bai adiantou o passo, encurtando ainda mais a distância entre os dois, e fez outra tentativa, girando o braço esquerdo na horizontal.
Nesse momento, o garoto de cabelo muito bem arrumado não tentou escapar e, ao invés de se abaixar ou recuar, agarrou o cotovelo do oponente, impedindo-o de dar sequência em sua tentativa. E antes que outra tentativa fosse executada, da mesma maneira que fez durante sua partida contra Yanyu, parou a mão em frente ao peito do rival e, como aconteceu antes, rajadas de vento começaram a convergir em um único ponto…
“Paaa!”
Um estampido agudo ecoou e o Jovem Nobre Bai foi arremessado para longe. Seu corpo voou descontrolado, dando cambalhotas no ar. A força usada para arremessá-lo foi tanta que daquele jeito não apenas cairia fora do palco, como voaria até a multidão.
Esse parecia ser o fim da disputa e do festival. Sem conseguir voar ou ter onde se agarrar, as opções do Jovem Nobre eram tão escassas quanto lagos e florestas em desertos.
No entanto, por mais que a situação fosse complicada, tanto quanto era considerado arrogante, ele era também uma pessoa obstinada. Recusando-se a desistir, Xiao Bai soltou um rugido alto que trazia em sua essência toda a frustração sentida no momento. A humilhação, a vergonha que experimentava de si mesmo, a fúria… o medo, tudo isso resultou num berro ensandecido, áspero, cruel, animalesco. E então, trazida à vida pela imensa vontade de continuar no campo de batalha, do nada uma figura envolta por luz começou a se manifestar.
Tratava-se de uma criatura cujo corpo ocupava um espaço considerável e a altura passava dos três metros. Sua pele aparentava ser dotada de um tom esbranquiçado e os olhos verde-esmeraldas, tão intensos e hipnotizantes que parecia esconder um abismo de terror e selvageria. Entretanto, tudo isso era muito difícil de julgar com precisão, pois a coisa estava borrada feito uma imagem embaçada e ainda não tinha acabado de se manifestar.
Porém, independente da criatura estar em sua forma perfeita, sua mera presença surtiu um grande efeito, dado que, antes de ser atirado para fora dos limites da arena, o Jovem Nobre Bai de repente parou em pleno ar, como se existisse uma força o segurando, e caiu na beirada da arena, a poucos centímetros de ser eliminado.
Sua aterrissagem, embora desejada, não foi tranquila. No mesmo segundo em que pousou, ele desabou, colocando a mão no peito conforme experimentava uma dor sufocante. Seus pulmões ardiam, as costelas rangiam e os nervos, loucos por causa do estímulo extremo que receberam, lançavam pontadas de agonia por todo o seu corpo.
Do outro lado, vendo a sequência de eventos se desdobrar diante de seus olhos enquanto permanecia no mesmo lugar, Xu Jong abriu a boca, admirado.
― Aquilo foi impressionante. Eu achei que já tinha vencido, mas você conseguiu se recuperar ― disse ele. ― Mas… uma pergunta: O que era aquela coisa agora há pouco? Parecia ser muito forte.
Existia divertimento em sua expressão. Estava feliz pela continuidade deste confronto e a figura no final, que desapareceu tão logo garantiu a permanência do seu invocador, era um mistério que valia o risco de ser desvendado. Verdade que quando aquela coisa surgiu, experimentou uma breve sensação de perigo, mas se não fosse para se arriscar, então qual era a graça deste festival?
― Ah! Só uma coisa. ― Ele voltou a abrir a boca. ― De que humilhação você está falando? Eu não fiz nada ― defendeu-se.
Xiao Bai estava ajoelhado com a mão no peito, arfando. Suor escorria de sua testa e sua face se mostrava um tanto mais pálida do que o normal. Ele permaneceu assim por alguns segundos, até que por fim, através de um esforço momentâneo, colocou-se de pé.
― Não se faça de desentendido! ― vociferou, expondo tamanha fúria que poderia queimar o outro lado apenas usando palavras. ― Por sua causa, eu… ― mas antes que completasse a frase, ele se calou. A culpa e a dúvida tomaram conta de seus olhos.
Quando pensava a respeito, um debate que acontecia apenas em seus pensamentos e nunca era externado, Xiao Bai tinha plena certeza do verdadeiro responsável pela vergonha que passou, pela agonia que sentiu ― só podia ser ele, não existia ninguém mais. No entanto… Ele podia ser culpado pelo que aconteceu? A culpa não era sua por ter falhado, por ter errado… por ser fraco?
Após a tentativa frustrante de falar, a expressão que se apoderou do rosto do Jovem Nobre era de melancolia e confusão. Por um segundo ele se perdeu, mirando o nada como se existisse algo no vazio prendendo sua atenção. Mas percebendo o que estava fazendo, piscou algumas vezes e ergueu a cabeça.
― Você está muito confiante ― voltou a falar, desta vez usando um tom diferente, inseguro, apesar da hostilidade permanecer. ― Podia ter me derrotado enquanto estava caído, mesmo assim, só ficou aí… parado, me olhando. Vai se arrepender de ter feito isso ― ameaçou.
― Ha! Eu gosto das minhas lutas frente a frente ― argumentou Xu Jong, esboçando um meio sorriso. Parecia continuar a mesma pessoa de antes, descontraído, confiante. Mas conforme falava, sua expressão mudou, assumindo um semblante sério. ― Não sou o tipo de covarde que ataca alguém pelas costas.
O semblante do Jovem Nobre se afundou, formando uma carranca sombria.
― Está me acusando de algo? ― indagou, áspero em cada palavra. Suas mãos foram envolvidas por garras douradas com leves tons de vermelho. ― Eu vou fazê-lo pagar por tudo! ― dizendo isso, ele disparou para a ofensiva.
― Nébula de Poeira! ― Xu Jong bateu o pé contra o chão e das frestas das tábuas surgiram camadas de pó fino, que se espalharam ao longo do perímetro.
A neblina em tom de vermelho-barro que se ergueu era ainda mais densa do que aquela usada por Meifen, durante a primeira rodada. O lugar ficou escuro tão de repente que era como se um pedaço do céu noturno tivesse caído, lançando tentáculos sufocantes em todas as direções.
― Para ser sincero, não entendo do que está me culpando. ― A voz de Jong soou calma por detrás da escuridão. ― Mas… eu soube o que seu avô fez… Sinto muito por isso.
― O que você sabe?! ― O grito de Xiao Bai soou mais furioso e hostil do que qualquer outro.
Seguido pelo seu berro ensandecido, a poeira começou a perder volume e a se dispersar, carregada por rajadas que agitavam toda a sua estrutura. Era como se o pó temesse aquele que deveria abafar. E então, pela segunda vez, a figura misteriosa se fez presente.
Seu contorno surgiu no meio da nuvem vermelha, fraca e dispersa à princípio, mas passou a ganhar forma aos poucos. A luz esbranquiçada que a envolvia deu lugar a um tom azulado, disperso e lustroso. O contorno de uma cabeça dotada de orelhas curtas foi desenhado e patas pesadas e marcantes foram reveladas.
Ainda não era possível julgar com exatidão a origem da criatura e muito menos identificá-la, mas sua majestade era imensurável. Mesmo sem estar em seu vigor perfeito, sua força era sufocante a tal ponto que muitos daqueles cercando a arena, incluindo os árbitros, afastaram-se, cautelosos, temerosos.
Xu Jong olhou para aquilo por um instante, antes de enfim abrir a boca:
― É mesmo impressionante ― comentou, admirado. ― Mas nem mesmo você é capaz de usar uma técnica de nível Soberano. Sequer consegue mantê-la em sua forma verdadeira.
― Eu não consigo?! ― rufou Xiao Bai, a cada instante mais instável. ― Então veja isto. ― Ele fez um movimento e a criatura começou a se mover, ameaçando esticar uma de suas pernas gigantes para frente.
Mas antes que a monstruosidade pudesse fazer alguma coisa, Xu Jong bateu o pé contra o piso e dezenas de pedras brancas foram disparadas tendo o mesmo alvo em comum. No entanto, diferente das outras atiradas um momento atrás, essas eram maiores e mais rápidas.
O Jovem Nobre não teve chance de se defender ou desviar. Não conseguiu ativar outra habilidade e foi bombardeado pelos seixos. Ele até tentou usar os punhos para bloquear o ataque, mas isso logo se provou inútil. Conforme era atingido, a figura misteriosa perdeu cor, voltando a ficar esbranquiçada, até que não suportou mais e desapareceu.
Ele caiu, sentindo dor em todas as partes do corpo, outra vez sendo oprimido por quem deveria oprimir. Ser subjugado com tanta facilidade deveria deixá-lo louco de raiva, sedento por se impor, desesperado para mostrar do que era capaz. Porém, não era a dor ou a frustração por perceber a imensa diferença de poder que o incomodava. Porque não conseguia parar de pensar? Parar de lembrar?
― Sabe ― Jong começou a falar ―, eu lamento pelo que aconteceu, mas isso não é justificativa para você atacar alguém daquela forma. ― Sua voz era pesada, severa e repleta de acusações. ― Eu venci você em uma competição e isso é tudo. O que aconteceu depois não é minha culpa e muito menos uma justificativa para descontar sua raiva em outras pessoas.
― Cala a boca! ― O grito que irrompeu de sua garganta veio acompanhado de saliva e rancor. Tomado pela insensatez, naquilo que sua mente deveria esquecer, Xiao Bai avançou com os punhos nus em direção ao seu antagonista.
Ele não sabia por que estava fazendo isso, por que estava tão emocional, tão descontrolado. Por algum motivo, acreditava que deveria odiar o sujeito na sua frente, deveria menosprezá-lo, mas não era isso que sentia, não era dele que tinha raiva.
Estava no meio de uma batalha importante ― a grande final ― e para completar, enfrentava a pessoa que considerava seu grande rival. No entanto, sua mente se encontra em outro lugar. Por que isso? Por que agora? Sentia que deveria se focar no oponente adiante, detestá-lo, odiá-lo, mas seus pensamentos traziam lembranças de um lugar diferente. De alguma forma, ele podia ouvir os sussurros do passado.
Neste momento, Xu Jong deu um salto para frente e encurtou a distância entre os dois por vontade própria. Em seguida, desferiu um golpe tão forte em Xiao Bai que o enviou rolando de volta para o lugar em que estava.
No entanto, Bai sequer sentiu dor, nem ao menos percebeu que tinha sido atingido. Seus pensamentos o atormentavam e os sussurros ficavam cada vez mais intensos. Ele conseguia ouvir a voz dela sendo soprada em seus ouvidos, dizendo: “Ah! Aí está você, Jovem Nobre!”
Porque agora? Era frustração por saber que não poderia vencer?
― O que seu avô fez foi horrível ― disse Xu Jong, mantendo sua posição ―, mas acha que justifica tratar uma pessoa da mesma maneira?
― Para de falar! ― proferiu Xiao Bai em resposta, porém a expressão em seu rosto ou o tom de sua voz não era de fúria e sim, mágoa. Ouvir seu avô ser citado apenas intensificava aquilo que da mesma forma queria lembrar, também desejava esquecer.
E então, demonstrando que tinha perdido a calma por completo, ele se abaixou, apoiando as mãos no chão e assumindo uma postura animalesca enquanto seu corpo era envolvido por uma aura laranja.
― Caçada Estrondosa! ― rugiu.
Seu ataque foi feroz e direto, sem desvios ou tentativas dissimuladas. Mas isso só serviu para facilitar o contra-ataque de Xu Jong, que fechou a mão e acertou um soco na nuca de seu adversário, fazendo-o desabar pela segunda vez da mesma maneira humilhante.
O Jovem Nobre ficou caído, arfando, abatido.
― O que foi isso? ― perguntou Jong. ― Eu já falei…
― Cala a boca! ― Quem ele estava mandando se calar?
Xiao Bai desejava esquecer de tudo aquilo, pois apesar das boas lembranças, eram as más que o atormentavam. Contudo, sua mente tinha vontade própria e não o deixava esquecer do passado. Seria por odiar tanto o sujeito à sua frente que falhava em se acalmar? Ou quem sabe fosse a diferença de poder que o fazia perder a confiança? Talvez, a pressão que colocou em si mesmo antes da batalha sequer ter começado tenha o desestabilizado. Porém, quanto mais pensava, mais ele percebia.
Não era seu desprezo por Xu Jong ou sua extrema vontade de vencer, muito menos os laços com o passado que o faziam hesitar e perder a concentração. Era o medo da derrota, o medo de voltar para aquele lugar.
Treze anos atrás…
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