Valtown - Capítulo 5
Cinco horas da manhã já era hora de acordar para Liz. A jovem levantou e dirigiu-se ao banheiro, onde pôde ver suas grandes olheiras e seu rosto pálido. Lavou o rosto e escovou os dentes. Infelizmente, não havia café da manhã para tomar antes de sair. A barriga ainda roncava. O barulho vinha de um misto de fome com os resquícios da feijoada que comera no dia anterior. Colocou seu vestido azul e foi rumo à porta. Antes, uma olhadinha nos demais familiares. Todos ainda dormindo e amontoados nos cômodos.
Liz desceu para o térreo da Pousada Elmo, onde sua família morava. Residiam ali por favor, graças ao trabalho que sua mãe fazia para os donos no local. A jovem saiu do recinto sem olhar muito para trás. Rumou pelas ruas pequenas do subúrbio de Valtown. O destino era o centro da cidade e o objetivo era um emprego. Devia apressar-se, procurar lugares não era um de seus pontos fortes.
O emprego de ontem era tão bom. Tudo bem que eu deixei a lança do cavaleiro cair algumas vezes, mas ser escudeira deixaria meu pai orgulhoso.
A garota buscava um serviço há bastante tempo. Enquanto passava por uma ferraria, lembrou-se da vez que tentou ser ferreira. Mandou bem no serviço, mas a mandaram embora após uma semana. Tentou ser vendedora de uma loja de botas também. O problema da vez foi que ela não conhecia muito dos estilos, por isso não passou no teste.
Desta vez seria diferente. A entrevista era para ser secretária de um famoso juiz da cidade. Uma oportunidade e tanto para levar um sustento melhor para seus parentes.
Tenho certeza que estudei tudo o que deveria. Não me deixarei abater só porque é um lugar importante.
Para Liz, Valtown era um lugar grande demais. Ela não podia entender como ali, no subúrbio, as coisas eram tão difíceis e precárias, enquanto ao chegar perto do centro, tudo ficava limpo, bem-cuidado e seguro. Ela suspeitava que seria pelo fato do Palácio Real estar próximo aos bairros centrais.
Depois de um bom tempo e de se perder por algumas vielas, a jovem chegou à rua do edifício. O prédio era bastante quadrado e trabalhado em madeira, mas possuía vitrais e um acabamento que demonstravam o status de centro da cidade. Era incrivelmente perto do Palácio, que podia ser visto ao longe, alto e imponente. Liz esperou uma carroça passar para atravessar a rua e falar com o porteiro.
O moço era um homenzarrão de uns dois metros de altura. Tinha pele escura e cabelos bem arrumados.
—Bom dia. Eu sou Liz, vim para a… — foi interrompida no meio da frase.
— Dia. Veio para a entrevista para a vaga de secretária?
O porteiro tinha uma percepção apurada.
— Sim… Como você sabia? — perguntou a jovem enquanto olhava suas próprias vestimentas.
— Você tem cara de secretária. Suba as escadas, o escritório fica lá em cima. O examinador deve te atender em breve.
Liz consentiu e adentrou o edifício. Encontrou uma escada um pouco à frente e chegou ao segundo andar. Havia alguns cômodos e, finalmente, uma antessala com cadeiras de espera. Não havia ninguém sentado.
A moça não quis esperar sentada. Resolveu conferir a porta que parecia ser a do escritório. A porta era bem decorada e, em cima de seu portal, havia uma placa com os dizeres: Juiz Isaac. Com certeza era o local certo.
A garota bateu na porta, mas não houve resposta. Decidiu, então, abrir para ver se havia alguém do outro lado. Para sua surpresa, quando verificou, um senhor franzino e careca estava sentado em uma mesa pequena. Do outro lado da sala, uma maior e abarrotada de livros permanecia.
— Pois não? — perguntou o senhorzinho.
— Olá! Bom dia — disse Liz ao tomar o assento à frente do homem — Creio que você seja o Juiz Isaac. Decidi entrar já que não havia ninguém esperando.
— E não aguardou até que alguém a chamasse, senhorita…?
— Liz. Meu nome é Liz… Bem, não havia fila alguma e a sala não emitia nenhum som para ter alguém na entrevista. Então, tomei a liberdade de entrar…
— Tomou a liberdade? — interrompeu o senhor — Não queremos que interrompa nada aqui, garota. Vamos prezar pela ordem.
Ora, mas que ordem estou bagunçando? pensou Liz. Consertou-se um pouco melhor na cadeira. A entrevista não começou com o pé direito.
— Eu não sou o Sr. Isaac. Com certeza ele tem coisas mais importantes a fazer do que entrevistar candidatas para secretária de seu escritório.
Sutil como um elefante.
— Muito bem, Senhorita Liz. Como pode nos ajudar com seus trabalhos?
Liz sentiu a oportunidade e a agarrou. Hora de demonstrar tudo que havia estudado.
— Obrigado por perguntar, senhor — Começar educadamente era muito importante. — Bem, estudei bastante o direito de nossa capital e com certeza posso trazer novos ares para o escritório.
O senhor olhou desconfiado para a garota, mas ela prosseguiu.
— Percebi uma demanda crescente de crimes de abuso de autoridade e de vandalismo. Acho que posso adiantar alguns casos e despachar os mais importantes para o juiz. Além disso, desenvolvi um novo modelo de fluxo de trabalho que conseguirei implementar aqui e…
O homem retirou os óculos e os fechou. Distribuiu um olhar sincero para a garota.
— Menina, nós somos experientes e um dos maiores escritórios do centro. Não precisamos de uma revolução. Apenas de um auxílio.
A menina não compreendeu.
— Senhor, tudo que disse foi para ajudar no nosso desempenho. Não gostou das ideias? — perguntou sinceramente.
— Não queremos ideias de uma garota da periferia. Com o que você pode ajudar?
A garota estagnou. Uma espécie de indignação com surpresa em sua mente.
— Senhor, o que acha de…
— Com o que você pode ajudar? — perguntou ele pausadamente.
Liz abaixou a cabeça. Sentia que aquela era, no mínimo, a terceira vez que era interrompida no dia. Não devia, não podia, falar.
Por fim, disse:
— Eu consigo organizar os arquivos e atender os clientes inconvenientes.
— Excelente! Gostei de você, menina.
O atendente pegou um saquinho pequeno da gaveta. Devia conter alguns merréis pelo barulho e tinha a sigla BBM estampada.
— Isso aqui é para você pagar a viagem de hoje e, quem sabe, comprar uma janta — falou ao entregar o dinheiro para ela e indicar a porta — O senhor Ten vai conduzi-la até a saída.
Liz pegou o dinheiro e se dirigiu para a porta, onde o imenso guarda a esperava. Ao sair da sala, ouviu uma frase antes da porta bater:
— Em breve entraremos em contato para você começar!
Eles nunca entraram.
…
O local não era o mais apropriado para uma perseguição. Talvez por isso o fora-da-lei decidiu agir lá. Uppended era uma cidade um tanto quanto peculiar até para o reino de Valtown. Delron corria apressado entre as pontes e pinguelas que ligavam as famosas torres de pedra do canyon em que ficava a cidade.
O bandido havia passado pela ponte e chegado à “terra-firme” de uma das torres de pedra. A área em que estava devia ter algumas centenas de metros quadrados e tinha uma casa no centro. O homem olhou para baixo, para o fundo do desfiladeiro, infestado de cactos, e olhou novamente para Delron.
E saiu correndo.
Claro que ele faria isso.
O xerife puxou a arma do coldre e disparou. O revólver Schofield negro com entalhes dourados disparou rapidamente, mas o meliante se protegeu dentro da casa.
Não vou pegar o maldito daqui de fora.
Segurou o chapéu com a mão e partiu em disparada. Quando chegou à casa, o fora-da-lei havia saído dela. Ele começou a atravessar uma antiga e mísera pinguela para continuar sua fuga. Do outro lado, uma família foi surpreendida com a presença do bandido e entrou correndo para casa. Infelizmente, esqueceram um menininho de fora.
Delron viu uma coisa, mas previu outra. Viu o invasor sacar uma faca e correr em direção ao menino, mas previu que o pequeno seria usado como refém.
Era chegada a hora de medidas mais drásticas. Mesmo em Uppended, aquela pinguela não faria tanta falta.
Delron Navajo iria prender fuego¹ na situação.
Pisou forte com as botas e encaixou as pernas em posição. Realizou um dos saques mais rápidos que já fizera, com a mão direita na arma e a esquerda com o punho fechado, com exceção do indicador e o médio, que apontavam para frente. O xerife disparou, sem muita mira. Não seria a bala que faria o estrago.
A munição saiu em disparada e o mundo parou, tanto para o atirador quanto para o fugitivo. Ambos conseguiram ver a trajetória da bala até chegar próxima à ponte. O olhar do bandido estarreceu.
Delron usou de seu Equilíbrio para agir. A mão esquerda, com os dois dedos para frente, foi movimentada para cima. O sinal de que o clima ficaria caliente.
A bala explodiu. Ou melhor, transformou-se. O projétil tomou a forma de uma esfera de calor, e depois se incendiou. Chamas. Labaredas e uma grande coluna de fogo. A imensa massa de alta temperatura se chocou com a mísera ponte e a carbonizou quase por completo.
A corda que a segurava arrebentou e a ponte cedeu. O bandido caiu com ela, mas conseguiu se segurar lá embaixo, prestes a se esparramar no fundo do desfiladeiro. As cordas do lado de Delron não cederam e mantiveram o que restou da ponte, com o bandido pendurado, ainda no alto.
— Socorro! — o homem gritou desesperado.
— Vocês sempre pedem ajuda depois de eu meter fogo! Covardes — respondeu o xerife educadamente.
Pegou uma corda que estava próxima e jogou para o meliante. O homem começou a subir com dificuldade e a escapar do desfiladeiro. Ao chegar próximo do topo, segurou a mão de Delron, que o ajudou a se erguer.
— Muito bem, vire de costas e junte as mãos…
O xerife não chegou a terminar a frase. O fora-da-lei sacou uma pequena faca que tinha escondida e partiu para cima do oficial. Delron conseguiu segurar os braços erguidos do meliante, incluindo aquele com a faca, mas acabou sendo jogado ao chão pela força do oponente.
Os dois seguiram o duelo no chão, com o bandido pressionando e o Sr. Navajo na defensiva. O rosto de um vidrado no outro a poucos centímetros de distância.
Por que eles sempre tem que dificultar tanto?
O xerife usou o recurso que tinha no momento: sua boca.
Forçou-se a produzir mais saliva e, quando achou que tinha o suficiente, mirou e disparou o líquido nos olhos do oponente. Instintivamente, o bandido soltou a faca e se levantou com as mãos nos olhos.
Delron aproveitou para se colocar de pé e preparar o próximo golpe. Assim que o bandido retirou os dedos do rosto, o xerife deu um de seus mais bem dados socos de direita. A investida atingiu diretamente o local onde ficava a têmpora adversária. O oponente caiu desacordado.
— Gente do céu, que desgramento — reclamou o vencedor do duelo ao escorar numa parede ao lado.
…
— Muito obrigado por sua ajuda, xerife. Não sei ao certo porque, mas esse sujeito está aqui há algum tempo e suspeitamos que ele tinha como objetivo a capital. Nossos homens não conseguiam pegá-lo.
— Por nada, Senhor Fried — respondeu o homem. Ele havia gostado do senhorzinho que conhecera recentemente.
O idoso era bom sujeito e tinha amplo apreço pela comunidade local. Ajudava no que podia ali. Caso a cidade pudesse ter um prefeito, ele seria um ótimo candidato.
— Creio que esse trabalho deve afugentar novos invasores. E parece que esse aqui não encontrou a entrada para a capital. Caso contrário, já estaria lá.
— Verdade! Para onde o senhor vai levá-lo?
— Provavelmente para o Conselho de Defesa. Lá vai ser melhor para entrevistá-lo.
— Certo. Espero que o senhor aceite uma contribuição — disse o líder de Uppended ao mostrar uma sacola com o que parecia ser alguns barões.
Alguns outros curiosos da cidade estavam um pouco atrás e observavam a conversa. Umas poucas centenas de metros atrás deles, a primeira ponte que dava início ao caminho para a cidade suspensa nos desfiladeiros.
Delron observou tudo e voltou-se para o senhor.
— Muito obrigado senhor, mas o bom trabalho já é a recompensa.
O homem subiu em seu cavalo, onde o invasor estava amarrado inconsciente.
— Guarde o dinheiro para a cidade. Ela vai precisar.
O xerife despediu-se com um abaixar de frente de chapéu. Os habitantes acenaram animadamente e o homem da lei partiu.
Não demorou mais do que alguns segundos para o preso acordar e começar a reclamar.
— Diacho. Não imaginei que um transformador iria atrás de mim. Tu é bom, em tira.
— Ô estrupício, não tô muito afim de falar contigo agora não.
— Ótimo — respondeu o bandido.
Delron reconsiderou. O único que havia o que esconder ali era o preso. Aquilo poderia ser um esquenta para a interrogação.
— O que um desalinhado como você queria ali? Só chegar a Valtown? Não faz sentido, as cidades do interior são alvos muito mais fáceis.
— De fato, dandy. Mas não era só por isso que eu iria para lá. Diga-me xerife, já pensou em um país sem capital?
Delron estranhou o papo.
Os bandidos de hoje em dia são falantes.
— Sem rei, sem amarras. Sem a distinção entre foras-da-lei e cidadãos? — perguntou o bandido presunçosamente.
Delron não entendeu.
— Do que está falando? Primeira vez que vejo um ladrão democrata.
— Ah, nada disso. Democracia não. Algo mais do que o poder espalhado. Saiba, xerife, que ventos novos sopram de outros países para o nosso.
Navajo não conseguiu continuar a conversa.
Já era a segunda vez que ouvia um falatório parecido. As fronteiras do reino estavam em perigo
…
Após deixar o fora-da-lei em uma das prisões do Conselho na capital, o xerife rumou para casa. Lá, sua mulher e duas filhas esperavam.
Subiu os degraus de madeira para adentrar a mesma casa em que vivia desde que se mudou para Valtown. Nem muito perto do centro, nem muito no subúrbio. A casa era grande o suficiente para ser confortável, mas discreta o bastante para não ser luxuosa.
Depois de bater a porta, esperou sua mulher abrir. A sua adorável Dica o recepcionou.
— Já era hora, seu fuleiro — disse ela antes de dar um singelo beijo de boas-vindas — As meninas estavam perguntando de você no jantar.
— Bem, adianta dizer que eu estava trabalhando?
— Acho que não adianta pra elas.
— Papai! — gritaram as duas meninas ao deixarem a mesa de jantar e virem abraçar o pai.
— Fala filhotas. Papai chegou. Como foi o dia?
A pergunta foi o bastante para manter as duas falando pelos próximos 15 minutos seguidos. Delron ouviu tudo com atenção enquanto jantava com sua esposa.
O restante da noite seguiu normalmente. Terminar os afazeres domésticos com a digníssima, brincar com as meninas, tudo normal. Ao terminar, Navajo se assentou na sua poltrona favorita da sala. Dica estava subindo para o quarto para dormir.
— Amor, não vem para cama? — perguntou ela.
— Daqui a pouco. Estou precisando pensar agora. Pode ir.
— Tudo bem. Estarei te esperando. Você precisa descansar depois de um dia desses.
Delron concordou em pensamento.
— Apenas tome cuidado para não queimar a cuca — disse Dica ao deixar o recinto.
O xerife agradeceu aos Três por tão boa família como aquela. Seu lar, quando criança, não havia sido tão tranquilo quanto o que tinha agora. O interior pode ser bastante difícil.
As forças policiais acabam sendo muito concentradas na capital e na proteção do rei, o que deixa os confins do reino um tanto quanto esquecidos. A carreira de Navajo começou assim, com salvamentos e combates no interior. De feito em feito nas cidades pequenas, Delron fez seu nome até chegar ao posto de xerife.
Apesar de ganhar o reconhecimento e os recursos para cuidar de sua família, Delron lamentou o fato de deixar as pequenas vilas indefesas. Achava um desperdício ficar ali em Valtown, com tanta gente precisando em outros lugares.
Não basta o esquecimento padrão, parece que as fronteiras vão sofrer alguma coisa.
Relembrou dos boatos de invasão em algumas bordas do território. Caso algo acontecesse, seria difícil que alguma cidade se mantivesse.
O xerife decidiu.
Preciso falar com a Conselheira de Defesa. Amanhã falarei com Rose Dünn.