Venante - Capítulo 40
A lua cheia sangrenta iluminava a capital dos Amaldiçoados, Hollow. Era possível ouvir o grinfar dos morcegos, o berro das gárgulas e o praguejo dos zumbis nos cemitérios.
O avatar de Leonardo, Flaw, apareceu do lado de um dos muitos estabelecimentos; já que era o centro da cidade.
Diferente do seu corpo real, Flaw foi feito com os seus gostos “trevosos” da época.
Um longo cabelo branco bagunçado com pontas vermelhas — que mesmo assim conseguia passar a sensação de ser estiloso — cascateava pelos seus ombros, mas que acabavam por se esconder em seu grosso e longo manto preto rasgado.
Duas adagas e alguns frascos vermelhos estavam presos a um cinto na parte de trás da cintura e balançavam com o movimento do andar dele pela cidade. E, como era possível controlar nas configurações o nível de sensibilidade, a roupa de couro preto desgastado que usava nem chegava incomodar.
Leonardo, enquanto perambulava, estava acessando seus contatos.
— Curse — chamou um dos onlines da lista —, tá com os dois aí?
O ícone de alto-falante surgiu na visão dele, o que significava que a pessoa aceitou conversar por áudio.
— Você chegou, Flaw! Os dois tão sim, só que num x2 aqui perto. Tu tá em que área? — A voz feminina soou aos ouvidos dele.
— Na Hollow, perto da rua das Brumas. E você? — Depois de três segundos sem resposta, Leonardo perguntou: — Curse? Oi?
— Porra! Perdemo outra — falou com indignação. — Foi mal aí. Tamo na Abyss. Tem uma runa pra TP?
O Vampiro começou a mexer no inventário bagunçado. Havia pergaminhos, armas, vestimentas, poções e até runas nos slots. No entanto ele respondeu: — Pra Abyss não. Vou ter que correr mesmo até aí.
O ícone de alto-falante mudou, agora adicionando um x no canto inferior; significava que estava mutado.
“Os dois devem estar falando com ela agora.”
Nesse momento, um segundo ícone de alto-falante apareceu na visão.
— Vai vir correndo, maninho!? Tem esse tempo sobrando pra jogar? — A voz e a risada de um homem chegaram aos ouvidos de Leonardo, que logo aceitou fazer um grupo de bate-papo em áudio no jogo.
— Tô sem runa, né. E quem é você para dizer sobre tempo? — Leonardo riu. — Conseguiu uma folga hoje?
— Ai, ai, esses futuros her… — Começou a falar, mas foi interrompido.
— Vai conseguir chegar? A lua já tá se pondo — questionou Curse.
Leonardo olhou para o céu, percebendo que tinha pelo menos 3 horas para a lua sangrenta se pôr e o tão maldito sol nascer. Era sabido que, além de ser um fator de debuff nos Amaldiçoados, o sol causava dano contínuo nos Vampiros.
Sem demora, mexeu no inventário e encontrou um frasco com um líquido pela metade.
— Ainda tenho um pouco do Filtro Solar Fator Drácula, — o jovem não gostava nada desse nome bobo, mas falou confiante — então tá tranquilo.
— Beleza, vamo te esperar pela área dos Vermes de Sangue.
Os dois alto-falantes saíram do chat, deixando que este Vampiro pudesse se apressar.
Seus pés se firmaram no chão e avançaram tão rápido quanto uma tempestade de vento. Foi possível ver apenas uma sombra cruzar o caminho, além do manto que agitava ao vento veloz.
Sem hesitar, ativou a habilidade de metamorfose. O manto, como um fantasma, se envolveu no corpo dele e seu tamanho começou a mudar, transformando-se em um morcego de 1,8 m de envergadura.
Com a velocidade que alcançou em seu avanço antes, alçou seu voo sem dificuldade.
Ver a capital dos Amaldiçoados de cima era algo que poucas raças poderiam fazer. Os telhados pontiagudos, estruturas tortas, de tijolos grandes e cinzentos, cemitérios e árvores mortas, tudo isso dava a cidade a perfeita definição de cenário gótico.
Ambição Real era um jogo muito difícil, principalmente aos jogadores focados em crescimento. Leonardo, que começou a jogar dois anos depois do lançamento do jogo, ainda estava longe dos tops. Sua habilidade de metamorfose provava isso; algo obtido no nível 150 da raça Vampiro.
Atualmente estava no nível 197, já que perdera muitos níveis na Quest Lendária. Para ele era impressionante como havia jogadores no nível 400 na atualidade. Ele, que jogava praticamente todos os dias, recém tinha alcançado a metade — claro, antes de perder esse feito ao morrer tantas vezes.
E para mostrar que até mesmo os top ranked estavam longe do nível máximo, o jogo Ambição Real deixava claro no momento da criação do personagem que havia dois continentes para serem escolhidos como ponto de início: o Nortubia e o Celisto.
Criaturas das trevas e as criaturas da luz, uma batalha eterna acontecia nesse mundo, e os jogadores seriam o ponto de virada; o final dessa guerra.
No entanto fazia menos de um ano que o continente de Nortubia — onde os Amaldiçoados começavam — encontrou a ponta do continente Celisto, cuja a outra metade dos jogadores estava.
Os players peregrinos que fizeram esse trajeto ignoraram quests fundamentais para o crescimento do continente, apenas para serem os primeiros a encontrar o lado inimigo. Muitos reclamaram dessa atitude, mas também tinham o desejo de travar PVP com aqueles do outro lado do mundo.
Viajar sozinho por Nortubia era uma questão difícil, já que havia muitas criaturas ferozes esperando nos caminhos que cortavam a distância das cidades. Se quisesse chegar a algum lugar rapidamente, teria que pagar o preço equivalente.
Depois de desativar a habilidade de metamorfose pela 8ª vez, Leonardo finalmente passou o filtro solar.
— Sério, por que vocês foram pra Abyss? São duas cidades de distância — reclamou o Vampiro.
— Os novatos desse ano chegaram na capital esses tempos, então precisamos de um lugar com um PVP digno — Um rapaz respondeu, diferente do homem de antes.
O Vampiro Flaw balançou a cabeça e disse: — E tão perdendo desde que chegaram aí, não é?
— E eu lá tenho culpa que o tiozão peludo tá velho demais pra tankar?
— Velho é o teu pai, moleque. Me chama pelo nick pelo menos! — O homem gritou. — Repete comigo: “Claw Fodão”.
— Sério, parem com essa merda, gente. — Curse se impôs. — Quanto falta pra chegar aqui, Flaw?
Leonardo olhou o cooldown da metamorfose e respondeu: — 6 min.
O tempo que passou viajando, que contabilizava a matança que cometeu no caminho, equivalia a 40 minutos da vida real. “Quase uma hora inteira perdida voando pra um lugar…” Suspirou.
Visto que o cooldown da metamorfose era frequente e até um pouco longo, afinal era uma habilidade racial para explorar locais, precisava avançar o percurso na correria.
“Já que são os últimos 6 minutos, vou tomar uma.” Agarrou um dos frascos no cinto e bebeu o líquido vermelho.
Sua respiração ficou mais pesada e seus olhos viam apenas em tons vermelhos. Seu avanço estava ainda mais rápido do que quando saiu da cidade; seus pés, ao saírem do solo, fizeram crateras a cada passo.
“Magia Ensandecer dos Lican-Magos. Sempre útil nessas situações.”
Feras saíam das árvores e tentavam atacar aquela sombra que vagava pela selva fechada. Seus ataques acertavam apenas o rastro do vulto, mas nunca a figura.
Leonardo viajava sem medo, ativando o aggro dos monstros que agora o perseguiam. Como era uma área de nível 120, poderia matar com tranquilidade um pequeno grupo de monstros.
Mas, ao olhar para trás, viu a manada que o perseguia como espectros sanguinários. Havia cocatrices, coiotes do inferno, serpes, golens de sangue e revenantes o caçando. Isso tudo com apenas uma corrida de 1 minuto!
Ele franziu o cenho. Não seria um problema matar sozinho um a um, o problema era que, mesmo no nível 197, grupos de monstros desse tamanho era algo a se considerar, principalmente ele agora, que era um Vampiro sob o sol. E não podia desperdiçar também o efeito do Ensandecer.
“Se eu levar esse tanto de criatura para a cidade Abyss, os guardas vão me cobrar pelo serviço extra. Melhor evitar pagar por isso.”
O Vampiro não esperou e, em seu salto, se virou, abrindo seu manto como enormes asas. As criaturas arrancavam as árvores do chão em busca de matá-lo, sem medo da aparência diabólica que estava.
Ignorando o sangue que escorria de sua boca, proferiu: — Aura da Guerra! Legado no Sangue!
Seu vulto, antes negro, agora portava a cor carmesim em seu contorno, além de sua aura contaminar os seres menores que o perseguia. Os coiotes do inferno começaram a espumar pela boca ao sentir a frieza e malevolência do Vampiro.
Um ataque surgiu no pescoço de cada uma das criaturas que o perseguia. Um ataque; tão veloz que sequer as criaturas o viram passar.
Legado no Sangue fora uma das recompensas da Quest Lendária que ele havia adquirido. Era como o melhor presente que um Vampiro poderia conseguir.
Por 3 segundos, o usuário que ativava essa habilidade receberia um buff de 1.7x em agilidade e destreza. Para melhorar, por outros 10 segundos, todo ferimento causado no período desse tempo iria receber 5 tipos de debuff de 4 acúmulos.
Já a Aura da Guerra era uma habilidade de carisma dos Vampiros, que atraía a atenção de todos os inimigos ao alcance da aura, aumentando a hostilidade após um breve momento de medo.
A barra de vida dessas criaturas, que estavam 70 níveis abaixo, começou a cair devagar, mas Leonardo não esperou perder o buff e sentenciou os monstros em seus ataques.
O sangue deles pintou as lâminas de suas adagas.
Depois de desativar pela 9ª vez a metamorfose, as botas de couro preto do Vampiro finalmente tocaram o solo rochoso de Abyss.
Como implicava seu nome, a cidade foi construída ao redor de um enorme abismo, que também era uma das maiores dungeons deste continente. Em verdade, era um abismo dentro de uma montanha ainda maior. A entrada dessa cidade era como uma boca gigante estranhamente sorridente encravada na montanha.
Ele abriu o mapa da cidade e conferiu onde ficava a área dos Vermes de Sangue.
Apressado, foi direto ao encontro de seus amigos.
A ambientação nessa cidade era bem diferente da Hollow, por mais que ainda fosse sombria. Era composta por casas e prédios pedregulhosos, esculpidos dentro das paredes da grande montanha, para servirem como residências. O local inteiro era iluminado por chamas voadoras azuis.
Muitos dos NPCs eram Insectoides, Bruxas e Elfos Negros, compondo a desoladora paisagem que tanto encantava os fãs de dark fantasy.
Após uma boa caminhada, Leonardo viu na distância um grupo de três Amaldiçoados. Um grande homem praticamente coberto por pelos negros, uma garota flutuante de cabelo branco e de tatuagens brilhantes por todo o corpo e um esqueleto de robe preto e vermelho.
— Encontrei vocês! — gritou o Vampiro.
— Uhu! Maninho! — O peludo veio com passos rápidos e deu um tapão no ombro de Leonardo. — Demorou demais. Até ganhamos duas nesse tempo.
Os outros dois vieram logo depois.
— Mas não graças a você — falou o Esqueleto, olhando para o peludo.
— Sem o Flaw, o Claw não consegue atacar como um verdadeiro Lobisomem — A garota terminou com uma risada de nariz.
O grandalhão gargalhou. — Mas é claro! Somos irmãos; sem um de nós é tipo futebol sem bola!
Leonardo só balançou a cabeça e deu um sorriso. Claw, ou melhor, Claw Fodão, foi o primeiro parceiro que encontrou quando iniciou o jogo. Ele detestava o jeito sempre-alegre desse Lobisomem, principalmente porque nem parecia estar no mesmo contexto do jogo — onde era comum que todos agissem friamente, quase a própria escuridão, cruéis…
No entanto, Claw era sempre alegre, gritalhão e agitado. E, pelo que o jovem sabia, o motivo dele ser chamado de “irmão” por esse Lobisomem, era porque seus nicks rimavam.
— Então, Curse, quanto tá o score de hoje? — Flaw perguntou.
— 12 derrotas e 4 vitórias.
— Mas agora vai ser diferente! O time dos Fodalhões tá completo!
Flaw e Curse colocaram a mão na cara, com vergonha desse nome, mas quem falou foi o Esqueleto: — Você tem mesmo 25 anos? Não tem vergonha de falar essas coisas?
O Lobisomem franziu o lábio e respondeu, olhando-o: — Qual foi, deixa eu curtir. Eu trampo de segunda a segunda, Kleth. — Colocou a grande mão sobre o ombro do Vampiro e gritou: — E na minha folguinha pra jogar o dia todo, meu maninho aparece!
— Pois é, o Flaw tem aparecido bem menos esses tempos. Tá difícil assim no colégio pra Venantes? — Curse perguntou, flutuando de cabeça para baixo entre os três.
Leonardo havia compartilhado a informação com os seus amigos que estaria estudando num colégio Venante.
Diferente dele, os outros três não poderiam seguir uma carreira Venante por causa de seus Aucts e Graus. Claw trabalhava como designer em uma empresa, Kleth tinha seus 17 anos e estava atrás de algum cursinho para o seu futuro, já Curse, com os seus 15 anos, estava curtindo a escola comum e jogando muito.
Kleth cruzou os braços e respondeu: — Veio preparado para ganhar, Flaw?
— E desde quando nós perdemos?
Com essa resposta, a mandíbula do Esqueleto tremeu e uma risada saiu da boca descarnada. — É nossa então!
Kleth era um viciado em PVP. Para muitos, a presença desse Esqueleto era um problema, já que ficava de muito mau humor quando perdia. Mas não havia party que não o desejasse, já que a sua classe falava por si.
Junto de Flaw, esse Esqueleto era outro jogador de Classe Rara em Ambição Real, um Clérigo da Morte. No caso de Kleth, a dele era algo entre incomum e rara, já que poderia ser obtida por um número limitado de pessoas que fizeram quests específicas que levavam a mesma seita que a dele.
O Lobisomem viu essa cena e coçou o nariz. Ele gostava muito do grupo reunido.
Nesse momento, como se cortasse todo o clima feliz, um grupo de seis pessoas passou do lado, empurrando Curse e o Claw.
— Huh? — Um homem de armadura negra olhou para o grupo. — Vocês ainda estão por aqui? Já não deu de perder por hoje, não?
As palavras incomodaram os quatro. Leonardo nem precisou perder tempo em pensar; sabia que possivelmente eles tinham vencido a maioria das partidas de PVP naquele local. E essa atitude altiva deles não era outro motivo além do número que flutuava na cabeça deles.
O maior nível entre eles era o 220.
Claw não se sentiu intimidado e falou com orgulho: — Podem cantar de galo o quanto quiser. Agora que nossa party tá completa, vocês não têm chance.
Alguns do grupo do armadurado ficaram putos ao ouvir isso, mas ele apenas riu.
— Agora que vi. Apareceu mais uma mosca no meio do lixo.
— Sem ofender, “J.Paulzinho”, — Kleth falou zoando com a cara dele, já que o nick desse homem era J.Paulada — o negócio agora mudou. Só ‘tavamos brincando até agora com vocês e os outros.
O grupo dos seis começaram a gargalhar com isso. Não havia como levar a sério aquilo, já que era o time que mais perdeu no dia.
— Brincando, né? Beleza. — O armadurado limpou a lágrima do olho por causa da risada longa. — De qualquer forma, esperem a vez de vocês. Estamos indo pra um 6×6 agora, depois podemos ver se era brincadeira mesmo.
Foi então que a voz do Vampiro foi escutada.
— Oh, vocês tão indo para uma partida agora? Legal. Onde vai ser?
Um pequeno sorriso surgiu do rosto de Leonardo. Era a chance perfeita de ver cada habilidade deles.
Agradecimentos:
Meu imenso agradecimento aos Despertados:
Pedro Kauati e Bruna Bernadino
E tão incríveis quanto, os meus Perpétuos FODELHÕES:
? Paulinha Foguetão e Alonso Allen?
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