Uma Nova Lenda Surge - Capítulo 20
— Você está com medo? — Uma voz confortante sussurra em meus ouvidos.
— Quem está ai! — Me levanto rapidamente e olho os arredores, mas não vejo ninguém.
— Hum… Acho que você tem razão, eu nunca me apresentei adequadamente. Pode me chamar de Gurnesarm a glutona, sempre estive com você Roro, no entanto nunca consegui me comunicar diretamente não sei o motivo.
— Você está dentro da minha cabeça?
— Mais ou menos isso mesmo, sendo mais exata eu sou o selo em seu corpo.
— Gurnesarm certo? O que você quer?
— Acho que apenas pagar? Sabe, muito tempo atrás eu fui assassinada por um de meus iguais, na época eu o odiei por isso, mas hoje eu sei a verdade.
— O que você fez?
— Devorei muitas pessoas para satisfazer um desejo inalcançável, o sabor do sangue era algo incansável, seus olhos explodiam em minha boca a mergulhando com seus doces sucos. — Ela falava como se tivesse com dificuldade de respirar ao mesmo tempo em que demonstrava o seu desejo.
— Você é louca…
— Eu sei, mas todos possuem desejos, alguns mais abomináveis que outros, apenas isso.
— Mesmo assim isso passa do bom senso!
— E o que seria bom “senso” afinal? É só uma palavra bonita para retirar totalmente a sua liberdade. Mas eu não vim aqui para falar de mim, afinal passado é passado.
— Então por quê?
— Já se esqueceu? Eu tinha te perguntado se estava com medo.
— Não sei dizer se é medo o que tenho talvez seja raiva do meu pai, do meu Mestre e de eu mesmo.
— Hum… E o que você irá fazer quanto a isso? Sentar e chorar ou tentara pagar com a própria dor?
— Eu… Não sei…
— E que tal você invés de se lamentar salvar todos ao seu redor? Eu te vi treinando com a ruiva, talvez a sua maestria com essa pequena adaga possa salvar a sua amada.
— Eu quero e vou lutar, mas não sei se isso é verdade.
— O futuro é incerto mesmo, mas acho que se eu te der um pequeno empurrão que seja você poderá derrotar o que está se aproximando.
— Obrigado.
— Então agora fique de pé e sorria, pois hoje você terá que enfrentar os seus medos!
— Roro… — Lili se aproxima a pequenos passos. — Está tudo bem?
— Sim. Lili! Eu irei te proteger, eu prometo!
— Vamos entrar o Mestre está chamando.
Retornamos para o interior da torre e seguimos até a biblioteca, onde os demais nos aguardavam. Nos sentamos nas cadeiras vagas da mesa deixando apenas Mestre de pé.
— Serei breve, pois estamos sem tempo, Lili você partirá junto das de mais, enquanto eu e Roro seguiremos para a vila.
— Mestre por quê?! — Lili se levanta derrubando a cadeira.
— Sem perguntas! — Pela primeira vez eu pude ver o rosto do Mestre com aquela expressão que demonstrava a sua superioridade e trazia medo e respeito dos demais.
— Você ouviu o Milorde. Lili, vamos?
Sinaberm se levanta junto de suas duas filhas e segura a Lili em seu colo a levando a força para os andares inferiores após uma troca de olhares com o Mestre, que se mantinha firme em sua decisão apenas esperando elas saírem.
— Roro eu sei que tudo está ocorrendo rápido de mais, mas você deve entender a nossa situação… — Ele fala junto de um suspiro de alivio. — Talvez o que você veja hoje seja algo que marque a sua alma por toda a eternidade, então me desculpo desde já.
— Não precisa se desculpar, talvez isso seja necessário.
— Acho que vocês dois estão errados. — Gurnesarm se intromete em meio as minhas palavras.
— Então você ainda está viva minha irmã.
— Você consegue ouvir a voz Mestre?
— Me diga então o que deveríamos fazer minha irmã?
— Fugir, mas sei que isso não seria o suficiente para você, não é mesmo Kar? Então eu quebraria o selo em seu lugar, para ter chances maiores de salvar as pessoas da vila.
— Não… Eu não posso fazer isso, pelo menos ainda não…
— Boa sorte em sua batalha, mas se acabar como as estrelas dizem não me culpe. Garoto, eu irei lhe ajudar durante a batalha, mas em troca irei querer um pouco de carne dos cadáveres.
— Isso é uma escolha exclusiva sua Roro.
— Certo… Quando a hora chegar saberei o que fazer…
O Mestre caminha até o parapeito da janela de pedra, onde apoia o corpo se pondo para frente, observando o horizonte onde a vila se encontrava.
— Roro, vamos… A luta já começou. — Ele fala já caminhando para os andares inferiores a passos rápidos.
O sigo parando no parapeito para observar a grande fumaça negra que mergulhava a vila. O meu coração disparava em uma frequência fora do normal, minhas mãos se umidificavam com o suor do medo.
Enfim o dia pelo qual eu treinei havia chegado, a minha adaga teria que cruzar o peito daquele que destruía o meu lar e matava aqueles que eu amava.
Continuo o caminho para me encontrar com o Mestre, que me esperava do lado de fora da torre, encarando a vila com lagrimas escorrendo por sua face, enquanto se mantinha sério observando o horizonte.
— Está pronto Roro? Caso não esteja pode correr para as colinas ao sul daqui, lá você deve se encontrar com as de mais.
— Não irei fugir, eu tenho que passar por essa provação que o mundo me colocou.
O Mestre me encara buscando por novas forças antes de levar o polegar e o indicador até a boca, soltando um assobio que ecoa pelos montes, ele repete o som três vezes de forma rítmica, dando um pequeno intervalo entre cada um.
Após o terceiro assobio pode-se ouvir um grasnar alto de uma criatura que sobrevoava as nuvens. Não demorou muito até o dono do barulho descer até onde estávamos.
Uma grande ave de penas douradas manchadas em preto, com o gargalo enegrecido e olhos esverdeados, se prostrava diante de nós, abaixando uma de suas grandes asas como uma ponte para que subíssemos em seu corpo.
Ao subirmos no animal, o Mestre lança outro assobio, como se comunicasse com ele, em resposta a ave estende suas asas as batendo com força, assim erguendo a terra ao redor da torre, enquanto abria o seu longo bico em um potente grasnar, que estremecia a terra.
A brisa batia com força em nossos rostos enquanto o pássaro se colocava a subir. A visão privilegiada que nos foi dada de cima do pássaro, não era das melhores, apesar de toda a majestosidade que o animal exalava.
A viagem durou poucos minutos, mas era uma experiência única, da qual eu pude ter no pior momento.
Nos aproximamos aos poucos da vila que era devorada pelas cinzas largadas ao vento pelas chamas, as pessoas correndo em desespero tentando se salvar de seu carrasco.
Pulamos da fera voadora a poucos metros do chão, ela volta a bater suas grandiosas asas erguendo voo, deixando para trás rastros causados por suas três caudas despenadas.
— Roro, salve os aldeões que não conseguiram partir! — O Mestre fala ao descer da ave. — Eu irei atrás dele!
— Certo!
Deixo o Mestre partir na direção do rastro causado pela destruição, enquanto eu busco sobreviventes em meio aos destroços em chamas.
Vou até uma casa próxima onde enxergo partes do corpo de alguém que provavelmente tinha sido soterrado pelos destroços da casa.
O sangue manchava o chão de terra batida, as pernas que permaneciam para fora dos escombros se preenchiam de sangue que seguia para o chão.
Me aproximo mais para tentar retirar as toras e pedras que cobriam o corpo da vitima, mas ao alavancar algumas pedras utilizando da tora que permanecia entre elas, senti algo rolando para perto de meu pé.
Uma das pernas havia se movido, mas… O resto do corpo já havia se perdido em meio aos escombros, uma forte ânsia sobe por minha garganta, tento resistir à vontade de vomitar desviando o olhar da imagem grotesca que permanecia em meus pés.
— Pegue-a e coma, não tenha medo, é como a carne do gado! — A voz do demônio pairava em minha mente.
— … — Mas se quer conseguia achar forças para retrucar suas palavras.
— Não tenha medo, só assim você poderá cumprir com os seus objetivos! Coma! Coma e se delicie em meio ao mar de sabores!
— Não! Eu ainda não preciso de você! — Tento me levantar, buscando forças em meu interior.
— Uma pena, assim você nunca vai poder ajudar o Kar…
— O que! O que houve com o Mestre!
— Por que você mesmo não vai ver? As pessoas que sobreviveram já não estão mais aqui.
Se o que ela estivesse dizendo for verdade, a minha tentativa de buscar sobreviventes seria inútil, e se o Mestre estivesse perdendo a batalha, o fogo e a destruição iriam continuar até não existir nada além de cinzas.
— Merda!
— Agora você entende não é mesmo? Usando apenas a sua força você não é nada, então coma, só um pedaço desse calcanhar deve ser o suficiente para me saciar por agora.
Engulo a vontade de vomitar que queimava a minha garganta, indo até o pedaço de carne queimada já suja pela terra e pelas cinzas.
Tremulo ergo o pedaço o levando até a minha boca o mordendo com força tentando arrancar um pedaço da região, o pouco sangue que ainda escorria nele mancha a minha boca e pinga sobre o manto que vestia.
Mastigo calmamente o pedaço com lagrimas em meus olhos, e o engulo me lembrando do jantar na noite anterior e o sorriso de todos que nos ajudaram durante a estádia.
— Isso! — Gurnesarm berra em minha mente.
— Pronto! Agora você tem o que desejava, então… Por favor, me ajude!
— Com todo o prazer! Você ficará mais rápido que o normal e consideravelmente mais forte, no entanto o seu corpo ainda é humano.
— Certo…
Ponho-me a correr indo na direção da qual meu Mestre tinha seguido momentos antes, atravessando vielas já dizimadas pelas camas, com grandes destroços ao longo do caminho.
Pulo e me arrasto pelos obstáculos que eram postos a minha frente, cruzando a grande nuvem de cinzas que cobria a cidade.
Já ao outro lado na praça central da vila vejo um grande homem trajando uma armadura de placas negras, se escondendo por trás de uma capa que balançava sinuosamente com um grande brasão em suas costas.
Abaixo dele um homem trajado em vestes negras, segurava a ponta da espada que atravessava seu peito, seu olhar de ódio pela figura que ria ao tentar mata-lo penetrava a minha carne.
— O Mestre… O Mestre perdeu…
— Se tivesse sido uma luta justa ele teria perdido sim, mas aquele homem utilizou algum truque sujo para vencê-lo, o mesmo truque que você vai usar para mata-lo.
— Qual?
— Eu sou o seu truque, se você me der o direito de possuir o seu corpo por alguns segundos eu me aproximarei dele e darei um golpe único e fatal.
— O que você irá querer em troca?
— Por agora nada, mas que escolha você tem?
— Certo…
Concordando com as palavras da glutona, permito utilizando de palavras para que ela tome o controle do meu corpo, não demorou muito para ela correr em direção do alvo e fincar a adaga em suas costas com um único movimento, assim me liberando da possessão.
— Você conseguiu! — Falo animado.
— Será mesmo? — A figura fala sem se mover, deixando com que seu sangue escorra entre os meus dedos. — Sai daqui pirralho, o único que deve morrer nesse embate sou eu, pelas mãos desse idiota!
Eu não consigo dizer em que momento ao certo ele se moveu, mas por um único minuto eu pude sentir uma forte pancada sendo dada em meu peito, retirando todo o ar de meus pulmões e me levando ao chão, já sem ar e com dificuldade de respirar.
— E agora está pronto para acabar com toda essa dor?! Você é o único pecador entre todos os sete! As suas escolhas fizeram eles serem o que são!
— Não… Eu… Ainda não posso…
— Seu idiota! Sabe o quanto você me fez sofrer por não retirar a minha vida?!
O Mestre vira o rosto não conseguindo responder mais as perguntas da figura.
— Certo! — Ele força ainda mais a pesada espada no peito do Mestre. — Matarei o garoto antes, vamos ver se muda de ideia.
Merda… Porque eu tinha que aceitar isso? Eu não quero morrer… Pelo menos não agora… Lili me desculpe…
Sinto uma lagrima escorrendo por uma de minhas bochechas e fecho os olhos apenas esperando a morte que sofreria, enquanto tentava recuperar o ar e as forças que me foram tiradas.
Mas a escuridão que eu esperava se encerrar com velocidade acabou durando mais do que o esperado, então gemidos tomaram o lugar do estralar das brasas.
Abro novamente os meus olhos para ver o Mestre parado diante do corpo do homem que antes havia o derrotado com tamanha facilidade.
— Lamatinos, você era um bom homem, apesar de ter destruído essa vila, você poderia ter salvado muito mais pessoas caso mudasse de ideia, mas… — O Mestre sorri erguendo o rosto aos céus. — Acho que somo iguais! Sempre seguindo as nossas ambições…
O homem para de gemer e em seu rosto eu pude ver um semblante de genuína paz, ele enfim tinha encontrado o que desejava.
— Aprenderei com esse meu erro… Não posso mais adiar o inevitável.
O Mestre arranca a espada que estava fincada no peito do homem caído e segue na minha direção arrastando a sua ponta no chão, como se as forças de seu braço tivessem acabado.
— Nos vemos na próxima vida Roro, prometo que cuidarei da Lili como uma verdadeira filha.
Ele ergue a espada sobre a cabeça utilizando dos dois braços antes de desse-la sobre o meu corpo, não sei dizer o que aconteceu, mas pude sentir os braços quentes do universo me cercando enquanto a minha consciência partia sem que eu sentisse qualquer dor ou sofrimento…