A Voz das Estrelas - Capítulo 10
Quando a polícia chegou no local, o massacre já tinha terminado.
Diante da dezena de vítimas, as autoridades anunciaram uma busca pelas redondezas e providenciariam assistência emergencial aos afetados direta e indiretamente pelo caso.
Ao menos era esse o esperado.
O paradeiro dos soldados que fugiram era incerto.
Além da dor dos familiares que tinham perdido filhos e irmãos, restaria o temor de toda uma população sobre qualquer recorrência futura em menor ou maior escala.
Mal poderiam imaginar que tudo se tratava de algo que quebrava as regras da compreensão humana…
— Além dos dois marcados que confrontamos, um terceiro foi o responsável por comandar tal ataque. E ele alcançou seu objetivo de nos reconhecer… — Layla comentava, ao passo que fazia curativos nos machucados de Norman. — No mínimo, você foi o único que estaria fora de seu mapa.
— Por eu ter ficado fora de combate e nenhum dos que fugiram terem me avistado…
— Exatamente. — Terminou de cobrir os cortes sobre o braço esquerdo com as bandagens. Então, virou-se para seu ombro. — Devemos ser cautelosos, apesar disso. Como eu e o Marcado de Rígel concordamos, essa “terceira força” passou a ser nosso maior problema por ora.
Os dois estavam escondidos em um beco ligeiramente aberto, mas que servia ao propósito de deixá-los camuflados das pessoas que passavam pela rua.
Conforme absorvia todas as informações do que havia perdido no evento da universidade, se controlava contra os arrepios causados pelos toques frios dela.
Era reconfortante, por um lado. Mesmo incapaz de se livrar das dores, poderia lidar com os empecilhos.
— Isso é tudo? — bufou ao fechar os olhos.
— Por ora —reforçou ao passar as bandagens sobre a testa dele, finalizando com um carinho na região coberta. — Não devemos nos precipitar, haja visto que nossos concorrentes se revelaram tão cedo. Acredito que, após os ocorridos do dia de hoje, a tensão escalará de modo constante em breve.
Pensativo, Norman inclinou o rosto para baixo, tendo os olhos quase cobertos pela franja irregular dos cachos abertos.
— Então não dá mais mesmo pra seguir a vida normalmente, hein — desabafou consigo, mediante um suspiro carregado.
Ele tinha se arriscado a tentar continuar, com a faculdade, com seus poucos amigos. Tinha apostado uma ficha em fazer aquele teste.
Ficou mais do que provado que nada mais seria como uma vez já tinha sido para ele.
Sua nova realidade deixou escancarado diante de seus olhos a impossibilidade de retornar a qualquer rotina normal.
De ser uma pessoa normal…
— Sinto muito pelo que aconteceu com seus amigos. — A voz de Layla o puxou de volta, como se ligada a seus pensamentos. — A culpa não é sua.
Embora ela tentasse o confortar com aquela afirmação, era difícil deixar de lado o peso da responsabilidade.
Se ele não tivesse voltado à faculdade; se ele não fosse precipitado pela ansiedade para sair atrás dos marcados… os vários “e se” faziam sua cabeça latejar de agonia ao pensar que tudo poderia ter sido diferente.
No fim, as vidas de Willian e Hudson jamais seriam recuperadas. A sanidade de Helen, única sobrevivente entre os três, talvez jamais poderia retornar ao normal.
Pensar que ele era o causador principal daquela onda de eventos era inevitável.
— Não dá pra mudar o passado — mussitou consigo e cerrou o punho destro com força.
Infelizmente, era o que era. Foi daquela maneira que o aprendizado para a eternidade se consumou.
Por conta disso, Norman mordeu o lábio inferior, pois sustentou resistência contra o devaneio que restou após pensar naquilo tudo.
Ele deveria seguir em frente.
Layla, em respeito ao momento pessoal do garoto, apenas o acompanhou por meio das vistas entrefechadas.
Aproveitou para trocar olhares com a rua na saída da passagem, constatando a quase nulidade do fluxo de pessoas àquela hora.
Sendo assim, imaginou que poderia se deslocar sem algum problema.
— Acredito que já esteja ciente, porém não devemos voltar para casa — disse sem olhar para o jovem sentado. — É possível que eles já saibam que eu estive lá, então se torna um local potencialmente arriscado para estarmos. Dito isso… o que está fazendo?
Interrompeu o raciocínio ao sentir o braço esquerdo ser agarrado pela mão de Norman. O que a fez se virar.
O garoto, já de pé, se aproximou dela ao lhe puxar com cuidado.
— Não é justo só eu receber tratamento, né? — Ele levou a palma quente até o rosto da jovem, bem abaixo das marcas de cortes na bochecha. — Não sou muito bom com isso, mas…
Passou um algodão embebido de antisséptico a fim de limpar a sujeira e o sangue que restavam na região dos cortes.
— Eu não preciso… — Ela parou de falar na impulsividade, vendo como o garoto estava corado no rosto.
Mesmo sem a precisão dela, deu um jeito de cobrir os ferimentos do rosto com band-aid, depois fazendo o mesmo em suas costas.
Layla arriou os olhos, sem ter mais o que dizer além de um:
— Obrigada…
Norman assentiu, notando que ela também estava um pouco encabulada.
Depois de um tempo, acostumado com os batimentos acelerados, ele indagou:
— E então… O que devemos fazer agora?
— Não precisaremos fazer muito no momento. Devemos recuperar as energias… — Ela levou os olhos escuros até o céu estrelado. — Para o que ocorrerá em breve…
O Marcado de Altair, assim que terminou de cuidar dos machucados nas costas dela, sentiu uma leve pontada na espinha diante daquelas últimas palavras.
A exemplo dos ocorridos principais desde o evento no hospital, ela afirmava com absoluta certeza.
Pensou que era uma boa hora para a questionar acerca daquilo, mas antes de ser possível fazê-lo, a luz branca voltou a despontar em meio ao breu.
— O quê!? — Norman subiu os olhos, como se pudesse enxergar a própria marca cintilante.
Rapidamente tampou-a com a palma enfaixada.
O mesmo ocorreu com Layla que, embora de peito coberto pelo vestido de gola, pôde experimentar o leve formigamento que tal manifestação trazia ao corpo.
Poderia haver outro inimigo nas proximidades. E isso seria aterrador, visto que nem mesmo estava recuperado por completo do ocorrido na universidade.
No entanto, diferente de sua reação abrupta, que foi a de dar meia-volta e olhar para todos os lados com tensão, a nívea permaneceu tranquila.
Com o avanço dos segundos, seus símbolos cessaram o súbito fulgor. Até que, logo após isso, ouviram passos bem tímidos virem do fundo do beco.
Preparado para enfrentar o que fosse, Norman tornou-se perplexo quando a pessoa em questão surgiu da escuridão.
Descalça, uma pequena menina andou passadas trôpegas. De imediato, ele notou que algo estava errado.
Contemplou os olhos esverdeados dela, arregalados e trêmulos como o corpo inteiro.
As mãos se uniam e apertavam contra o peito.
A boca aberta inspirava e expirava o ar com afinco, expondo o cansaço aliado às sobrancelhas contraídas.
Seu cabelo, ondulado, caía até a altura dos ombros. Parecia ter uma tonalidade acinzentada, com diversos fios soltos e desgrenhados por falta de cuidado…
“Uma criança?”, Norman tomou aquilo como surpreendente, mas havia algo a mais que o deixava inquieto.
Antes que pudesse ir além, a menina correu em sua direção e se jogou a ele, o abraçando.
O garoto ergueu as sobrancelhas, sentindo o aperto lhe envolver através daqueles braços frágeis e trêmulos.
Foi dominado por cada aspecto reconhecido nela através do breve contato ocular.
Reconheceu o estado emocional responsável por moldar a ela, de corpo e alma, naquele instante.
O terror em estado puro.
— S-socorro… — ela murmurou por meio da voz rouca.
Incapaz de determinar se ela era ou não a responsável por causar a ressonância de suas marcas, Norman engoliu em seco ao ouvir tal súplica.
Olhou de lado e viu que o braço direito dela estava coberto por faixas sujas do punho ao cotovelo.
Aquilo era muito suspeito. Ainda somado ao que tinha visto de sua aparência, compostura e feição lhe trazia um desconforto nefasto.
Encarou a parceira ao lado, que também a fitava através de um olhar pesaroso.
Tal aparência serviu como uma resposta implícita a todos os receios. Isso por si só despertou um impulso indescritível em seu coração.
Abraçou-a de volta, com cuidado. Sentiu as costas trêmulas dela, enquanto levava a outra palma a fazer carinho em sua nuca.
Incapaz de saber os motivos, cresceu dentro dele o desejo de a proteger.
— Fica… Fica calma… — Esforçou-se para transmitir o máximo possível de conforto na voz. — ‘Tá tudo bem. Consegue contar o que aconteceu?
A menina se afastou do torso dele, levantou a cabeça e o fez encarar os olhos marejados, cujas lágrimas finas limpavam o rosto encardido.
— E-eu… Ele ‘tá… — Os soluços tornavam sua fala dificultosa, corroborados por aquela feição… — Ele ‘tá… vindo…
Incapaz de compreender o significado das palavras deturpadas pelos soluços, encarou a companheira ao lado.
Layla não só disse nada a respeito, como sequer os encarava naquele momento. Tinha direcionado as vistas apertadas para o caminho escuro do beco.
Não teve outra escolha senão seguir aquela linha de visão.
Dessa vez, novos passos, agora mais pesados, ecoaram daquela passagem. Apesar de pausados, pareciam se aproximar rapidamente.
Cautelosos quanto ao que viria, encontraram a aparição de um homem esguio.
— Oh, aí está você, Bianca — ele falou ao projetar um sorriso fraco.
Só de ouvir a voz dele, a menina travou por completo.
Norman trocou olhares com ela e, em seguida, voltou a fitar o rapaz de pele escura e cabelo castanho liso, a cair sobre os ombros.
O que mais chamava a atenção, contudo, era a vista direita protegida por um tapa-olho negro.
Acuado perante a autoridade que o respectivo impunha só em sua postura, o cacheado franziu o cenho.
— Você é algo dessa menina? — E aproximou a garota a si no abraço.
— Sou o irmão mais velho dela. Me perdoe pelo incômodo que ela parece ter causado. Estávamos andando e ouvimos um princípio de confusão, então ela acabou se perdendo de mim… — Ele se aproximou dois passos, levou as mãos aos joelhos e os dobrou. — Agora vamos, Bianca. Temos que voltar, pois já está tarde.
De costas para ele enquanto com o rosto quase enfiado no peito daquele que a envolvia, Bianca apertou as mãos trêmulas, ansiosa.
A reação dela era estranha, para dizer o mínimo. Caso ele fosse de fato o irmão dela — os dois mal se pareciam —, o medo impregnado naquela garota jamais se justificaria.
Com a proximidade conquistada pelo estranho, Norman indagou:
— Olha… Eu não quero me meter, mas… ela não parece estar muito bem.
O olhar dele cruzou com o globo exposto do esguio, de um tom acinzentado quase que sem vida.
Receber aquela encarada, tão de perto, o arrepiava. E piorou quando o respectivo arriou as sobrancelhas, exalando um breve suspiro.
— Imagino. Ela é dramática desse jeito. — Reergueu a postura, abriu os braços e balançou a cabeça. — Mas precisamos mesmo retornar. Ouviu, Bianca?
De repente, como se a água mudasse para o vinho em um estalo de dedos, sua voz soou num grave assombroso:
— Isso é uma ordem.
Norman foi quem paralisou ao experimentar a influência se tornar pesada no ambiente.
Irradiou daquela pessoa, não havia sombra de dúvidas. E a garotinha, que começava a reunir lágrimas nos cantos dos olhos, recebeu uma onda de calafrio por toda a espinha.
Enquanto a comoção silente ocorria, o homem conduziu a mão na direção do tapa-olho.
Foi quando Bianca repentinamente se soltou do garoto e saltou para abraçar a ele.
O homem forçou o retorno do sorriso satisfeito. Então, desceu a palma sobre a cabeça dela, fazendo carinho em seu cabelo encardido.
— Viu só? É só insistir um pouquinho…
Tudo pareceu voltar ao normal.
Norman sentiu uma dor aguda no peito, pois prendera a respiração inconscientemente.
Layla, calada até então, viu que o garoto pretendia dizer algo a respeito. Por isso, ela ergueu a mão e a descansou sobre o ombro dele, o interrompendo.
Cheio de dubiedade, o jovem a encarou, recebendo somente seu olhar soturno.
— Obrigado por cuidarem dela. — O homem levou as mãos aos ombros da menina, dando a volta com ela. — Vamos para casa agora. Espero que fiquem bem essa noite…
Encarou-os por cima do ombro, conforme completava o retorno à ala escura do beco, onde desapareceu da vista de ambos junto com a menina.
Depois de alguns segundos do desencontro, a pressão colossal retumbada sobre o local se esvaiu.
Norman sentiu que poderia cair sentado, tamanho nervosismo que lhe apossou durante aquela interação.
Diante daquela aura nefasta, além da ação de Layla em o interromper na mínima vontade de se manifestar contra sua história, ele nem precisava questionar.
Ainda assim, soltou no instinto:
— Layla… Isso foi…?
A alva permaneceu numa taciturnidade primeira, conforme era encarada pelas vistas arregaladas do aliado.
Refugou por um átimo ao respirar fundo, se pronunciando em seguida:
— Fomos sortudos agora. — As palavras dela soaram temerárias ao rapaz. — O espaço o favorecia. Caso você fosse adiante no que desejou por um milésimo, poderíamos ter sido mortos sem termos a oportunidade de fazer qualquer coisa.
A confirmação sobre o estranho de tapa-olho caiu que nem uma ducha de água fria sobre sua cabeça.
Engolindo em seco, Norman encarou as próprias mãos estremecidas. Mãos que, há pouquíssimo tempo, tinham decidido proteger aquela criança…
— E aquela menina? A Bianca…
Layla apenas desceu a cabeça, o olhar arriado em pesar poderia dizer tudo.
Ainda assim, ela murmurou:
— Isso pode ser muito ruim…
A discussão estava encerrada.
Mas aquilo ainda estava muito longe de terminar…
Dois homens trajados de preto prestaram continência ao homem de tapa-olho, na guarda dos portões que se abriram para a enorme mansão.
— Bem-vindo de volta, senhor Levi!! — Ambos entoaram em uníssono.
— Quero o relatório completo da incursão na universidade. — Ele passou, guiando a menina de cabeça baixa consigo. — Sobre as pessoas com poderes que encontraram, além das baixas dos nossos.
— Como quiser! — Um deles respondeu, conforme os portões voltavam a ser fechados.
Sem dizer mais nada, o homem chamado Levi fez a entrada por seus aposentos, onde havia mais alguns homens fazendo a ronda noturna.
Seguiu pelos corredores até ficar longe do alcance dos olhares alheios.
Foi aí que segurou com força o braço enfaixado da menina e passou a arrastá-la até uma das portas isoladas.
Abriu a porta com um pontapé e a jogou sobre a cama maltrapilha que veio à frente. As faixas que a cobriam foram quase arrancadas.
Trêmula dos pés à cabeça, Bianca cobriu as têmporas com as mãos e afundou a testa no colchão, incapaz de suportar a queda das lágrimas.
— Você é incrível mesmo… Conseguiu escapar graças à brecha deixada por aqueles que saíram mais cedo. Mas achou que eu não ia te encontrar? Mesmo com seu poder irritante? — Com um riso torto, o olhar impiedoso, apontou a ela. — Se esqueceu de que eu estou fazendo um favor a você? Não existe mais ninguém que possa cuidar de você. Não existe mais ninguém que pode explorar seu perfeito potencial nessa guerra. Eu sou o único que te restou…
— Desculpa… desculpa…
Bianca repetia de forma incessante os atos de clemência. E aquela resposta tirou toda a vontade restante de Levi a fim de lhe atormentar.
— A sorte daqueles dois realmente foi você. Não queria arriscar criar um alvoroço desnecessário. Hoje eu fiz uma aposta e perdi vários homens… Cometer outro erro seria bem insuportável. — Caminhou pelo quarto escuro e sentou-se ao lado dela, na cama. — Pelo menos, agora sei quem são aqueles que eu devo eliminar nessa cidade. Em breve, eu…
Pausou o próprio monólogo, destilando um olhar pensativo em direção ao espelho quebradiço perante a escuridão.
Bianca, desesperada, engatinhou até se encostar na parede gelada, onde encolheu o corpo a fim de se proteger dele.
Aquilo desprendeu Levi dos devaneios repentinos, por isso soltou uma arfada pesada.
— O destino é engraçado. Eu e você fomos selecionados para algo inacreditável, ganhamos poderes que podem mudar vidas… tudo para conquistarmos aquilo que perdemos. — Ergueu a mão aberta na direção do teto. — Sinto que nada mais importa. Posso seguir em frente até alcançar esse Santo Graal… Por isso, você também é importante. No fim, nós dois sairemos vitoriosos dessa loucura.
Voltou a abaixar o braço.
Virou o rosto, o olho acinzentado sem luz alguma encarou a traumatizada no canto da cama.
— Se quer continuar sendo desobediente, é melhor repensar e desistir. Eu estou cumprindo minha promessa. — Levantou-se do colchão. — A culpa é toda dela. E isso faz ser sua também. Apenas faça como eu ordeno… e, como eu disse, nós dois venceremos no fim.
Sem qualquer indício de resposta por parte dela, Levi caminhou de volta à saída, o único local de onde alguma luz se alastrava cômodo adentro.
Ele fechou a porta com força, fazendo o breu voltar a dominar absoluto.
A partir daquele instante, Bianca estava sozinha outra vez. Sentindo frio no cômodo obscuro, ouviu os próprios soluços rasgarem o silêncio claustrofóbico.
Com o pranto copioso, fechou os olhos e se deitou sobre o travesseiro nada aconchegante.
De coração disparado, não conseguia parar de tremular o corpo inteiro. A voz embargada entalou na garganta, porém logo escapou com dificuldades:
— Por… favor… — Abraçou os próprios braços. — Alguém… me ajuda…
Ninguém podia receber seu pedido.
As palavras sufocadas se perderam pelo espaço sombrio, sem jamais terem a chance de ultrapassar a prisão a qual era imposta.
Restava apenas se agarrar a imagem da única pessoa capaz de afagar seu coração arrasado.
— Mamãe…
Chamou por aquela que, mesmo não estando mais ali, poderia a confortar e proteger em meio à desesperança.
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