A Voz das Estrelas - Capítulo 1
Havia uma figura branca diante do garoto.
Embora enormes esferas de plasma, responsáveis por proliferar o calor àquele universo, o rodeassem, aquela figura ofuscava todo esse fulgor em meio à vasta escuridão.
Ela caminhou a passadas curtas e desceu a escadaria de luz, alcançando-o.
As mãos dele tremiam, mas não fazia ideia do motivo. Suor escorria por seu rosto quente, os pés se recusavam a se mover.
Dominado pela misticidade daquela pessoa, permitiu a aproximação ser concretizada.
Depois de os olhos se encararem por um breve instante, os lábios se encontraram.
Tal momento despertou um misto de sensações indescritíveis no garoto.
Ele não fazia ideia se sentia frio ou calor. Parecia até que borboletas batiam asas em seu estômago, o coração palpitava tão alucinado que poderia perfurar o peito.
Mesmo assim aquele tremor inteiro cessou, engolido pela influência sobrenatural dela.
O beijo tornou-se intenso. Tentou varrer as comoções pesadas que tinha consigo, por mais que não as entendesse, e aproveitou.
Mas não demorou a terminar.
Quando se afastou, balbucios incompreensíveis escaparam da boca dela. Os dedos gélidos subiram até tocarem na testa do garoto.
Com o rosto banhado em lágrimas cintilantes, ela fez seu pedido através de um murmúrio melancólico:
— Jamais se lembre de mim… Adeus.
Ele não entendeu o motivo. Apenas experimentou uma ardência dolorosa invadir o peito.
Depois de sua consciência ser gradativamente consumida pelas trevas…
Somente o vazio restou.
O garoto abriu os olhos, assustado.
Ofegante, levou a mão até apertar o pijama sobre seu peito, conforme ainda enxergava o teto todo embaçado.
Enquanto recuperava os sentidos, sentiu também fios úmidos escorrerem sobre o rosto.
Com os dedos da outra mão, tocou um pouco abaixo do cílio. De fato, eram lágrimas…
— Por que…? — A indagação escapou num murmúrio sem rumo, a exemplo do olhar trêmulo.
— Por que ‘tá chorando?
Já a pergunta inteira foi realizada pelo menino ao lado, responsável por arrancá-lo daquele estado de choque.
Ao virar o rosto, encontrou-o. O silêncio passou a governar o pequeno quarto, iluminado pelos feixes alaranjados que passavam pelas frestas da cortina na janela.
Ainda com dificuldades para compreender todo aquele peso em seu peito, o acamado exalou um profundo suspiro ao dizer:
— Sei lá… — Cobriu as vistas marejadas com a parte de baixo da palma. — Só sinto que… tive um longo sonho…
O menino do lado da cama apenas o olhou com dubiedade. Então, estendeu a mão fechada e fez um grunhido.
— Vê se se troca logo. Papai e mamãe ‘tão esperando.
O outro olhou para o que ele oferecia: uma bala.
No entanto, ao invés de aceitar, apenas desviou o rosto ao outro lado, na direção da abertura por onde vinha a luz.
Mesmo ignorada, a criança deixou o doce embrulhado sobre a cama, deu a volta e correu para a saída.
Solitário outra vez, o recém-desperto passou os antebraços cobertos por mangas longas nos olhos para os secar.
Levantou-se da cama, pegou a bala de presente do irmão mais novo e a colocou na mesinha de escrivaninha perto da janela.
Encarou-se no espelho, todo encardido. Viu como seus olhos verdes se mostravam bem avermelhados nas bordas.
— Tenho que limpar isso…
Ainda em busca de fragmentos daquele sonho, nada de esclarecedor veio à mente.
Apenas a experiência inexplicável daquela figura alva, dona de tudo que influenciou os momentos calorosos até sua mensagem final.
Suas características já tinham se perdido em meio aos pensamentos. O que restou ficava no campo das suposições.
O fulgor, no entanto, se sustentou por algum tempo.
Lembrando-se da mensagem do irmãozinho, disposto a esquecer aquilo de vez para se ater à realidade, ele se virou.
— Tenho que ir…
Com o passar daquele entardecer, foi se esquecendo.
Afinal…
— Vamos, Norman!! — Uma mulher gritou da escada, minutos após o rapaz se recompor. — Estamos atrasados. O casamento não vai esperar!!
Mesmo se desejasse continuar tentando, seria impossível para ele permanecer com aquilo na cabeça.
Depois de entrar e sair do banho, já começava a escutar os chamados apressados de sua mãe. Acerca deles, adotou o silêncio.
Enquanto ignorava essa pressão, colocou sua calça, tênis esportivos dos quais gostava e um casaco leve por cima da camiseta branca.
Devidamente arrumado, desceu as escadas sem pressa alguma. Seu ritmo era o completo oposto da parte inferior da residência.
À exceção do irmãozinho que jogava seu videogame portátil no sofá, sem qualquer peso na consciência, a correria da mulher era desenfreada entre sala, cozinha e banheiro.
— Ah, até que enfim!! — Ela arregalou os olhos ao ver o filho pronto, apagando a luz do banheiro. — Você sabia que iríamos sair agora, não sabia!? E ainda assim resolveu dormir!
— Eu nem queria ir mesmo… — Norman bufou, se sentando numa cadeira que ficava junta à mesa de jantar.
— Já basta. — Enquanto terminava de passar rímel, a mulher resmungou: — O combinado é o combinado, e não vou tolerar reclamações no meu ouvido. Jesus, Norman… Me impressiona essa sua falta de vontade, você não era assim!
Ele estalou a língua e desviou o rosto, voltando a contemplar o caçula em seu mundinho particular.
Se lembrou um pouco de como era tudo menos complicado quando era mais novo.
Até desejou retornar a tal época, para ser tão despreocupado quanto…
— Parem de discutir e vamos logo — esbravejou o homem, que passou pela cozinha com a chave do carro. — Ainda podemos chegar a tempo, mas pra isso vou ter que correr um pouco.
A mulher o acompanhou:
— Tranque a porta, Norman!
E, depois, o menino saltou do assento acolchoado a fim de ir junto com eles.
Norman levou mais um tempinho até se reerguer e puxar as chaves da casa em cima da mesa consigo.
Quase se arrastando, ele fechou a porta. Uma forte lufada repentinamente bateu contra seu rosto, fazendo os volumosos cachos castanhos dançarem no ar.
Perdeu um pouco do foco ao olhar para o céu, mesmo depois de ouvir o som do motor do carro.
— Vem logo!!
Foi o novo chamado gritado da mulher que o desprendeu do estado absorto.
Então, ele enfim entrou no banco de trás, colocou seu cinto e a família toda partiu.
Durante o caminho, ignorando as reclamações insistentes de sua mãe, ele colocou fones no ouvido e deitou a cabeça na janela.
Por algum motivo, o céu recheado de estrelas já pelo anoitecer o atraía além do habitual.
A cerimônia do casamento seria a céu aberto.
Tanto que Norman ficou surpreso com a sorte da escolha de uma data cujo clima estava perfeito para que ocorresse da melhor forma.
Chegando minutos antes do início da cortesia principal, nenhum deles conseguiu falar com os noivos. A única opção foi aguardar o início da festa.
Enquanto mãe e pai ainda cumprimentavam convidados, o garoto tentava fugir dos olhares e manter-se isolado.
Assim ocorreu até o início da cerimônia. Os quatro se sentaram em um dos bancos dispostos nas laterais da passagem onde o tapete vermelho se estendia.
Pouco tempo após, os padrinhos e madrinhas passaram a entrar.
“Que chatice”, Norman soltou um bocejo forte e pegou o celular do bolso da calça.
Verificou algumas mensagens não lidas e e-mails de faculdade que precisava responder.
De repente sentiu uma forte cutucada na perna, vinda do lado onde estava sua mãe.
Ao virar o rosto, encontrou um olhar afiado em sua direção. Aquilo o fez engolir em seco o resmungo que já armava na garganta.
— Guarde isso agora… — ela falou entre os dentes para não chamar a atenção. — Tenha um pouco mais de respeito…
O garoto não rebateu. Apenas guardou o telefone.
Com o clima ainda tenso entre os dois, a cerimônia se sucedeu ao curso natural até a chegada dos noivos.
Foi o momento de aclamação geral da plateia.
“Não entendo porquê as pessoas adoram casamentos”, ponderou com uma expressão fechada. “Passar a vida inteira acorrentada a outra pessoa… parece estranho pra mim.”
As alianças entre eles foram trocadas, então, seguindo a declaração final do padre, ambos se tornaram marido e mulher.
Todos se levantaram e ofereceram uma salva de aplausos, gritos e assobios aos dois.
Norman permaneceu sentado. Exalou um lamento tênue, deixando aquele devaneio de lado.
Quando o evento principal se encerrou, agradeceu aos céus por conta da liberdade para se dirigir a um espaço mais reservado.
Tomou ar fresco entre algumas árvores, longe da música alta e dos convidados alegres.
Em proveito a isso, subiu os olhos para o céu outra vez. Como tinha imaginado há pouco, estava diferente do habitual.
“O Triângulo de Verão…”, deparou-se com o asterismo distante de três estrelas específicas, aquelas que mais lhe chamaram a atenção.
Era bonito. Podia vê-los no mesmo plano celeste de um modo que jamais se lembrara.
Quase chegou a abrir um sorriso fraco.
— Por que está sozinho aqui? — A chegada interrogativa de sua mãe o arrancou daquele pequeno conforto. — Vá comer alguma coisa, o buffet já está servido.
A fitou de lado por um tempo, surpreso. Tal feição se modificou logo em seguida, quando voltou a fugir dos olhos dela ao esconder o rosto.
— Não quero…
Com a recusa, a mulher abriu a boca para discutir, mas desistiu disso no ato.
Ao invés de criar outro problema, se aproximou até ficar ao seu lado.
— Olha. Você é um garoto inteligente. Não deveria agir tão isolado assim. — As palavras dela não foram respondidas. — Fale comigo, meu filho. Há alguma coisa te incomodando…?
— Eu ‘tô bem, mãe. — A interrompeu com rispidez. — Só me deixa em paz um pouco, ‘tá bom?
Um baque forte acometeu o coração dela perante a retruca seca. De novo, separou os lábios no intuito de insistir, só que desistiu no caminho.
Somente permaneceu com um olhar firme ao dizer:
— Como quiser.
Se distanciou sem dizer mais nada. Cumpriu o desejo dele de ficar sozinho.
Norman chegou a sentir algum remorso por ter agido daquela maneira, mas só deixou-a ir em silêncio. Nem mesmo se virou.
Mediante um grunhido incômodo, ergueu a atenção ao céu de novo. Foi quando a dor de cabeça que sentiu ao acordar regressou.
Dessa vez, contudo, uma pontada aguda lhe atingiu, na iminência de fazê-lo levar a mão até a vista esquerda.
Quase chegou a inclinar as costas por conta da agonia repentina. Permaneceu desequilibrado, até o efeito se esvair lentamente, sendo reposto por uma onda de alívio.
— Mas que droga…? — Ajeitou a postura, enjoado.
Só então virou o corpo, sem encontrar sua mãe.
Algo dentro de si parecia o empurrar para a procurar e pedir desculpas pela forma que a tratou.
Mas o orgulho falou mais alto, optando por permanecer alheio naquele lugar vazio.
Ele não poderia imaginar, mas aquela seria sua última lembrança pacífica daquela noite.
Tudo foi apagado.
Num ritmo lento, a escuridão passou a ser preenchida de novo por uma luz quente.
“Ué…?”, conforme o incômodo desconhecido crescia, os olhos passaram a se abrir lentamente. “Onde… eu ‘tô?”
Repetiu piscadas demoradas — e dolorosas. No início do despertar estranho, contemplou pontos brilhantes preenchendo um espaço escuro.
“Que frio…”, apenas um dos olhos se abriu. O outro era banhado por sangue, a escorrer de uma ferida na testa.
A forte dor de cabeça o fez recuperar a consciência rápido. Soltou gemidos arranhados, à medida que reconheceu a natureza daquilo que tinha encontrado.
O céu da noite, ainda rodeado por algumas árvores.
Depois da visão de reestabelecer, o tato reconheceu a grama úmida abaixo de si. O paladar queria rejeitar o gosto de terra misturado ao teor férreo recheado na língua.
Olfato e audição vieram quase que simultâneos, recebendo um cheiro pesado de metal queimado e ruídos de fogo crepitando.
Procurou se virar, mas o braço gritou uma dor arrepiante. Poderia estar quebrado; a mente começava a reconhecer melhor sua situação.
Apesar disso, a dubiedade permaneceu intensa. Só começou a tentar sair daquele estado por causa dos alertas instintivos de sobrevivência alastrados da cabeça aos pés.
Ofegante, ele empenhou-se além do que imaginava ser capaz e conseguiu levantar-se do chão.
Resmungando de dor, enfrentou o desconforto do antebraço esquerdo. Porém, outro problema surgiu: a perna direita.
Não parecia fraturada, mas sangrava bastante, o suficiente para dificultar seus movimentos.
Mesmo assim, estimulado a se livrar daquelas condições incompreensíveis, começou a avançar enquanto arrastava o membro lesionado.
Depois de andar alguns passos, encontrou um clarão alaranjado pela virada de um arbusto volumoso.
Tentou reorganizar as memórias, mas só havia lacunas entre aquele momento e o de quando estava sozinho na festa.
O que existia naquele espaço estava borrado, como se tinta preta tivesse sido derramada sobre diversos papéis.
Com a garganta entalada por não fazer ideia de como teria parado ali, o motivo de estar naquelas condições e tudo mais, ele tropeçou em um pedaço de madeira.
— Agh!! — Tombou de lado, sentindo o braço machucado doer ainda mais.
Não se deixou desmaiar de novo, em virtude da dor intensa no lado esquerda da testa que parecia ser o combustível que o mantinha ativo.
Sofrível, voltou a se levantar.
“Tenho que continuar… tenho que continuar”, repetiu consigo para evitar o pior.
Continuou em frente, até a luz calorosa ganhar volume diante de si.
A poucos passos de alcançar o fulgor, se deparou com um corpo derrubado ao lado de uma árvore.
Parecia ser um homem, cuja camisa social branca tinha uma enorme mancha avermelhada na altura do abdômen.
Todo tipo de pensamento passou por sua cabeça, mas ele se recusou a ir a fundo no reconhecimento.
De coração disparado, a quase duzentos por hora, ele voltou os olhos para a fonte luminosa… o fogo alto que engolia um automóvel destruído.
O estado de choque nem o permitiu perceber as lágrimas a verterem pelo rosto. Podia ver outros dois corpos entranhados nas ferragens do veículo.
Não havia mais qualquer perspectiva de vida para eles.
Ele já sabia quem eram aquelas pessoas. Levou a mão sobre a região machucada da testa, prestes a se perder em insanidade.
Quando o corpo parecia na iminência de cair adiante, um ruído forte vociferou à sua direita.
Tomado pelas chamas que conseguiram se alastrar, o galho de uma das árvores se soltou. O alvo se encontrava logo abaixo; o próprio garoto.
Incapaz de se mover para desviar, certamente se tornaria uma nova vítima daquele cenário.
Liberte-se.
Uma voz ecoou pelo espaço.
As vistas se arregalaram com o pranto esvoaçante e, na sequência da confusão, foi como se o tempo congelasse.
Ele ergueu o braço canhoto simultaneamente ao surgimento de um cintilar branco vindo de sua testa.
Então, para seu espanto absoluto, uma força invisível fez com que o galho perdesse velocidade de forma gradativa, até paralisar em pleno ar.
A poucos metros das folhas em chamas, Norman arregalou o olho aberto com incredulidade. Permaneceu naquela posição durante alguns segundos, sem saber como proceder.
Ao recuar dois passos de forma inconsciente, voltou a tropeçar até cair sentado no gramado.
Isso fez o braço levantado se mover de forma acidental, terminando por lançar a madeira em chamas na mesma direção.
Com o coração a mil, os pulmões clamando por mais oxigênio do que conseguia sugar, ele encarou o resultado da anomalia incompreensível.
A dor de cabeça o dominou de novo, dessa vez fazendo com que um choque poderoso atravessasse seu corpo inteiro.
O apagão não poderia ser enfrentado. A consciência foi derrubada de uma vez, fazendo-o tombar com o torso.
A última informação que pôde receber naquele estado foi a do canto das sirenes ao longe.
Seu novo despertar em uma cama confortável.
O teto era irreconhecível.
Cheio de dores no corpo magoado, virou o rosto para a claridade provinda da janela e percebeu sobre a natureza do espaço.
Um leito hospitalar.
Tinha diversas ataduras cobrindo os ferimentos pelos braços e pernas, assim como na testa ferida, além de uma tala pequeno no braço.
Quando foi visto acordado, a enfermeira foi correndo chamar pelos doutores responsáveis por seu caso.
Logo foi visitado por um psicólogo, que o contou sobre o ocorrido.
Um acidente fatal de carro, responsável por vitimar todos, menos ele. Seu pai, sua mãe e seu irmãozinho… Ele já sabia.
Cabisbaixo, alegou se lembrar de nada entre o instante em que estava na festa de casamento e o despertar na área da tragédia.
Porém, se recusou a mencionar a experiência final. Em sua concepção, aquilo tinha sido alguma alucinação ou algo do tipo.
Não achou prudente arranjar mais problemas para tal situação…
— Esse é um caso de amnésia parcial — explicou o psicólogo em questão. — É provável que o trauma do acidente, físico e mental, tenha causado esse bloqueio em suas memórias. Não é completo, pois se lembra de alguns detalhes antes e após o fato. Assim como se lembra de si mesmo…
Evitou falar sobre a família vitimada do garoto, mas ele já tinha entendido.
De qualquer maneira, suas respostas eram curtas, secas e, na maioria das vezes, silenciosas. Apenas confirmava no gesto de cabeça para baixo.
Os olhos quase sem luz não deixavam de estar entrefechados, pesadíssimos. Nada além de sofrimento cabia dentro de seu peito.
Apesar disso, era como se estivesse conformado. Tampouco lutava contra a realidade ou coisa parecida; só aceitava.
Nos primeiros dias, nem mesmo levantou-se da cama. Enfermeiras passavam, doutores iam e vinham. A comida mal era tocada.
Ele não pregava os olhos. Independente de o quanto se esforçasse, nenhuma lembrança além das que já tinha surgia.
Quando elas atravessavam o campo dos acontecimentos recentes e iam até um passado não muito próximo, ele fechava os olhos com força e tentava parar.
Foi assim que passou os primeiros dias sob os cuidados daquele hospital.
Sem vontade alguma de lutar para permanecer ali.
Absolutamente sozinho.
Ninguém vinha o visitar, nem mesmo parentes mais próximos das famílias de seu pai ou sua mãe.
Além das diárias com os doutores e psicólogos, um advogado foi até seu leito, dizendo ter sido “contratado por uma das irmãs de sua mãe”.
Ele foi o responsável por passar alguns detalhes sobre o reconhecimento dos corpos dos falecidos, além do funeral e posterior enterro deles.
No fim, a decisão era do filho mais velho, o único sobrevivente. E ele decidiu que eles podiam ser enterrados antes de poder receber alta para participar.
Tudo que mais desejava era evitar pensar naquilo.
Portanto, quando a perna se recuperou ao ponto de ser apto a fazer caminhadas, Norman não pensou duas vezes.
Ainda com auxílio de uma muleta, varava as madrugadas silenciosas no hospital.
Sem ser importunado por ninguém, espairecia sua cabeça e cansava o corpo para, ao menos, ter alguma possibilidade de dormir sem dificuldades.
Apenas ele e o silêncio.
Mesmo que fosse impossível livrar-se de todas as lembranças, muitas delas involuntárias, começava a se sentir um pouco melhor.
Mais dois dias naquele ritmo tinham se passado. Suas insônias perderam força. A estratégia das caminhadas estava funcionando.
Na virada do quinto para o sexto dia de estadia, resolveu fazer um tour um pouco mais cedo.
Encontrou-se com alguns médicos ainda de plantão e pouquíssimos pacientes acordados.
Não trocou palavras com nenhum deles. Seguiu o itinerário de sempre, até alcançar o pátio extenso, cheio de regiões gramadas bem cuidadas e algumas árvores.
Porém, diferente das vezes anteriores, ele se deparou com uma pessoa sentada em um dos bancos no centro do espaço.
Deveria ser outro paciente qualquer, mas algo o atraiu.
Quando se viu, já estava paralisado, a poucos metros da garota que olhava para o céu. Seu cabelo branco, amarrado em um rabo de cavalo, dançava com a leve brisa.
De fato, aquilo chamou bastante sua atenção. Contudo, havia outra característica chamativa da qual pôde constatar da posição em que estava.
Os olhos dela.
Profundas esferas de coloração semelhante à do mais puro céu noturno, que combinavam com o tênue sorriso estampado na face pálida.
Se antes havia alguma disposição para seguir ou retornar, agora não fazia mais ideia de onde poderia a encontrar.
Inquieto, contemplou a serenidade da bela moça, como se fosse fisgado pelo cintilar das pulsantes estrelas na extensão superior.
O pior de tudo era que ele não entendia nem um pouco sobre o próprio interesse nela.
Porém, graças àquele encontro, o semblante recobrou as cores da vida ao erguer as sobrancelhas e afastar os lábios ligeiramente.
Acorrentado pela atmosfera singular do momento, foi capaz de enxergar uma melancolia intensa nos globos noturnos quase fechados da garota.
Como se ela estivesse contemplando algo muito precioso. Distante demais para que pudesse alcançar…
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