A Voz das Estrelas - Capítulo 2
Norman perdeu a noção do tempo.
As vistas jamais se desprenderam da garota, sentada em um banco de madeira à frente de uma árvore, desde então.
De fato, era uma presença inusual. A despeito de toda a sensação que sentia vindo dela, como se algo a rodeasse, não tinha a visto em nenhum dos últimos dias.
Demorou até conseguir se recompor. Balançou com leveza a cabeça para os lados.
“O que eu ‘tô fazendo?”, de volta a si, pretendeu retornar com a caminhada antes de voltar ao quarto.
No entanto, a pontada de dor despertou no lado machucado da testa. Tal incômodo o fez prender os dentes para não grunhir, mas não o impediu de continuar.
Com passadas um pouco mais lentas, ele atravessou a pequena trilha asfaltada, na direção que a garota estava.
Foi inevitável; encarou-a de soslaio, à medida que a ultrapassava na posição do banco.
E, de fato, ela trazia algo diferenciado consigo.
— Essa é uma bela noite. — A fala repentina dela o fez paralisar de novo. Dessa vez, bem ao lado do banco. — O que acha?
Foi o laço final de seu aprisionamento. Queria mais do que tudo ignorá-la e seguir adiante, mas os olhos da noite lhe cravaram.
Tentou mascarar a engolida em seco que deu. Também tentou desviar o rosto e se livrar daquilo como de costume.
— Faz bastante tempo que não vejo tantas estrelas assim, no céu. — Mas ela insistiu, o deixando cada vez mais sem saída.
Quando voltou o rosto à direção dela, encontrou-a com os olhos de volta ao topo.
Envolto pelo fraco assobio do vento gélido, ele acabou cedendo à tentação pessoal. Acompanhou-a, em silêncio.
E encontrou os corpos celestes pulsantes iluminando a abóbada escura.
Aquilo era tão reconfortante que se indagou pelo motivo de sequer ter cogitado fazê-lo nos dias anteriores.
As linhas tensionadas de seu rosto relaxaram, a exemplo das sobrancelhas.
Em contrapartida, tal observação passou a remetê-lo a outras coisas das quais desejava evitar…
— Viu? — O chamado da alva o desprendeu do repentino momento de transe.
Desconcertado, ele piscou diversas vezes na direção da jovem sem saber o que dizer.
Então, abaixou o olhar para o aparente motivo de ela estar naquele mesmo hospital.
Confusa por um instante, ela notou da mesma forma.
— Ah, isso? — Mostrou o braço direito, enfaixado do punho ao cotovelo. — Eu acabei sofrendo um acidente caseiro e eles não quiseram me liberar no mesmo dia. Mas amanhã já devo receber alta.
— Hm…
O garoto seguia se esforçando para não interagir.
— E você? — Ela empurrou o assento com as mãos e inclinou um pouco do corpo. — Deve ter passado por coisas complicadas…
Por alguma razão, sentiu que o timbre dela soou pesaroso.
Sem aguentar mais aquela estranheza, ele murmurou:
— Foi mal…
E tratou de confrontar o inexplicável sentimento que o mantinha atraído a ela para seguir seu rumo.
Tudo que ele menos queria era reviver o acidente, sem conseguir puxar as lembranças do próprio.
Vendo que tinha abordado um provável tabu, a garota se levantou da cadeira e deu dois saltinhos até ficar na mesma linha de vertente dele.
— Eu não gosto de ver as estrelas. — A voz dela ecoou mais alta, novamente o fazendo parar.
Norman se martirizou por permitir que fosse, de novo, capturado pelo assunto.
Agora, era um motivo ainda mais claro, pelo menos…
— Por quê? — indagou, sem virar para trás.
Contente por enfim ser correspondida — ainda que pudesse melhorar muito —, a alva respondeu:
— Porque elas também fazem eu me lembrar de coisas tristes… — A forma que falou impôs uma virada de rosto dele, por cima do ombro. — Mas para você parece ser diferente. Eu vi.
O garoto tendia a concordar, por isso nada disse a respeito. Apenas arriou o olhar por segundos, novamente sendo afligido por lembranças daqueles que tinha perdido.
— Mas é incrível pensar como a humanidade não é nada comparada à imensidão do universo. — Ela tornou a comentar, puxando a atenção dele. — Tudo que concebe a vida. Tudo passou e continua a passar por esses pontinhos brilhantes que vemos aqui desse planeta.
Ela, enquanto olhava para o alto, ergueu o braço enfaixado até estender sua mão com a palma aberta na direção do inalcançável.
— As estrelas… elas, até hoje, guiaram nosso destino.
Mais uma vez, sua voz ganhou densidade. Mas ao contrário daquele timbre, seu sorriso tênue se alargou no rosto.
Norman percebeu tardiamente que tinha virado mais de metade do corpo na direção dela.
Quando o fez, perdeu o outro giro de corpo da garota, que avançou a passadas curtas até onde estava.
Ela aproximou o rosto do dele, que quase recuou de susto. Os olhos se cruzaram, deixando-o ver mais de perto as esferas escurecidas da garota.
Pareciam adentrar com facilidade a sua alma. Eram intensos, exalavam um ar especial.
A altura de ambos era a mesma, talvez separados por poucos centímetros. Ainda assim, Norman sentia estar sendo observado do alto.
Uma superioridade manifestada pela aura fria que ela parecia exalar ao natural. Jamais tinha se arrepiado de tamanha forma perto de outra pessoa na vida.
— Nossa vida está ligada a elas. Portanto, como sua semelhante, permita-me lhe dar uma dica valiosa. — Se aproximou mais, levando o rosto ao lado do dele. E sussurrou: — O seu destino está em jogo nesse instante.
Ao ouvir aquela voz frienta ao pé de seu ouvido, o coração disparou. Por um átimo, pode até esquecer dos incômodos físicos da recuperação.
Perdeu a capacidade de respirar no automático, até a jovem seguir o caminho que ele tanto queria há pouco.
Incrédulo, Norman ficou ali, congelado. Quando voltou a controlar os batimentos e a respiração, deu meia-volta com pressa.
Nenhum sinal a mais daquela garota restou no local. Só a influência estranha permaneceu no ambiente por um tempo a mais, crescente graças à brisa da madrugada.
Incapaz de entender o que aquela frase significava, ele estalou a língua irritadiço. Deixar-se afligir por aquilo era um absurdo.
Nem a conhecia. Embora algo quisesse, de todas as maneiras, dizer a ele o contrário.
Talvez estivesse só cansado demais. Sua bateria social próxima do negativo explicaria muito bem o fato de aquela interação ter sido tão custosa quanto as caminhadas.
Levou a mão até o rosto. Tinha desistido de continuar a explorar o hospital; portanto, corrupiou-se no intuito de pegar o caminho mais curto de volta ao quarto.
Sem rumo e sem lembranças, teria agora mais um problema para lidar: apagar aquele encontro de sua cabeça.
De volta ao leito, Norman se deitou na cama e buscou o sono.
E seu maior medo se concretizou; aquelas imagens seguiam vivas, tão vivas na mente, que o sono custou a vir.
Encarando o teto, mal conseguia pregar os olhos pesados. Seria bom ter um botão dentro de si para, simplesmente, livrar-se de tudo, pensou.
Não só a figura daquela jovem continuava a pulsar pelas extremidades do crânio, a formarem tais concepções que faziam parecer que ela estava diante de suas retinas.
Toda a conversa era repassada. Cada frase dita por ela e absorvida por seus ouvidos ecoavam nas paredes da consciência.
Levantou-se de supetão. Foi até uma mesa ao lado, disposta de várias revistas e alguns livros e quadrinhos. Era sua saída de emergência para quando queria distrair a cabeça.
E, no geral, funcionava. Pela primeira vez foi diferente.
De tão inquieto, perdia a concentração fácil, a ponto de ver as palavras se desconectarem à medida que avançava páginas.
Resmungou ao ver-se inapto a continuar a leitura. Fechou com força o exemplar o lançou de volta à mesa.
Apesar da mente embaralhada, passou a experimentar um sono crescente. Os olhos se tornavam mais pesados, quase os cílios se encontravam de maneira forçada.
Sem ter muito o que fazer, voltou a se deitar na cama. O problema estava na janela ao lado, semiaberta, o que permitia a entrada de uma brisa.
Encarou-a de lado ao juntar as mãos atrás da cabeça. E encontrou aquilo que o confortava, mas, ao mesmo tempo, lhe deixava tenso.
Era impossível fugir da imagem do céu noturno. Tanto quanto era impossível esquecer-se das palavras daquela garota…
Seu destino está em jogo nesse instante.
Norman grunhiu em desdém daquilo.
— O que ela queria com isso? Me deixar assustado, que nem em uma pegadinha?
A afirmação dela tinha sido categórica demais, apesar de tudo. Mas seria melhor para seu sono se abordasse aquela fantasia.
Virou o corpo até ficar de costas para a abertura na parede. O tique-taque do relógio ecoou solitário desde então, criando uma atmosfera de teste de resistência mental.
Mais relaxado, ele fechou os olhos. Deixou-se levar pelos sons repetitivos, até o momento em que o cansaço superou até mesmo suas dúvidas.
Entretanto, para seu azar, a dor na testa voltou a afligi-lo. Buscou enfrentá-la, mas foi impossível.
Acabou se reerguendo, a mão apertada sobre a área do incômodo.
— Que merda é essa, cacete!?… — Rangeu os dentes.
A agonia insuportável o cansava mais do que qualquer outra coisa. Ficou de pé ao lado da cama, pensando se deveria chamar alguma enfermeira.
Porém, quando puxou a palma de cima da área da face, as bandagens afrouxaram até caírem. E a mais estranha de todas as possibilidades reluziu à sua frente.
No sentido literal.
Uma luz branca se espalhava como se fosse um farol. E não era nem um pouco parecida com a que vinha do exterior.
Incrédulo, perdeu breves segundos na posição de vistas arregaladas. Então, buscou qualquer coisa naquele leito que pudesse usar.
O celular, pensou.
Apanhou o telefone repousado na mesma mesa onde a livraria particular descansava. Encarou a tela, constatando o impensável: a luz realmente emanava da testa.
— Mas… o que…? — Por entre os balbucios incompreensíveis, remeteu ao instante que aquele fenômeno ocorreu.
Quando foi salvo por algo tão inexplicável quanto, antes de desmaiar no local do acidente.
No meio daquela confusão, outro ruído se propagou da passagem fora do quarto. Virou o rosto, inquieto.
Deveria ser o único paciente acordado àquela hora, porém poderia ter vindo de algum funcionário ou algo do tipo.
Os sons continuaram. E se elevaram, à medida que os segundos avançavam.
Esmagado pela curiosidade, ele chegou perto da porta. A empurrou com cuidado, de correr, portanto o barulho foi mínimo.
Encarou o corredor enquanto tampava, com a mão, o brilho estranho na testa. Eis que os ecos aumentaram e, depois da primeira impressão, foram reconhecidos como passos.
Passos lentos, demorados. Pesados.
Conforme o nervosismo subiu à cabeça, a figura surgiu diante de Norman.
Parecia um homem. Trajava um casaco grosso e calças escuras. O que mais chamava a atenção era a máscara branca de detalhes avermelhados no rosto.
Possuía um bigode peculiar de laterais curvadas para o alto, realçando o sorriso macabro.
Deveria ter visto algo parecido em um filme ou quadrinho, mas a tensão sequer o permitiu lembrar.
— Achei — proferiu a voz abafada por debaixo da peça sorridente.
O objetivo, porém, estava longe de ser concluído. Num movimento deleitoso, puxou do bolso do casaco um facão.
O coração de Norman disparou como se fosse explodir a qualquer momento. A respiração logo se tornou ofegante, a adrenalina subiu.
Sua boa observação o fez entender rápido as circunstâncias.
Seu destino…
O homem mascarado esperou por mais alguns segundos, inclinando o pescoço de forma assustadora.
— Você não sabe de nada? — indagou, sem receber a resposta. Foi o suficiente para ele. — Que seja. Assim é muito mais fácil.
Então, deu o primeiro passo, provocador de um calafrio chocante pela espinha do rapaz.
Sua única reação foi a de virar em cento e oitenta para correr pelo corredor. Mesmo com a perna direita ainda debilitada, ele foi o mais rápido que pôde.
“Que porra ‘tá acontecendo!? Quem é esse cara!?”, incapaz de ter as respostas, ele atravessou toda a passagem.
Graças ao estado de pânico, não conseguiu entoar um grito sequer para pedir ajuda. Apenas continuou o quanto foi capaz, virando para as escadarias.
Os olhos encararam sua retaguarda, sem qualquer sinal aproximado daquela pessoa.
Dessa maneira, encontrou um balcão fechado, onde resolveu dar a volta e se esconder enquanto recuperava o fôlego perdido.
Tampou a boca para evitar que a respiração arfante fizesse muito barulho. Notou, em seguida, que o brilho alvo da testa tinha sumido, assim como a dor.
Esperou por um tempo que não podia contar.
“Cadê… todo mundo!?”, a indagação correu a mente deturpada; nenhum funcionário tinha sido visto naquela distância percorrida.
Deveria ter alguém de plantão em qualquer ala do hospital, mesmo a uma hora daquelas. Aquele vazio era antinatural.
Passado um tempo, subiu o rosto por cima da bancada. Constatando a ausência do perseguidor, pensou em continuar a corrida, doido para o despistar.
Só que, ao dar os primeiros passos, um tremor intenso dominou os corredores.
— Qu…!? — Incapaz de continuar, derrubou um dos joelhos no plano estremecido.
Um terremoto naquele lugar era mais do que antinatural, pensou desesperado só de imaginar aquele edifício sendo derrubado.
— Onde pensa que vai!? — Por trás dele, o mascarado retornou, conforme a vibração desaparecia.
Norman girou na velocidade do pensamento, quando a faca foi empurrada contra seu peito. Num movimento instintivo, colocou o braço com a tala à frente.
Ela foi perfurada pela lâmina afiada, rasgando a resistência acolchoada até lhe atingir a carne. Sentiu dor, mas deveria agradecer à proteção.
O dano seria mínimo.
— Merda!! — gritou agonizante, ainda assim.
“Eu…!!”, balançou o braço, o abrindo, para se livrar do ataque. O deslocamento acabou por empurrar o mascarado.
Com os novos problemas, Norman viu seu fim chegar. E isso fez seus olhos congelarem de novo.
— Bela defesa. Mas você não parece saber mesmo tudo que ‘tá acontecendo… — O agressor chutou a barriga do garoto, o fazendo cuspir saliva. — Se os outros forem que nem você, vou poder matá-los sem problemas.
— Do que… ‘cê ‘tá falando? — arfou com dificuldades.
— Se não sabe, não tem motivos para contar. Você vai morrer de qualquer forma, garoto…
Pegou a faca que tinha caído no chão por causa do esforço de Norman em se proteger.
Ele se sentia fraco. Daquele jeito…
“É assim…?”, amaldiçoou a própria vida, a atravessar a frente de suas retinas. “É assim que acaba?”
O mascarado se reergueu, enfim armado para terminar o trabalho.
“Eu não…”, Norman quase mordeu a língua, tirando um último suspiro de força. “Eu não quero…!!”
Conforme as imagens borradas com tinta preta saltitaram em sua mente, ele levantou o rosto. E o brilho retornou à testa, causando um impacto violento nas janelas que estouraram os vidros.
O homem se assustou e, com isso, Norman gritou:
— Eu não vou morrer!! — Ao se reerguer na potência do ódio, viu o corpo do mascarado ser empurrado pelo vazio.
O próprio se arrepiou ao sentir aquele impulso inexplicável sobre si, até colidir com a bancada e grunhir de dor.
Tal ocorrência fez o garoto se livrar do estado de raiva, voltando a encarar o que tinha à sua frente com dubiedade. O agressor caiu de joelhos, mas sem largar a faca.
Desorientado outra vez, Norman decidiu girar por inteiro para tirar proveito daquele momento e continuar a fugir.
Naquele caso, evitou se questionar muito. Já tinha entendido que havia algo de errado consigo.
Antes de virar o corredor, o homem rasgou o silêncio através de um rugido e tocou a palma no solo. O dorso da mão irradiou um cintilar branco-azulado.
Nem cinco segundos se passaram até que os tremores despertassem de novo, dificultando a corrida do rapaz.
Só que, diferente da última ocasião, ele se empenhou a manter o equilíbrio conforme se afastava da zona vibrante.
Depois de atravessar toda a passagem, Norman parou de ser afligido pelo estremecer do prédio.
Desceu três andares pelas escadas, pensando em fugir pelo térreo para procurar qualquer ajuda.
Só precisava encontrar alguém.
Mas como poderia explicar aquelas anomalias sobrenaturais? Iriam chamá-lo de louco, com certeza.
— Droga!! O que ‘tá acontecendo!!? — Os brados enervados ecoaram pela quietude hospitalar.
Ofegante demais e com dores nas pernas, parou a corrida quando terminou de descer até a sala de espera principal, que dava à porta do pátio.
E nessa porta, ele enxergou uma pessoa. Aquela pessoa que desejava esquecer há poucos minutos…
Com as mãos unidas atrás do corpo, a garota deixou o cabelo branco solto, a cobrir os ombros e cair até metade das costas.
— Você veio — indagou ao rapaz boquiaberto. — Foi difícil, não foi?
Com a garganta entalada, Norman andou alguns passos trôpegos até poder vê-la por inteiro, sombreada pela luz que vinha de fora.
E antes que pudesse dizer qualquer coisa, a alva estendeu a mão enfaixada na direção dele.
— Está tudo bem. Eu vou te ajudar a superar esse destino.
Suas palavras fizeram-se absolutas, como fortes badaladas de esperança no cerne do desespero.
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